domingo, 30 de junho de 2013

Capítulo 16 - Entre o amor e a mágoa

- Querida, já chegaste… Que bom! – arrancando-me daquele transe sinóptico, a minha avó levantou-se contornando a secretária onde à qual estivera sentada, e veio receber-me com um abraço caloroso, que no entanto e infelizmente não foi caloroso o suficiente para me fundir do regelo daquele cenário – Ainda bem que estás aqui, olha só quem veio fazer-nos uma visita…

- Inês… Ruben… - proferi entrecortadamente e num murmuro trépido de uma emoção que ainda não conhecia mas que já estava a sentir, engolindo o maior sapo do mundo ao olhá-los ali sentados… um ao lado do outro

Olhei Inês com alguma pujança e deparei-me com a mesma mulher que há meses atrás vivia uma relação plena e aparentemente duradoura com Ruben… Tinha a mesma confiança, a mesma postura robusta e segura como se ninguém fosse capaz de a deitar a baixo, o mesmo orgulho em estar ao lado dele, e esse facto roubava-me simplesmente o folgo.
Não tinha a mais pequena ideia do que eles queriam, o que faziam nem o que pretendiam dali, e para ser sincera e falar honestamente, tinha um medo terrível em vir a descobrir… Como se uma novidade esmagadora estivesse para me ser revelada, uma novidade que ainda me iria magoar demasiado e me iria fazer sofrer mais do que eu imaginava ser possível, e no final de contas… os meus pressentimentos não estavam muito longe da verdade.

- Olá, Joana… Que bom ver-te! – Inês foi a primeira dos dois a cumprimentar-me, embora que o tivesse feito apenas por palavras, levantando-se de maneira a colocar os nossos olhos ao mesmo nível, e o mesmo fez Ruben, que acompanhando-lhe o mesmo movimento, ergueu-se da cadeira que ocupava, movido por um acto intransigente de cavalheirismo e educação

- Inês… Como estás? – aquela questão não procurava necessariamente uma respostas, tentei ao máximo manter-me imparcial às demasiadas emoções daquele momento e silenciar as vozes da minha cabeça que me perguntavam o que estava a acontecer ali, e dirigi a ambos o sorriso mais teatral que o meu pouco jeito para representar conseguiu

Ruben, por outro lado, preferiu permanecer calado, acenando-me com um movimento de cabeça cordial e invulgarmente cínico, e um rasgo de lábios inseguro… Sim, inseguro e desconfortável também, conhecê-lo como conhecia permitia-me distinguir o significado e intenção de cada gesto e sinal seu, que poderia muito bem ser comum e passar despercebido aos olhares despreocupados de qualquer pessoa, mas não ao meu, o da mulher que ainda o amava tanto.

- O Ruben e a Inês vieram cá entregar-nos um convite… - o timbre doce e quase curandeiro aos meus dissabores, da minha segunda mãe, voltou a preencher aquela ausência de palavras entre nós   

A porta de saída estava tão próxima de mim – a três passos, se tanto –, que se tornara uma tentação voltar a transpô-la, porém não o fiz… Os meus pés estavam colados ao chão e eu não os conseguia mover nem um centímetro noutra direcção, como se de alguma maneira aquele fosse um sinal pressagiado de que eu estava destinada a ter que encarar aquele martírio.

- Um convite? – perquiri  com o coração aos saltos, procurando resposta nos olhos da minha querida avó, mas foi Inês que disseminou o temível anuncio pela sua boca

- Sim… O convite do meu casamento com o Ruben.

“… do meu casamento com o Ruben.”? Foi isso que ela disse? “… do meu casamento com o Ruben.”?! Não… Não, não, não! Podia ser tudo menos verdade, eu não devia ter ouvido bem.
Mas, meu Deus… A Inês estava certa, absolutamente certa, a sua pose inabalável não deixava margens para criar dúvidas. Não era brincadeira nenhuma, não era nenhuma piadinha de mau gosto, caso contrário qual seria o motivo de eles os dois estarem ali… juntos? Como se tivessem voltado a ser um… casal(!) Sim! Era isso que eles eram agora, um casal! E só o simples esforço de sozinha ter chegado a essa triste conclusão, causou-me a sensação de um punhal a rasgar o meu peito… A lamina fria e afiada cortar a minha pele… Queria soltar todo o ar que tinha acumulado nos pulmões durante demasiado tempo e não conseguia, queria fugir sem saber para onde.
Como é que ele pôde, depois de tudo o que passámos juntos… Como? Como é que ele pôde desocupar-me tão rapidamente do seu coração e voltar a ocupá-lo com outra pessoa, se eu nem a mais pequena intenção tive de olhar para outro homem! Sentia a cabeça numa roda viva pelas milhentas questão que coloquei ao mesmo segundo a mim mesma… E no meio daquilo tudo nem sei bem como tive tanto estofo para continuar a enfrentar aquele momento, ao invés de sair disparada dali e rebentar num choro doloroso de ter e de se ouvir.

- Vão casar? Mas vocês não… Vocês não tinham cancelado o noivado há uns meses? – questionei num impulso trémulo pela comoção excessiva acumulada nas minhas veias, não queria tê-lo feito, não daquela maneira incestuosa e um quanto evasiva, mas o que fora dito não podia ser retirado

- Sim… Tínhamos, de facto, mas este tempo todo que estivemos separados deu para pormos as ideias no lugar, assentarmos, ver o que cada um queria e o que queríamos os dois… - depois de um pequeno discurso como aquele, Inês lançou-lhe acima do ombro um olhar completamente deslumbrado, que apontava a uma reconciliação muito desejada com o seu amor… agora mais dela do que meu

- …E o que nós queremos é ficar juntos, construir a nossa família. – apoiando-a com toda a convicção, falou Ruben, fazendo embater o seu peito nas costas da sua proclamada noiva, firmando-se ao enlace dos seus braços em torno dela, um simples gesto que me magoou tortuosamente, feito apenas no intuito de me ser mostrado que o meu lugar já havia sido substituído

- É tão bom de se ver um casal assim… Tão jovem e já com planos tão firmes para o futuro… - muito ao contrário de mim, a minha avó parecia-me encantada com todo aquele cenário, completamente alheia à minha dor e sofrimento por estar a fazer parte dele – Não concordas, meu amor?

- Sim, é… É muito bom de ver… - a minha boca encheu-se do maior disparate que tinha proferido desde os últimos tempos e devido à carga anormal de força interior, contive-me ali em não deixar cair nenhuma lágrima, para proferir depois a mentira mais impiedosa da minha felicitação – Os meus parabéns… Desejo-vos as maiores felicidades!

- Obrigada, Joana… Nós gostávamos muito de te ver a ti e aos teus avós no casamento… Está marcado para o final deste ano. – bradou num tom leve, com um sorriso lindo e perfeitamente alinhado no rosto

Tinha sido a gota de água, não dava para aguentar mais Tinha de sair dali para não desfalecer em lágrimas naquele chão, era urgente.
Eu era humana, tentava ser forte e por vezes até conseguia, mas não era de ferro e já tinha ouvido que chegasse, não estava disposta a torturar-me ainda mais com aquela imagem feliz que a mim só me fazia mal a cada minuto que continuava a assisti-la… A panorâmica era demasiado sombria para ser tolerável.

- Hum, hum… Eu vou só lá fora, deixei a pessoa que me veio trazer, à espera, e é melhor… Bem, é melhor ir despedir-me dela. Com licença. – mentir era a única solução para me retirar e não deixar especulações no ar, portanto dirigi-me à saída e antecipei-me à fuga, mas algo me impediu de fazê-la no mesmo segundo

- Joana… - aquela voz, aquela persuasível voz que voltara a pronunciar-se para dizer o meu nome, travou-me quando segurei o puxador da porta no interior da minha mão, a um passo de cruzá-la, e aguardei solenemente para ouvir o que ele tinha para me dizer – Depois gostava de falar contigo. – os nossos olhares encontraram-se em casualidade e o seu pedido causou-me uma estranheza comum que contudo não ousei questionar, estava demasiado fragilizada para fazê-lo

Logo que fechei a porta atrás de mim, permiti a mim mesma voltar a respirar, desprender-me daquele sufoco que me bloqueara um destemido ataque de choro há instantes atrás, e que agora me era permitido ter, mas num outro sítio… um pouco mais longe dali.
Com a palma da minha mão tapei a boca e entre os dedos apertei o nariz, esforçando-me a conter as lágrimas só mais um pouco, quando os meus olhos já se contraíam para soltar cada gota, por vontade própria.
Foi sob os meus pés altamente vacilantes que cortei caminho entre a sala de estar e tomei trajectória até à cozinha, um lugar razoavelmente próximo e que eu tinha em mente sossegado, onde podia ir desanuviar as minhas mais recentes mágoas.
Quando entrei fui impulsionada até um dos móveis costado ao lava-loiças, e foi ao pousar as mãos no seu estrado, que transferi total peso do meu tronco para os braços ao deixar tombar a cabeça para a frente e desvanecer-me por fim num rol de lágrimas que correram umas seguidas às outras, pelas minhas faces robustas pela falta de cor que lhes sumira.

- Menina Joana? – a minha desatenção não me permitiu discernir a presença de alguém quando entrara no local de trabalho de uma das servidoras daquela casa, e ao olhar vagamente acima do ombro, dei por Rosa, que sobre a mesa de pedra de granito, preparava o jantar

Apressei-me a enxugar do meu semblante todos os vestígios que denunciavam o meu estado abrupto de devastação, e com uma simples e rápida corrida de dedos limpei as lágrimas que caíam em caduca até alcançarem a moradia dos meus lábios selados.

- A menina está bem? – vi-a largar os legumes que preparava para a sopa, secar as mãos ao seu avental e tomar passos ao meu encontro, de quem não sabia ao certo o que se estava a passar comigo

- Eu estou bem, Rosa… Não se preocupe, obrigada. – assim que voltei o meu corpo para o dela, e detentora de uma voz abatida pela prosperidade de um choro mais assente, preocupei-me em sossegá-la rapidamente antes que fizesse daquilo uma tempestade em um copo de água

- Oh menina, olhe para si, olhe para essa sua carinha… Está tão pálida, valha-me Deus! – as suas mãos colhidas pelos anos de trabalho, tocaram as minhas faces tão delicadamente que quase as senti conseguirem carregar a dor incumbida por detrás do meu vulto –  Até me faz querer que viu algum fantasma! – vi dois, na verdade – apeteceu-me dizer-lhe, mas seria melhor compactuar com o silêncio

- Isto não é nada, querida Rosa, já passa! – menosprezei o meu desespero, pois ninguém seria capaz de patenteá-lo para além de mim, só que a Rosa não passou totalmente despercebido

- Venha cá… Sente-se aqui, antes que me caia redonda no chão… - apoiando-me num dos seus braços, ela levou-me até à mesa e puxou-me uma cadeira onde acabei por me sentar, também as minhas pernas não estavam a conseguir lidar com aquela pressão – Vou preparar-lhe um chazinho para ver se fica mais calma e volta a ganhar alguma corzinha.

Não refutei, não discuti com ela. Sabia que não valeria a pena pois jamais a minha vontade, fosse ela qual fosse, sairia por cima da sua numa situação como aquela. Restou-me esperar um pouco até vê-la trazer para a minha beira uma caneca de chá de camomila que era remexida por uma colher de açúcar, que por sua vez agitada provocava um tilintar ensurdecedor aos meus ouvidos, na peça de loiça.

- Vá, beba tudo, e sopre que ainda está quente.

- Obrigada. – agradeci-lhe num sussurro, retendo a chávena escaldante entre as minhas mãos  

Quis fazer-lhe a vontade e beber o chá que ela preparara especialmente para mim. Soprei algumas vezes antes de sorver a bebida de plantas medicinais que se dizia serem calmantes, mas a mim pouco ou mesmo nada resultou esse efeito. Quanto mais eu tentava reter o choro mais depressa me lembrava que algures naquela casa ainda permaneciam as duas figuras que vieram derrocar a minha felicidade passageira com a boa nova que tinham vindo enunciar, para mal de mim.
Ao fim de meia caneca vazia, não consegui beber mais, parecia que no topo da minha garganta um nó cego tinha sedado a passagem de ar e passou-me a custar tanto a engolir como a respirar. 
Embora me tenha dado o meu espaço, algo que silenciosamente lhe agradeci, dei muitas vezes com Rosa a olhar para mim num laivo de apoquentação por me ver naquele estado. Sabia que não era a ideia que ela tinha de mim… Uma rapariga alegre, bem-disposta, com alegria de viver, mas não era essa rapariga que estava ali naquele momento, sentada à mesa a bebericar chá ao mesmo tempo que chorava como uma criança perdida e desesperada por voltar a ser encontrada.

- Oh minha querida Joana, parte-me o coração vê-la assim… - a preocupada cozinheira arredou-se do fogão para ir para junto de mim, afagar as minhas mãos na sua e prestar-me, o melhor quê pode, algum conforto – O que é que se passa? A menina não está nada bem.

- Pois não, Rosa, não estou… Estou mal, aliás, está tudo mal… Tudo! – proferi à beira do desespero, uma afirmação que me doía no peito e que só fez com que a corrida de lágrimas se intensificasse pelas metas do meu rosto

- Venha cá… Pronto, pronto. – cuidando de mim como se eu ainda fosse a sua pequena, como em tempos chegara a cuidar-me, puxou delicadamente a minha cabeça ao seu ombro para que aí me pudesse embalar e desafogar toda aquela minha dor que parecia não ter um fim

- Está tudo mal, tudo mal… - continuei a dizer, em murmúrios dispersos e interpolados com o soluçar serpenteado do fundo da minha alma




***



Só voltei a sair da cozinha quando consegui ficar mais calma e as lágrimas cessaram, podia ficar a chorar durante horas, mas temia que o teria que fazer mais tarde, pois pela minha frente ainda teria um difícil desafio de barreiras para superar e etapas de constrangimento para as quais teria de dar a cara… Como se eu não estivesse à margem de tudo aquilo, como se estivesse do outro lado da moldura, para não falar da conversa com Ruben que ficara prometida. 

- Já se está a fazer tarde, porque não ficam connosco para jantar? – podia estar ainda no meu perímetro de segurança, a alguns metros do centro do hall onde eles permaneciam, mas consegui ouvir nitidamente a minha avó a convencê-los a prolongar aquela visita por mais umas horas – O Caetano deve estar a chegar, e teria muita pena se não vos visse…

- Nós agradecemos o seu convite, Sofia, mas talvez seja melhor ficar para uma próxima… - Inês falou pela vontade dos dois, com o máximo cuidado e educação, que a minha avó lhe conhecia desde os tempos em que eu e ela éramos ainda melhores amigas

- Nós não queremos incomodar.

- Oh, que disparate, Ruben… Não incomodam nada! – fechei os olhos no mesmo segundo em que ouvira as últimas palavras e abrandei a passada, sem deixar que ainda ninguém me visse – Leonardo! – o mordomo que por sinal andava por perto, foi chamado para junto deles, e eu já podia adivinhar o que a minha avó tinha para lhe dizer – Diz à Maria para pôr mais dois pratos na mesa, o Ruben e a Inês ficam para o jantar.

- Com certeza, minha senhora, vou já tratar disso! – acatando como sempre as instruções com rectidão, Leonardo retirou-se com o acordamento de uma pequena cortesia e tomou o mesmo caminho que o meu, mas viandando na direcção oposta

Passámos lado a lado e o tempo que o fizemos foi suficientemente duradouro para que no silêncio albergado dos nossos olhos, fossem proferidas mil e uma palavras entre nós. Reparei que ele me lançara um contemplar subjugado de uma pena e compaixão, como que adivinhando por toda a humilhação e atrocidade que eu estaria a passar, ele que era e fora desde sempre o guardião dos meus sentimentos secretos noutros tempos, por Ruben, e da relação de um pouco mais de um ano que nos esforçámos por manter o mais discreta e reservada possível, aos olhos e bocas dos que viviam as suas vidas do lado de fora do nosso quadro.

- Joana, filha… - quando por fim me juntei de novo a eles, a minha avó recebeu-me expressando a inquietação da minha demora prolongada

- Desculpem a demora, passei pela cozinha para beber um copo de água e acabei por ficar à conversa com a Rosa. – não tinha por obrigação fazê-lo, mas justifiquei-me na mesma, não podendo deixar de omitir alguns pormenores chave

- O Ruben e a Inês vão ficar connosco para o jantar! – referiu num sorriso radiante pela sua vontade cumprida, especulando erradamente a minha abstenção à mais recente notícia

- Ai sim? Que bom! – fingi da melhor forma a surpresa do que já sabia e que em nada me comovia ou agradava, pois quanto mais rápido os visse sair pela porta, melhor seria para mim para que sozinha me começasse acostumar à dor de ter sido trocada, contudo tive de manter a minha máscara e continuar a agir como se nada naquela situação me incomodasse

- Conheces a tua avó… A ela é impossível de dizer que não! – transfigurando um humor elegante, Inês levou-os a rir tenuemente em prol da sua suscitação, e eu vi-me forçada a acompanhá-los apenas para não me excluir daquela atmosfera      

- Estás bem, minha filha? – talvez porque a ela fosse mais difícil de enganar, e talvez porque o meu sorriso não tivesse sido confortavelmente convincente, a minha avó apanhou-me numa pergunta armadilha mas para a qual eu tinha a resposta adequada

- Estou, estou bem… Porque é que pergunta?

- Não sei, pareces-me que estás aqui e ao mesmo tempo noutro lugar… Pareces diferente desde há pouco.

- Não, avó, é impressão sua… - desmenti e olhei consequentemente Ruben nos olhos, para nele apoiar a minha impostura seguinte – Eu estou óptima!

Acho que nunca fora tão doloroso de sentir, ocultar o meu verdadeiro estado de espírito e a minha aura, que agora se encontrava enegrecida por uma verdade inconveniente que me perturbava de todos os jeitos possíveis.
Naquele simples sinal a minha intenção passou apenas por mostrar a Ruben que conseguia ser mais forte e resistente do que ele poderia pensar, e que não me deixaria ir abaixo pelo simples facto de ele ter conseguido seguir com a sua vida e eu não, pelo menos gostava de acreditar daquela maneira… Mas ambos sabíamos que ali quem estava a ser enganada era eu e somente eu… É claro que me iria abaixo por vê-lo nos braços de outra mulher, é claro que me iria abaixo por ver que o tinha perdido… para sempre.




***



- Amor, podes passar-me a jarra de água, por favor? – pediu carinhosamente ao seu lado oposto onde ele se achava sentado, vendo-o mais propício a alcançar a jarra próxima do seu prato a sensivelmente dois palmos

- Toma… - de forma igualmente cuidada, Ruben aprovara-lhe o pedido ao  aproximara-lhe o jarro do rápido alcance dela, esticando habilmente o braço sobre a mesa

- Obrigada. – vislumbrei-os num relance comedido e enjoado, enquanto do meu prato debicava a comida com o garfo que não tinha qualquer vontade de levar à boca

Reunidos à mesa da sala de jantar, estávamos predispostos em lugares estrategicamente colocados, com o meu avô a ocupar a cabeceira, como era costume, eu e a Inês sentadas a uma lateral da mesa e o Ruben a acompanhar a minha avó na lateral oposta.
Iniciáramos a refeição acerca de vinte minutos e obviamente o que a dominara na sua maioria, fora a mais recente declaração do casamento, que parecia ter caído nas graças de todos naquela casa, menos nas minhas.
Quanto a mim não me restara outra opção senão a de manter o sangue frio durante todo o decorrer do jantar e engolir alguns sapos, uns deles bem grandes.

- Então e para quando está marcado o grande dia? – inquiriu o meu querido avô, sorvendo um gole do seu copo de vinho que tomava unicamente às refeições

- Em Dezembro, no dia vinte e dois… Conseguimos remarcar a data que tínhamos escolhido da primeira vez. – respondeu ela, com um sorriso imensamente belo que fazia luzir os seus lábios sempre que tinha o prazer de tocar no assunto

- É daqui a quatro meses, portanto… - não levantando os olhos do meu prato, relatei com uma certa audácia as contas que mentalmente fizera, prescrevendo dissimuladamente aos que me entendessem, a dúvida que então pairou no ar do quão repentina poderia ter sido a decisão deles, principalmente pela parte do Ruben

- Sim, quatro meses… Mais dia, menos dia. – notei, pela jeito como falara, que Inês ficara um tanto ou quanto desconfortável com o meu comentário

- E a cerimónia, vai ser onde?

- Quanto à cerimónia nós colocámos de parte a ideia de ser numa igreja… - começou por responder Ruben, à questão desta vez colocada pela minha avó – Como a casa da minha mãe é suficientemente grande e espaçosa, decidimos fazer a cerimónia no jardim e o copo-d’água também.

- Achamos que é melhor fazermos uma coisa simples e reservada, sem grandes confusões, apenas para amigos mais próximos e família.

- Espera-se é que não chova nesse dia, não é? Com o Inverno nunca se sabe… - comentei sem qualquer malícia, mas com uma pitada inegável de ironia e cinismo que me permitia continuar sentada à mesa e lutar interiormente com o que era sujeita a ouvir – Não seria propriamente agradável os convidados ficarem encharcados e o copo-d’água arruinado.

- Caso chova nesse dia, casamos noutro sítio qualquer, o clima não será impedimento nenhum! – Inês mostrou subtilmente as suas garras, protegendo aquilo que mais queria, e a partir daquele momento uma lividez de tensão entre nós foi levantada, que penso todos terem sentido

- Claro que não! – concordei imediatamente, no ensaio de um sorriso amistoso – Até porque quando queremos muito uma coisa, não desistimos com facilidade, lutamos por ela, independentemente das adversidades. – acrescentei, atribuindo um segundo sentido às minhas sentenças, que apenas duas pessoas naquela mesa poderiam compreender… eu e o Ruben

Entrecortei um olhar cúmplice com ele, que por descuido nosso foi perceptivo a Inês, e penso que tenha sido esse o impulso de que ela estava à espera de ver chegar, para trazer à conversa um tsunami de novas emoções… pelo menos para mim.

- Amor, não querias falar com a Joana?

- Sim, Ruben, é verdade… - alheia ao que ainda estava para vir, insisti em um acordo que fora quase esquecido, mas que Inês fez questão de lembrar – O que é que tens para me dizer, afinal?

- É mais para te perguntar… - corrigiu-me ela, antecipando-se a Ruben, mas continuando a reter um temperamento e uma atitude correcta e irrepreensível que em nada a comprometia

- Sim, bem… Ah… - a partir desse instante ele ficou notavelmente mais acanhado e nervoso para a sua escolha de palavras, o que naturalmente começou a deixar-me nervosa também… pousou os talheres no prato, bebeu um gole do seu copo de água  e focou-se em mim… unicamente em mim

- Então, Ruben… Não vais dizer nada? – vendo-o com alguma falta de reacção que o impedia de falar, entrepus-me, esperando dar-lhe o impulso necessário para não me deixar mais naquela incógnita tortuosa e impasse

- Tu deves saber, ou melhor, supor, que é o David que vai ser o meu padrinho de casamento… Já nos conhecemos há anos, ele é o meu melhor amigo, é natural…

- Sim, claro, tal como suponho que pelas mesmas razões a tua madrinha seja a Adriana…

- Pois, lá está… Ah… A Adriana não vai ser a minha madrinha…

- Não? Porque não? – estranhei não ser Adriana a estar a seu lado no altar, como seria de esperar por todos, mas também estava cada vez mais confusa onde aquele assunto nos iria levar

- A questão é, – e eu falei com a Inês e ela é da mesma opinião –, que talvez tu… Talvez pudesses ser tu a minha madrinha de casamento.    

A sensação que tive assemelhou-se à de uma bomba a explodir entre as minhas mãos. Explodiu, simplesmente… Sem relógio, sem contagem decrescente, sem fios que eu pudesse cortar. A bomba explodiu e todos ficaram a ver-me encurralada no meio dos destroços.
Não sei especificar o que senti senão mais do que uma mágoa grotesca, uma humilhação atroz e uma dor acutilante no coração quando o sangue que me corria nas veias gelou. Um silêncio apavorante pulverizou cada canto da sala e numa questão de segundos tinha todas as atenções recaídas em mim, a dos meus avós incluída, pois esperavam de mim uma resposta próspera, que no entanto eu não tinha para dar.

- Eu…? Tua madrinha? – falei quando finalmente a voz remontou às minhas cortas vocais, que ficara ausente pela emoção tempo demais

Vi-o acenar com a cabeça, formalizando assim o pedido que me fizera e o qual aguardava por um consentimento da minha parte.
As lágrimas voltaram a formar-se e pude senti-las a picarem atrás das pálpebras, mas obriguei-as a recuar… A situação tinha tomado outras proporções, proporções que tornavam a história do casamento em algo muito mais real e muito mais sério do que eu poderia ter imaginado, e um pesadelo aterrador impedia-me de acordar.
Não sabia porque razão estaria ele a fazer aquilo, se para me magoar, se para se vingar, para me humilhar… Só sabia que me sentia ridicularizada na frente de todos, pequena, pequenina como uma formiga, a ser espezinhada pelos (des)acertos da vida.

- Então, Joana, não vais dizer nada? – o meu avô quebrou a rígida camada de gelo que me envolvia… eles aguardavam na expectativa de me ouvir

- Eu não sei… Eu não sei o que dizer… - a voz saiu-me desinquietantemente fraca, para piorar a falta da minha resposta 

- Diz que sim… – sugeriu ele, a única réplica que queria ouvir

- Talvez devas pensar melhor na tua escolha, Ruben, eu não acho que seja a pessoa indicada para esse lugar.

- Não vejo mais ninguém que seja senão tu. – o argumento suscitado e indiscutível de Ruben, levou-me mais uma vez as lágrimas aos olhos, pelo conteúdo tão cruel e sem sabor que embebia

- Desculpem meter-me, mas filha, se o Ruben te está a pedir isto é porque com certeza ele acha que és a pessoa mais indicada… - como eu já poderia calcular, a minha avó saiu em defesa dele, apoiando-o e fazendo-me vacilar perante a decisão

- A tua avó tem razão, Joana… - claro, e a Inês que não concordasse

- Então talvez seja o Ruben que esteja enganado! – bradei impensadamente, mas sem me arrepender por um instante o que dissera, ao ponto de desejar retirá-lo

- Não… Eu sei aquilo que quero, e por isso fazia questão que fosses tu a acompanhar o David… Queria que fosses tu a minha madrinha. – aquela sua insistência passiva abalava-me por dentro, destroçava-me mas tinha que continuar a guardar tudo para mim

- Desculpa, mas eu não tenho nenhuma resposta para te dar agora, Ruben… Eu vou ter que pensar primeiro.

- Pensar? O que há para pensar? – interrogou-me a noiva, ligeiramente confusa pela minha – à partida sem motivo – hesitação, mas da minha boca mais nenhuma palavra referente àquele assunto se voltou a ouvir

Queria tanto chorar, tanto. Sentia-me sufocada ali, enclausurada numa teia tecida para o meu aprisionamento e tinha que sair, tinha que me libertar… Tinha que me levantar, virar costas e ir embora, não dava mais fingir que não doía, porque a verdade é que doía muito e eu não estava a aguentar com aquela carga, aquele peso em cima dos meus ombros.

- Desculpem, eu sei que vai parecer uma falta de educação, mas eu vou subir para o meu quarto… Estou cansada da viagem e tenho mesmo de ir dormir. – antes de me levantar, optei por me justificar logo, antes que a minha saída fosse mal compreendia

- Já, minha querida? – o meu avô queria que eu ficasse mais um pouco, mas não podia fazer-lhe a vontade

- Sim, avô… Peço desculpa a todos mas estou mesmo muito cansada. – limpei os lábios ao guardanapo que me revestira o colo desde então, puxei a cadeira para trás e despedi-me numa saudação geral quando me ergui – Boa noite!

Não consegui ser sentimentalmente imparcial ao ponto de me despedir de Ruben e Inês em particular, nem tampouco de os voltar a felicitar pelo casamento… Da minha parte o jantar já tinha chegado ao fim e saí então da sala, sem a mínima intenção de voltar a entrar lá naquele dia.
Quase sem forças para me sustentar nas pernas, e já com o choro a intensificar-se a cada movimento a que me obrigava, subi a escadaria amolecendo os passos. Vim-me embora porque não aguenta mais os risos constantes em conversas que me desagradavam, vê-los rir de felicidade, sim porque eles estavam felizes… ter de ouvir, ouvir, e calar, quando a maior vontade que tinha era jorrar um copo de água na cara do Ruben e não ter mais que olhar para ele… ele que tivera a distinta proeza de me magoar como nunca outra pessoa me magoara até então.
Entrei no meu quarto, totalmente solitário, e a coisa mais racional e coerente que fiz foi a de jogar o meu corpo sobre a cama e chorar… chorar…

- Como é que pude ter sido tão burra? Como? – praguejei numa retórica a mim mesma, ao relembrar que naquela tarde ao entrar em casa, chegara estupidamente a pôr em questão o milagre de uma possível reconciliação com o homem que me roubara o coração e o desfizera em pedaços

As lágrimas continuavam a correr-me a pique pelas faces e morriam ao chapinharem silenciosamente na almofada de cabeceira, que sem outra alternativa acolhia os meus desabafos lamuriosos da infelicidade amorosa da minha vida.
Entretanto, e somente ao fim alguns minutos, apercebi-me de um barulho no corredor, o destranco de algo que acabara por se abrir, e foi aí que temida a estar a ser observada, acalmei o soluçar, estanquei o choro o melhor que me era permitido e delicadamente voltei o meu corpo na direcção da porta.

- O que é que estás aqui a fazer? – perguntei de rajada, quando à ombreira da porta distingui a figura inesperada e muito pouco bem-vinda de Ruben

- Pensei que fosse aqui a casa de banho… Pelos vistos enganei-me! – preferiu com destreza e engenho, provavelmente fora aquela a desculpa que dera para que em segredo viesse procurar-me, sim, porque eu sabia que a única razão de ele estar ali era eu

- Pois, pois enganaste… - limpei a humidade do meu fácies às mãos, e ergui-me do colchão num impulso forçado – Por isso se fazes o favor, poupa-me e sai.

- Precisamos de falar.

- Não, não precisamos… Nós não temos rigorosamente mais nada para dizer um ao outro!

- Eu tenho. – contradisse-me, recolhendo ao mesmo tempo as mãos nos bolsos das suas jeans, para ganhar o alento de se aproximar ao centro do quarto

- Mas eu não te quero ouvir… Não consigo nem quero ter de olhar para ti agora.

- Vais ter que fazer um esforço. – disse num tom e postura inquebrável, em confronto com a minha, derradeira a vacilar sempre um pouco mais

- O que é que queres de mim, Ruben? Sinceramente… Ainda não te chega? Ainda não me humilhaste o suficiente? – numa contestação imoderada pela minha vulnerabilidade, estampei de imediato as suas intenções perante aquele novo confronto

- Eu não vim aqui para te humilhar…

- Vieste para quê, então?

- Eu não gostei da tua atitude ao jantar!

- Desculpa? – a minha sobrancelha ergueu-se num arco perfeito, tal foi a admiração ao ouvir o seu reparo – Vieste até aqui para me dizeres que não gostaste da minha atitude… ao jantar?!

- Exactamente! Não gostei da tua impertinência, não gostei da maneira de como algumas vezes falaste para a Inês, e muito menos gostei do escárnio que usaste no assunto do meu casamento! – enumerou pausada e certeiramente, lançando-me um cartuxo de acusação como se eu fosse a má da fita, a culpada naquela história toda

- Ai sim? E agora o que pensas fazer, hum? – os meus braços trémulos, não hesitaram em cruzar-se na frente do peito, de alguma maneira como um escudo protector – Vais pôr-me de castigo e tirar-me a televisão durante uma semana, é? – uma vez mais vi-me forçada a dar uso ao sarcasmo no intento de sair imponente a mais ataques da sua parte, mas era muito mais difícil que isso  

- Não comeces!

- Mas tu querias que eu fizesse o quê? Diz-me lá… Ficava a ouvir-vos falar sobre os planos para um futuro a dois, a agir como se tivessem voltado a ser o casal mais feliz do mundo depois de uma reconciliação, e querias que eu fizesse o quê? Que ficasse a aplaudir-vos?

- Ouve uma coisa, Joana…

- Não, ouve tu uma coisa! Ouve tu! – o meu indicador ergueu-se impetuosamente no ar e apontou numa só direcção… não sei onde arranjei ânimo para que um timbre profundamente elevado da minha voz se sobrepusesse à dele e o silenciasse, mas a verdade é que o fiz – Como é que foste capaz? Um mês, Ruben… Estamos separados há um mês e agora vais casar…?

- A vida pode dar muitas voltas numa só fracção de segundo…

- Parece que a tua deu voltas a mais. – ripostei inconsolavelmente triste, por me sentir a ser traída pela pessoa que mais amava no mundo inteiro

- Olha uma coisa, Joana, o meu casamento não está aqui em causa, nem tampouco serve de discussão! – agitando a cabeça levemente, ele fez questão de deixar aquilo bem claro

- Tu estás a voltar ao mesmo Ruben… O mesmo Ruben que conheci quando voltei para Portugal. – acusei com extrema lamentação, com uma voz desvanecida pelo reconhecimento das atitudes e personalidade, que revi no velho Ruben nos nossos primeiros confrontos ao fim de três anos – Estás frio, insensível…

- Se te lembras disso então também te deves lembrar da razão que me levou a ser assim… - começou por dizer, e quando a minha expressão francamente dolorosa se revelou ainda mais, ele decidiu esclarecer-me rapidamente – Ainda estava demasiado magoado por me teres deixado, e ao que parece até agora, a história manteve-se fiel ao passado…

- Então é a isso que isto tudo se resume… Uma vingança por eu te ter deixado outra vez!

- Não, isto não é nenhuma vingança. Não estou a fazê-lo por ti, faço-o unicamente por mim!

- Tem vezes que parece que não… Parece que tudo isto é só para me fazeres sofrer, tal como eu te fiz sofrer a ti.

- Mas não é! – o seu tom levemente exaltado, fez com que todo o meu corpo se contraísse num único movimento – Eu preciso de assentar, Joana, preciso de estabilidade na minha vida, e eu sei que a Inês me pode dar essa estabilidade.

- Não precisas de casar com ela para isso… - revelei sofregamente, de olhos esbugalhados pelas lágrimas que os corrompiam

- Eu e a Inês estivemos juntos durante dois anos, sabemos o que é o melhor para cada um e para a nossa relação… O casamento é um passo que já estávamos preparados para dar antes, é o impulso que precisamos para construirmos família. – ele foi tão claro, tão convicto no discurso que milimetricamente ensaiou, que não pareceu ter a mínima duvida quanto àquilo que dizia querer, e foi isso que mais me doeu entender

- Lembro-me de me teres dito que querias construir família comigo, que querias filhos meus… Afinal não passou tudo de uma grande mentira? – questionei, sentindo dentro do meu peito o desespero do meu coração padecente, que continuava a bater apenas por uma questão de sobrevivência

- Nada daquilo que vivi contigo foi uma mentira, mas também nada dura para sempre… nem mesmo nós.

- O que queres dizer com isso? – contestei, contudo estava atemorizada para ouvir a sua riposta

- Nada demais… Apenas gosto de pensar que talvez nós, a nossa relação, não estava destinada para ser, não tinha guardado nenhum futuro pela frente… - encolheu os ombros num movimento muito rápido enquanto continuava fixado em mim e eu desejei que ele parasse de falar, não sei se iria aguentar ouvir o que ele ainda tinha para dizer – Depois de tantos obstáculos entre nós, das separações, de tanto sofrimento, talvez o que tivemos não passou de um meio para chegarmos a outro fim…

- Outro fim? Eu pensava que era disto que o amor era feito… Que fortalecia com as dificuldades… - expliquei, tentando conservar as melhores recordações que ficaram de nós

- As nossas dificuldades foram demasiadas, Joana, e chegou uma altura em que já não dava para lutar mais… Resta-nos viver com isso.    

Ele tinha desistido, ele desistira completamente de mim, de nós… Atirou a toalha ao chão e foi sentar-se no banco, ainda o jogo não tinha acabado. A partir daquele momento aquele amor que ainda sentia por ele, passou a oferecer-me murros na barriga em vez de borboletas, e nunca imaginara o quão angustiante seria ficar sozinha, abandonada com o coração nas mãos.

- Podes querer casar com a Inês, mas tu sabes tão bem quanto eu que ela não vai conseguir fazer-te feliz para sempre. – ciciei com o rosto inundado de lágrimas que ele vi-a correr mas que já não tinha vontade em enxugar como fazia dantes

- Desde que não me faça infeliz…

- Ruben… Ruben, olha para mim… - movida por um acto de pura irreflexão e unicamente comandada pelos instintos, precipitei-me na direcção dele, anulando a distância entre nós e procurando por um esclarecimento fulcral que decidiria tudo – Olha-me nos olhos e diz-me que não me amas mais…

- Joana, não querias dificultar ainda mais as coisas… - pediu-me numa voz trémula que me impressionou, tão ou mais trémula que provavelmente o seu coração naquele momento, mas fê-lo sem cair no erro fatal de me olhar, tinha a certeza que ele não era capaz de me mentir se me olhasse fundo nos olhos

- Olha para mim e diz que já não me amas, que já não me queres, que não me desejas… Diz! – implorei ao deter o seu rosto entre as minhas mãos pequenas e vacilantes, e inevitavelmente duas lágrimas gordas deslizaram pelas minhas faces regelas pela humidade que as banhava

- Entre nós não há mais história, não há mais romance, Joana… Acabou tudo, acabou! – professou calmamente, algo que me queria fazer acreditar, mas eu sabia que ele não sentia nada daquilo, eu sabia, e o facto de o ter dito enquanto mantinha o olhar vagante perdido pelos cantos do quarto, só o comprovou

- Podes dizer o que quiseres, mas quando o fazes sem me olhares nos olhos…

- O que eu tinha para te dizer, já disse, portanto é melhor eu voltar para baixo antes que comecem a estranhar a minha demora.

Ruben afastou delicadamente as minhas mãos do seu rosto, com as suas, e tomou ordem da distância que voltou a separar-nos, deixando no ar uma incerteza impertinente, rumou até à porta do meu quarto disposto a atravessá-la e nunca mais voltar.
Não sei bem porque o fiz, mas travei-o antes que ele detivesse a maçaneta e a rodasse na sua mão, dispondo-me a algo que eu nunca pensara vir a fazer na minha vida.  

- Queres mesmo que seja eu a tua madrinha de casamento? – limpei friamente todas as lágrimas e notei todo o seu corpo ficar imóvel, certamente atingido pelo pasmo do minha inquisição, que eu jamais pensara em vir a proferir

- Porquê? Estás a pensar em aceitar? – promulgou-me quando se voltou na minha direcção, aguardando meramente por um sinal meu

- Já aceitei… Se é isso que queres, podes contar comigo.

- Tens a certeza do que me estás a dizer? Não quero que voltes com a tua palavra atrás.

- Não te preocupes, isso não vai acontecer… - respirei fundo tentando manter o controlo interior, tal como queria controlar a situação – Vou ter muito gosto em ir a esse casamento, só para ver com os meus próprios olhos e assegurar-me que nunca te esquecerás desse dia.

- Óptimo, ainda bem! – ele mostrou um sorriso ligeiro que em muito se sobrepôs ao meu, que não esbocei em momento algum

Queria deixar de amá-lo, queria e estava decidida a arrancá-lo do meu coração com muita força, de maneira a que doesse dessa vez e depois não doesse mais. Aceitar fazer parte do quadro daquele venturoso casamento, seria a valorosa prova dos nove, que eu iria atestar para provar a mim mesma, e principalmente para provar a Ruben, que até lá eu iria ser capaz de esquecê-lo, nem que para isso tivesse de me expor a um esforço desumano, mas eu ia conseguir… eu ia conseguir.

- Adeus, Joana! – foram as suas últimas palavras antes de o ver partir, olhou-me naquela que seria a última vez durante os próximos tempos, virou costas e saiu, simplesmente

Descolei os pés do chão e corri celeremente até à porta que fechei com força exactamente no segundo em que ele a transpôs.
Colocado aquele ponto final fui arrastada novamente para as masmorras do choro, que fez correrem-me pelo rosto as lágrimas, que aprisionei dentro de mim, a uma velocidade inqualificável e desesperante.
Dei somente dois passos em diante, mas sucumbida a força das minhas pernas, foi-me renegado o meu próprio sustento e caí de joelhos ao chão. O meu corpo estava arrasado, a minha alma vazia e o meu coração cheio de nada… Ali sentada sobre as minhas pernas dobradas, deixei-me chorar perdidamente, mas estivesse o que ainda estivesse para vir, prometi a mim mesma uma coisa… Aquela era indiscutivelmente a última vez que eu chorava por ele.




Queridas leitoras, venho trazer-vos um capítulo novo! :)
Espero que gostem e continuem a deixar os vossos comentários.

Um beijinho grande,
Joana :)



segunda-feira, 24 de junho de 2013

Capítulo 15 - Na corda bamba dos sentimentos

Acordei cedo pela manhã do dia de regresso a Portugal, quando no exterior comecei a ouvir o barulho do tráfego convulsivo pelas ruas do centro de Londres, indicando-me a agitação das primeiras horas da jornada rumo ao trabalho. Felizmente o meu, naquela cidade, tinha conhecido o seu fim na noite anterior com o encerramento de um dos mais badalados eventos daquele Verão, a London Fashion Week, na qual eu juntamente com outras centenas de manequins vindos dos quatro cantos do mundo, déramos a cara.
Fora sem sombra de dúvida uma semana arduamente cansativa, puxada e levada ao extremo do meu temperamento físico e mental, e como não sou de ferro nem consigo bloquear sentimentos, deixei-me ir abaixo vezes sem conta, quando a solidão remontava ao meu peito e eu caía na desilusão de ter de continuar a viver sem ele.

- Joana, acorda! – a voz de Pedro, que entrara no meu quarto sem qualquer consentimento, perfurara-me os pensamentos matutinos que clandestinamente começavam a avivar-me memórias passadas

- Eu estou acordada… - ciciei superficialmente sem olhá-lo, com o corpo dormente envolto nos lençóis e permitindo  que os meus cabelos revoltos pela noite agitada, se mantivessem desalinhados sob a almofada

- Então levanta-te, come qualquer coisa e arranja-te, porque temos um longo dia pela frente!

- Do que é que estás a falar? – destapei a cara, que até então se mantivera coberta pelo rebordo do lençol impedindo que a claridade do quarto me ferisse os olhos, e com uma simples pergunta procurei-lhe por uma explicação minimamente esclarecedora

- O que é que falámos ontem sobre o que iríamos fazer hoje? – uma lividez denotável de expectativa e entusiasmo foi claramente trasmitida pela sua voz, que me pareceu desfazer-se da formalidade e compromisso que travara comigo nos últimos dias, ainda assim não entendi em primeira mão ao que ele se referia

- São sete horas da manhã, Pedro, eu mal dormi e tenho a cabeça a explodir… Achas que é uma boa altura para começares a fazer perguntas dessas? – não pretendia ser rude, de todo, mas em consequência das noites mal dormidas que acumulara, o meu humor matinal saíra a perder

- Mal dormiste e parece que acordaste com os pés de fora! – eu não estava propriamente com disposição para responder a ironias de segundo grau, e ao aperceber-se disso através do meu silêncio, Pedro continuou – Bem, hoje é o nosso último dia cá e como ainda não tivemos tempo de conhecer a cidade, nada que um bom passeio não resolva para descobrirmos os encantos de Londres!

- Hum… - murmurejei de um jeito totalmente desprendido ao que ele dissera e voltei  cobrir o rosto com o lençol, preparando-me para compensar o meu horário de sono

- Então, vais ficar aí? – vendo-me tomar reacção nenhuma que denunciasse o meu confronto para com um novo dia, senti os seus passos marcarem caminho até flanco da cama, afastando a roupa de maneira a fazer-me desprender da preguiça – Levanta-te, temos muita coisa para ver e muito sítios onde ir!

- Pedro, não sejas chato… Deixa-me estar! – pedi rapidamente, esperando ser sinceramente compreendida por ele

- Mas então… Eu pensei…

- Não me apetece ir a lado nenhum, está bem? Quando sair deste quarto vai ser unicamente com a intenção de ir para o aeroporto, até lá não vou a lado nenhum.

- Mas tu disseste que querias…! – ele tentou convencer-me com evidências que eu mesma tinha suscitado no dia anterior, e vi-o tomar lugar ao beiral da cama onde ao meu lado se sentou

- Pois, eu sei que disse, mas acordei sem disposição… Desculpa. – tentei justificar-me o melhor que sabia, mas para ele uma desculpa esfarrapada não foi o suficiente

- Acordaste(!)… Isso se conseguiste dormir duas horas seguidas!      

- O que queres dizer com isso? – inquiri, ainda assim com alguma hesitação, pois se o meu palpite estivesse certo, aquele era o começo de mais uma longa conversa que eu não queria voltar a ter

- Basta olhar para ti, Joana… Com os olhos nessa lástima vais dizer-me que não passaste a maior parte da noite a chorar?!

- Não vais começar, pois não? – avisei, antes que começasse a rogar um discurso que ele fazia intenção de me repetir aos ouvidos sempre que me encontrava daquele jeito desde que saíramos de Portugal

- Se já sabes o que eu vou dizer…

- Já, já sei o que vais dizer e sinceramente começo a ficar cansada dessa conversa!

- E eu começo a ficar cansado de te ver assim! Caramba, já chega de fazeres isso a ti própria, não?! – ele olhou para mim com uma misericórdia fatal, como se diante dos seus olhos, em vez de mim, estivesse prostrada uma menina pequena que não sabia defender-se das traições da vida

- Já te disse que não quero que tenhas pena de mim, não quero nem preciso! – relembrei sem uma única falha na voz, e num pulo rápido levantei-me da cama, escapando-lhe ao alcance

- Eu não tenho pena de ti, só acho que estás a fazer mal a ti própria ao conservares essas saudades, as recordações, as interrogações que fazes constantemente “e se? e se…?”. – eu sabia, eu sabia que ele só estava preocupado comigo, que queria ver-me bem, mas fazer-me tocar na feria doía mais do que tentar esquecê-la – Joana, já passou, e por muito custe tens de aprender a lidar com isso de uma vez por todas… Se as coisas não resultaram entre vocês, só tens de aceitar o fim e pronto! À que seguir enfrente e tu tens uma vida inteira pela frente, não a desperdices!

Foi a coisa que mais me custou ouvir desde que terminara o meu relacionamento com o Ruben. Tinha plena noção de que Pedro estava certo em cada palavra, em cada vírgula, mas aquela era uma verdade dilacerante da qual eu andara a esconder o meu rosto nos últimos tempos, com medo de enfrentá-la.
Toda eu tremi ao colocar em evidência de que nada me restava fazer senão erguer a cabeça e enfrentar novos ventos, longe daqueles que sopravam na direcção de um amor despedaçado, e tentar, pelo menos tentar ser feliz por minha conta… só por minha conta.

- É muito fácil para ti falar, não é? É muito fácil para quem está do lado de fora! – argumentei ligeiramente revoltosa, e sentindo-me descambar do controlo quando as lágrimas em meus olhos começaram a assumir o comando da minha fragilidade, que viera então ao de cima

- Não, eu imagino que seja difícil, muito difícil para ti esqueceres a tua história com o Ruben, colocares uma pedra sobre esse amor…

- Então porque é que me pedes constantemente para que o faça? – interrompi-o mesmo antes de supor ele acrescentar mais alguma coisa ou não ao seu discurso, e as primeiras gotas de água precipitaram-se exasperadamente dos meus olhos quando não precavi o tom mais elevado da minha voz que usei

- Porque sinceramente eu já não aguento ver-te assim! Já não és a Joana que eu conheço desde sempre… Uma Joana triste, sem aquela vontade de viver tudo ao máximo, a sofrer, e eu sem puder fazer nada para a ajudar…

- Talvez porque não haja ajuda possível! Ouve, Pedro, eu entendo que estejas preocupado comigo mas eu já não consigo ouvir-te dizer que tenho de seguir com a minha vida, que não posso continuar a lamentar-me pelo que aconteceu, sabes porquê? Porque eu lamento, eu lamento todos os dias!

- Não fiques assim, desculpa… - ele precipitou-se na minha direcção, perspectivando as forças, ou a falta delas, que me sucumbiam a alma a cada desabafo que o meu coração libertava – Vem cá…

- Eu lamento todos os dias o que aconteceu, e todos os dias eu desejo que as coisas tivessem sido diferentes, mas depois acordo e vejo que nada mudou, continua tudo triste… Tudo… - não aguentei muito mais, e agora com mais intensidade as lágrimas recolhidas pelo mesmo motivo que me levava o chorar, romperam estrondosamente no declinar do meu rosto que sem alternativa as acolheu

- Ei, anda cá… - vendo que eu não tomava iniciativa, Pedro puxou-me para o seu abraço, um abraço quente e reconfortante de irmão mais velho, que me recebeu com o cuidado de não atear em mim novas retaliações que me voltassem a magoar – Eu estou aqui, pequenina…

- Nunca pensei que pudesse doer desta maneira! Dói tanto, Pedro, tanto…

- Tens o coração destroçado, é natural, mas eu estou aqui contigo e não vou a lado nenhum!

- Obrigada… Obrigada por teres tido tanta paciência comigo e não desistires de mim…

- Nunca me passou isso pela cabeça, nunca! – as suas mãos em contorno do meu rosto forçaram-me a olhar para cima e encará-lo – Vá, agora vai deitar-te e descansa um pouco.

- Não, eu vou-me arranjar e vamos sair para o nosso passeio!

- Tens a certeza? Se não tiveres vontade não tens de ir, por mim tudo bem, a sério…

- Não, eu quero ir! Preciso de ver coisas novas e espairecer, este passeio vai fazer-me bem! – proferi numa lividez mínima de esperança que um sorriso recado acolheu, no rasgo dos meus lábios

- Pronto, então vai lá, eu vou mandar vir o pequeno-almoço entretanto! – ele beijou-me cuidadosamente a testa antes de eu direccionar o meu corpo à porta da casa de banho

Enxuguei as lágrimas calmamente e caminhei de encontro a um duche de dez minutos, onde depois vesti uma roupinha cómoda e fresca para aquele dia de Verão tipicamente londrino, que fazia o sol madrugador abrasar energeticamente toda a cidade.
Rematei o meu preparo ao perfumar por fim o pescoço com duas borrifadelas de bálsamo, ficando pronta num instante. Ainda assim sem me apressar demasiado, pois felizmente a responsabilidade e compromisso que tivera na rotina que me fora incumbida ao longo da semana, acabara, e agora a minha agenda deliberava-se livre de contratos para poder dedicar o meu tempo a outros prazeres pessoais.


Voltei ao quarto logo que pronta para abandoná-lo, mas não sem antes passar pela mesinha do pequeno-almoço que Pedro mandara servir especialmente para mim. Enchi uma chávena de café que se denunciou forte pelo odor que transbordava e peguei um crossaint que fiz questão de comer sem qualquer condimento e depois, com a chávena entre as mãos, fui terminar o meu café para a varanda que me atraía pela belíssima vista desde o primeiro instante em que entrara naquele quarto.
Dei um trago da bebida e libertei um suspiro forte e solitário ao divagar os olhos sobre a paisagem, fazendo-me sentir estranhamente deslocada no tempo e no espaço. Não podia continuar a fazer-me prisioneira daquele sentimento por causa de um romance que não tinha sido brindado por um final feliz, sabia que não podia ficar daquele jeito para sempre porque tal como Pedro me dissera, eu tinha uma vida pela frente e tinha que agarrá-la, não importa os desafios e dificuldades que pudesse encarar, tinha de arranjar forças e mostrar a todos que estava bem, que tinha conseguido ultrapassar aquele mau bocado e que tinha dado a volta sozinha… Ainda para mais agora que estava somente a umas horas de voltar a casa, e alentada a começar de novo.

- Vamos? – a figura querida de Pedro que se aproximou inesperadamente à minha, pôs fim ao monólogo que eu debatia interiormente, colocando em questão uma proposta que eu já tinha aceite  

Perdurámos numa manhã que se revelou bastante agradável e descontraída pelos recantos mais emblemáticos de Londres. Como não iríamos ter tempo de ir a todos os sítios que queríamos, procurámos por sugestões que nos foram dadas na recepção do hotel quanto aos sítios que não poderíamos deixar de visitar e seguimo-las à risca, como um itinerário que traçámos sem falhas.
Passámos por Convent Garden, um local bastante agitado e povoado por imensos turistas, que tal como nós passavam para assistir a performances de artistas de rua e curiosamente de cantores de Ópera, que actuavam em espectáculos que a mim me deslumbraram. Como não podia deixar de ser, e foi algo que eu sempre quis, arrastei Pedro comigo a andar na London Eye, onde radiantes pela imagem privilegiada, pudemos olhar a cidade numa outra perspectiva – divinal – diria mesmo. Progredimos com o passeio e estendemo-lo pelos jardins do parque Hampstead Heat, lugar onde demarcámos o final daquela manhã.

- Estás mais calminha? – enquanto atravessávamos a ponte que fazia a ligação entre duas margens do enorme lago que enaltecia o parque, Pedro decidiu-se por inquirir-me quanto ao meu estado de espírito, visto que desde que saíramos do hotel que ele não se atrevera a tocar no episódio do início desta manhã

- Sim, estou… Isto está a fazer-me bem, mantém-me a cabeça ocupada e dá para descontrair um pouco. – proferi com um sorriso entre as palavras, como sinal de garantia de estar a dizer-lhe não mais que a verdade

- Ainda bem, é bom ver-te mais animadita!

“E por quanto tempo mais?” – foi esta a pergunta que eu fiz a mim mesma depois de ouvi-lo, mas continuei a manter o mesmo sorriso de há pouco, de maneira a não levantar suspeitas que viessem a desfazer aquele minha nova maneira de parecer e estar.

- E que tal se fossemos petiscar alguma coisa? Já é hora de almoço…

- Acho uma óptima ideia!

- É?

- Hum, hum! – a minha cabeça vergou-se delicadamente duas vezes, e rapidamente senti-o contente por me ver alinhar nos seus desafios com satisfação

- Então ‘bora… Vamos ver se encontramos algum restaurante nas redondezas! – sempre com um extremo cuidado e carinho que desde sempre nos habituámos a ter um para com o outro na nossa amizade de longa data, Pedro contornou os meus ombros com o seu braço direito mantendo-me junto a si, e foi desta maneira que nos deslocámos aos subúrbios  



***


- Isto é lindo, não me importava nada de viver aqui!

Perto da Oxford Street encontrámos um pub com uma explanada extremamente convidativa e acolhedora para um almoço, e o ambiente em nosso redor não poderia ser melhor.

- Concordo contigo, ainda assim eu não era capaz de voltar a trocar Lisboa nem por esta nem por qualquer outra cidade do mundo! – argumentei, muito certa de que a minha casa era e continuaria a ser só uma e essa estaria sempre em Portugal

- Ena, senhoras e senhores, parece que temos aqui uma patriota! – ele não se evitou em fazer piada do meu desabafo e eu não resisti em fazer-lhe uma careta que acabou por despoletar aos dois uma corrente saudável de gargalhadas, aquando debaixo de um enorme guarda-sol nos deliciávamos com um prato típico londrês

Minutos depois ouvi o som despertar o meu telemóvel que mantinha guardado na mala, mas não o tirei para atender, não tinha por hábito atender telefonemas nas refeições e para além disso não iria interromper a conversa que eu e Pedro debatíamos, mas tornou-se impossível continuar a mantê-la naquelas condições.

- Não vais atender? – estranhando o meu sentido absorto ao telefonema, Pedro optou pela pergunta mais razoável e óbvia que me poderia fazer

- Não costumo atender chamadas quando estou à mesa, tu sabes…

- Podias ao menos ver quem é, pode ser importante… - convencida pelo seu raciocínio, pousei os talheres sob o prato, alcancei a minha mala e do bolsinho interior retirei o telemóvel, vendo estampado no visor o emissor da chamada

- É o meu irmão… - proferi com um sorriso espontâneo ao enxergar o seu nome e fotografia no ecrã táctil

- Então? Atende!

- Não te importas?

- Que disparate, Joana… É claro que não! – ainda ponderei levantar-me da mesa e afastar-me um pouco, mas recorrendo ao facto de não ter necessidade, pois ao contrário de outras esplanadas da zona, naquela não havia grande confusão e por isso atendi ali mesmo

- Olá, meu pestinha! – saudei com um imenso sorriso rasgado

- Olá mana!! – o seu entusiasmo ao ouvir a minha voz manifestou-se num tom elevado da sua, que se detalhou perfeitamente ao meu ouvido onde mantinha preso o telefone

- Então, como é a nova vidinha? Como estás? – entrancei as pernas debaixo da mesma e coloquei-me à vontade para os minutos seguintes que já adivinhava deleitantes pelo simples facto de poder matar saudades de uma das pessoas que mais amava e que não tinha perto de mim, pelo menos não fisicamente

- Bem… Estava a pensar em ti e fiquei com saudades… E tu, mana, como estás?

- Bem… Estou bem também!

- Hum… Já há uns dias que não dizes nada, costumávamos falar todos os dias e deixaste de ligar de repente, fiquei preocupado… - o seu arrastar de voz na última parte do discurso deu-me a indicação exacta que ele procurava algum tipo de explicação, por muito simples que fosse e que o deixasse somente mais sossegado, pela minha ausência na retoma aos telefonemas para outro lado do oceano

- Não, piolho, está tudo bem! – esclareci sem reticências – Tenho andado ocupada com trabalho, sempre de um lado para o outro que mal tenho tempo seja para o que for, e como o nosso fuso horário não é compatível tornou-se difícil para mim ligar-te…

- Desde que não tenha acontecido nada, tudo bem… - por reconhecer-lhe a jovem personalidade, pude traduzir-lhe num efeito de perspicácia aquele comentário para uma atitude afectiva de um miúdo meigo e carinhoso que eu sabia ele ser

- E então, diz-me! Há novidades por esses lados?

- Novidades? Não, nem por isso, está tudo na mesma! – a sua forma rápida e despachada de falar, denunciou-o às minhas malhas

- Salvador…?

- Sim…?

- Estás a esconder-me alguma coisa?

- Eu?! Eu não estou a esconder-te nada! – mesmo que não estivesse ao lado dele, mesmo que não lhe visse o rosto, consegui imaginar-lhe cada gesto corporal, cada expressão facial que o acompanhavam num prenuncio omitido

- Eu conheço esse tom de voz, Salvador…

- Qual tom de voz?

- Oh, está bem! Não queres contar, pois não? Não contes, então! – comecei com ele  o jogo do silêncio, que por conhecê-lo tão bem sabia ir fazê-lo demover, mais tarde ou mais cedo

- Ok, ganhaste! – por saber, talvez, que não iria conseguir levar a melhor de mim, e por também não conseguir esconder-me um segredo por muito tempo, achou por bem desistir e acabar o assunto que mesmo sem querer tinha começado – Então é o seguinte… Eu acho, eu acho que o pai tem uma namorada…

- O pai o quê? – senti a necessidade de colocar a questão, pois julguei não ter ouvido bem o que ele me havia dito

- É o que ouviste, ele tem andado a sair com uma mulher…

- Tens a certeza do que estás a dizer?

- Tenho. Ela trabalha com ele no hotel, já os vi imensas vezes juntos e ele já a trouxe cá a casa!

- Hum… - tentei manter-me à margem do assunto, não me quis envolver, não quis sentir nada em relação àquilo… o que o meu pai fazia ou não com a sua vida pouco ou nada me interessava, menos quando a sua engendra me envolvia a mim ou o meu irmão, claro, e as suas aventuras amorosas era algo que eu fazia por me passarem ao lado

- Ficaste triste com o que eu disse? – pelo silêncio demasiadamente prolongado que eu mesma impus, Salvador receou a minha resistência àquele assunto, mas não havia nada a recear, eu estava perfeitamente calma e nada daquilo me afectava directamente

- Não, claro que não… - assegurei com total honestidade – O pai tem todo o direito de seguir com a vida dele para a frente, e se quer fazê-lo ao lado de outra mulher…

- Acho que é a primeira mulher que ele tem depois da mãe…

A mãe… A minha mãe. Que saudades, que falta ela me fazia, um vazio incapaz de ser preenchido com o amor ou o afecto de qualquer outra pessoa. Um lugar insubstituível que ela deixara e que não podia ser ocupado por ninguém. Queria muito tê-la ali, meu Deus, o que eu mais queria era tê-la ali comigo, pois só ela poderia dar-me o que eu precisa sem sequer ter que lhe pedir… Só a minha mãe sabia o melhor para mim, que conselhos sábios e minuciosos me dar, o carinho e apoio que mais prescindiria dela, a força e coragem que ela com certeza me transmitiria para ultrapassar de uma melhor maneira aquele momento menos feliz da minha vida, fazer-me-ia sentir menos sozinha e desamparada, o ombro que me acolhia para chorar, os abraços, os beijos, tudo o que só uma mãe pode dar e fazer por um filho, e eu deixara de ter isso tudo.

- Escuta, Salvador, se realmente o pai tem uma namorada, só temos que respeitar, é uma decisão dele, um assunto dele…

- Eu sei, mas ela que não pense que vai substituir a mãe porque não vai e eu não vou deixar! – era naturalmente mais difícil para uma criança aceitar o recomeço de uma vida a dois de um pai, e com Salvador não era diferente, mas sabia que ele compreenderia e não iria causar dificuldades na suposta relação

- De certeza que a intenção dela também não é essa… Dá-lhe o benefício da dúvida, deixa que ela se aproxime, quem sabe até podem ficar amigos…

- Pois, não sei, talvez…

- Salvador, quanto a isto vais-me prometer que te vais portar bem, como um menino crescido e vais respeitá-los sem criar confusões, está bem? – da melhor forma que pude tentei com que ele se predispusesse confortavelmente perante aquela nova situação

- Sim, não te preocupes… Eu sei comportar-me.

- Eu sei que sim, piolho. – sorri bastante orgulhosa, pela uma pessoa respeitadora e educada que ele sabia ser

- E então e tu? Como vão as coisas entre ti e o Ruben? – quando eu pensava que o cenário não poderia ficar mais negro, eis que Salvador trás à baila um novo tema de conversa, um tema o qual nunca mais tocáramos e que eu fizera intenção de tal, fazendo-me sentir afrontada pela rápida e furiosa entrada num terreno palpável e perigoso… para mim

- As coisas entre mim e o… E o Ruben…? – gaguejei em sonância da minha evidente falta de palavras, olhando seguidamente Pedro à procura de algum apoio

- Sim… Ele está aí contigo?

- Salvador, eu e o Ruben… - preparava-me – ainda não sabia bem como – para lhe dizer que não, o Ruben não estava comigo, de nenhuma maneira possível e imaginável

- Quero falar com ele… Deixas-me falar com ele?

- Não, ouve-me, o Ruben… - fechei os olhos e apertei a cana do nariz com o indicador e o polegar mas isso não iria com certeza evitar o declive das lágrimas que já prosperava, e para dificultar ainda mais o meu discurso, ele voltou a interromper-me, como se não me estivesse a ouvir realmente

- Não me vais deixar falar com ele? Porquê?

- Não, Salvador, espera… Ouve-me! És capaz de fazer isso? Podes-me ouvir? – tentei manter a calma ao máximo, quando na verdade só queria extravasar o sentimento interior que me consumia mais a cada dia

- Desculpa… Fala… - finalmente o ficha onde ele deveria estar ligado foi cortada e uma neblina profunda de silêncio foi dispersa entre nós, onde a próxima palavra apenas me cabia a mim proferi-la 

- Eu e o Ruben não estamos mais juntos, o nosso namoro acabou…

- O quê? Porquê? – mais surpreso do que mostrou ficar, era impossível, e lá estava o que eu queria evitar… as perguntas

- Aconteceram muitas coisas entre nós, tivemos que nos separar. – só Deus sabia o quanto me custava tocar naquela assunto, ainda para mais ter que fazê-lo com uma tremenda passividade como se já nada me afectasse, quando na verdade só me apetecia chorar e chorar até não ter mais lágrimas para derramar

- Mas vocês… Tu gostavas tanto dele, mana! Vocês gostavam um do outro, eu vi quando estiveram cá… Não pode ter acabado assim!

- Mas acabou, e quanto mais cedo nos ambientarmos a isso, melhor.

- Mas eu gosto do Ruben, mana… - senti-o esmorecer com alguma brutalidade, pois tal como eu, ele não previra um desfecho tão sem gosto àquela história que tinha tido para ser continuada

- E eu também gosto dele, Salvador… Gosto muito, mas agora vou ter que gostar dele à distância, a vida é assim… Umas vezes ganha-se e outras vezes perde-se!

- E tu perdeste a pessoa de quem gostas, e isso é triste…

- É, é muito triste, mas vou ter de aprender a viver com isso e fazer com que cada dia doa menos…

- Vai sempre doer, mana…

- Não, Salvador, não vai… Vai chegar um dia em que eu vou acordar e não vou sentir mais nada, não vai doer mais… O tempo vai ajudar. – era esse o meu maior desejo e a esperança na qual eu depositava toda a minha fé, aguardando que o próximo dia fosse um melhor dia… sem o grande amor da minha vida – Piolho, eu vou ter de desligar, depois falamos, sim? – o sinal de Pedro a apontar para o relógio fez-me tomar noção das horas, que se encontravam a caminho do aperto para o voo de regresso

- Eu ligo-te! Espero que fiques bem… Não te quero triste!

- E eu não quero que te preocupes comigo. – contrapus, fazendo um esforço acrescido para libertar a linha que me cosia os lábios e fazê-los sorrir – Fica bem, piolhito… Adoro-te!

- Eu também te adoro, mana… Beijinhos. – ele apoiou-me na despedida, que embora breve e solene, antecipava já ao vazio que iria retomar em mim e que ele preenchera nos minutos anteriores, no instante em que a chamada fosse findada

- Um beijinho grande, e porta-te bem! – num suspiro deturpado pela saudade que iria regressar entre nós, coloquei fim à ligação num só toque de polegar no ecrã e olhei Pedro, que de conta do almoço paga já me esperava para cursarmos pelos mesmos trilhos que nos trouxeram ali

- Estás pronta? Ainda temos que passar pelo hotel antes de irmos para o aeroporto…

- Sim, vamos. – concluí, e acompanhei-o para o regresso



***



Lembro-me de gostar de aeroportos desde sempre… Do ambiente inusual vivido em cada recanto, os sentimentos as emoções que guardam, de tudo o que eles representam para quem chegava e para quem parte.
Enalteciam-me as despedidas, a vinda da hora do adeus sem severidade do regresso, as lágrimas de despedida, a ansiedade na barriga pelo embarque próspero num novo destino, em novas oportunidades, e emocionavam-me as chegadas… A agitação do reencontro, os sorrisos, os abraços apertados, os beijos ansiados. Toda a atmosfera embriagada por uma quantidade exorbitante de pessoas num só único lugar, a parafernália de línguas, de culturas, mistérios empacotados nas bagageiras… E nos arrombos do aeroporto de Londres o cenário não fugia em nada à realidade.

- Joana, vamos… Já abriram as portas de embarque! – Pedro deu-me a mão para que eu não ficasse para trás nem me perdesse no meio da confusão, e em passadas rápidas, quase de corrida, fomos fustigando-nos o melhor que nos foi possível por entre a multidão

Tínhamos ficado retidos mais de uma hora à espera de luz verde para entrarmos no avião, que “por imprevistos de última hora”, tal como a companhia se havia justificado, fora impedido de voar até Lisboa no horário antevisto.

- Vamos perder o avião, Pedro… - proferi alarmada no instante em que dei uma rápida e sucinta vista de olhos pelas enormes filas que se alistavam à nossa frente, bem como as dificuldades que tínhamos em alcançar a zona de embarque

- Não, não o podemos perder… Anda, vamos! – ele puxou-me com mais força e fez-me correr sem parar um único segundo, quando o fiz já tínhamos mostrado as nossas passagens e instalado nos nossos lugares no interior do avião

Saber que estava somente a um par de horas do regresso a casa, flagelava-me, assustava-me de uma maneira desconfortavelmente aterradora… Não sei se por voltar à monotonia e solidão dos meus dias, se por ter de enfrentar um destino só meu, os fantasmas de um passado ainda muito recente, ou então as duas coisas.
Tinha a clara noção do que iria fazer quando chegasse… Iria preparar as malas e mudar-me para a minha antiga casa, aquela onde morara com os meus pais nos tempos em que ainda éramos uma família… feliz. E quanto àquela dor, àquele sentimento que o meu coração insistia indubitavelmente em conservar, a verdade é que não podia continuar presa a lembranças que guardava de Ruben e isso era certo, portanto iria arrumar definitivamente cada uma delas numa caixinha arrecadada a um canto do meu peito e trancá-la, esperava eu, para sempre.
A minha vida começava ali e era tempo de me agarrar a ela.

- Pedro, Joana… Aqui, aqui! – depois de aterrarmos, e devido à agitação que não era de perto comparada à de Londres, enquanto percorríamos o aeroporto conseguimos encontrar sem dificuldades a Ana, a namorada de Pedro, que se comprometeu a ir buscar-nos e nos acenava freneticamente

- Amor, que saudades! – logo que chegámos junto dela, Pedro não hesitou em abafar o seu afastamento de duas semanas com um enorme e forte abraço que a fez descolar os pés do chão e encheu-a de mimos, demasiadamente ausentes nos últimos dias

- Muitas saudades, muitas saudades! – permanecia a alguns passos deles e vi-os partilharem um beijo apaixonado, em conformidade do amor que os unia… estanquei o meu olhar ao chão e sorri para mim, contente pela felicidade plena deles, se não fosse eu, pelo menos alguém estava feliz – Joana, que bom ver-te! – depois de darem um tempinho um ao outro, Ana dirigiu-me a mim com a meiguice e simpatia que lhe era característica e partilhámos ambas de um abraço curto e dois beijinhos – Como foi o voo?

- Foi bom… Calmo, deu para descansar um bocadinho. – respondi com um sorriso leve que foi acompanhado pelo de Pedro, que pelo seu jeito denunciava o fim satisfeito de mais uma jornada a meu lado

- Bem, e se formos embora? Já estou cansado de aeroportos, aviões, viagens… Quero ir para casa! – nisso estava completamente de acordo com ele… estava esgotada dos últimos dias e a única coisa que queria era o conforto de uma casa com caras conhecidas, em vez dos paquetes do serviço de quartos ou das camas vulgares de hotéis

Segui ligeiramente atrás deles até ao carro que o meu melhor amigo tomou em sua ordem conduzir com a Ana do seu lado e comigo praticamente esquecida nos bancos de trás. Dei-lhes espaço para falarem das suas lidas enquanto casal e a Pedro para lhe contar os pormenores da nossa viagem, e com isso aproveite-me para me colocar um pouco à parte das conversas onde não queria nem tinha disposição em entrar.
Cerca de meia hora passada e já podia ver a casa dos meus avós, onde eu planeava passar só mais aquela noite. Pedro parou o carro no largo do colossal chafariz e perto da escadaria empedrada que se estendia até ao cimo da entrada, e finalmente em bom porto abandonei o veículo, voltando a pisar o solo das minhas raízes.

- Tens a certeza que não precisas de ajuda com as malas?

- Tenho, tenho a certeza, não te preocupes… Eu dou conta do recado. – do lado de fora olhei Pedro da janela do lugar de pendura que Ana ocupava

- Vem jantar connosco logo à noite, vou fazer um prato especial… - a namorada do meu melhor amigo propôs-me um convite tentador, porém que eu tive de recusar… oxalá não o tivesse feito

- Obrigada pelo convite, Ana, mas acho que vou aproveitar esta noite para descansar… Amanhã tenho as mudanças para a minha antiga casa para fazer, e além disso vocês devem querer estar sozinhos… Têm muito que namorar! – o meu comentário, embora que espontâneo, originou sonantes gargalhadas entre nós, que nos preencheram a aura por completo

- Pronto, tu é que sabes, mas o convite mantém-se em pé. Se entretanto mudares de ideias, aparece lá!

- Claro, eu depois aviso, obrigada! – agradeci educadamente, mas sabendo em primeira mão que esse aviso não iria ser dado, pois apesar de muito agradecida pelo carinho e amabilidade, eu não pretendia ir a esse jantar

- Então vá, miúda, fica bem e juízo nessa cabecinha!

- Eu sou uma rapariga ajuizadíssima, Senhor Pedro, já devia saber isso! – relembrei com o meu indicador arrebitado no ar, anulando qualquer hipóteses de dúvida de qualquer parte, e uma despedida breve tomou o seu lugar no nosso diálogo

- Adeus, Joana, um beijinho! – saudou amistosamente Ana, acompanhada pelo aceno de Pedro

- Adeus, fiquem bem! – acenei também num curto gesto e vi depois o carro arrancar para longe dos jardins da vivenda da minha família

Voltei a pegar nas minhas malas, uma em cada mão, e preparei-me para subir os quatro lanços intervalados das escadas… Ter-me-ia precipitado a elas se não desse conta do carro desportivo estacionado apenas a uns miseráveis metros de distância. Reparara nele logo que chegara, mas agora que tivera oportunidade de olhá-lo melhor, fiquei intrigada, desmesuradamente intrigada.
Arrastei os óculos de sol para o topo da cabeça, esbugalhei ainda mais os olhos e percorri cada linha, cada curva do carro, cada pormenorzinho que me desse qualquer pista, qualquer indicação de quem seria.
Aquele BMW, aquela matricula… Não, não podia ser, não podia! O meu coração começou a bater mais forte e mais depressa, chocalhando numa arritmia desmesurada que me provocava um calor interior meramente desconfortável, as minhas mãos tal como as minhas pernas começaram a tremer como autênticas varas verdes e eu não sabia ao certo o que pensar. Tirei as minhas próprias conclusões… Aquele carro só podia pertencer a uma única pessoa, a um único homem, e eu sabia muito bem quem ele era. 

- Menina Joana… - por não ter levado as chaves de casa comigo, foi Leonardo que respeitando as suas funções diárias e num gesto habitual de cavalheirismo e cortesia, me viera abrir a porta, portando um sorriso afável e caloroso como sempre me recebia

- Leonardo, a minha avó? – já eu não fui tão subtil na minha entrada… invadi o interior como uma flecha disparada da mira de um arco, poupando-me a mim mesma a rodeios e indo directa ao que ali estava errado – Eu vi o carro lá fora… É o Ruben, não é? Ele está cá…!

- Ah… Sim, está… - a sua súbita palidez e falta de reacção só pioraram ainda mais aquela minha ânsia, que atava um nó ao topo da minha garganta obstruindo-me parcialmente as vias respiratórias

- E o que é que ele veio cá fazer? Veio à minha procura? – embora tenha lutado contra isso, foi inevitável não me ter enchido de esperanças, pois se Ruben procurava ali uma reconciliação, eu estava inteiramente disposta a voltar para ele, sem pensar duas vezes

- Hum… Não, menina, penso que não… - ele pareceu-me hesitante ao início mas parecia-me estar a falar a verdade, embora ela me magoasse, e magoou-me muito de facto, como se me tivesse sido roubada a minha última oportunidade de ser feliz com o homem que amava, porém ainda a vela de uma esperançazinha continuava acesa, e eu não queria apagá-la – O menino Ruben está com a sua avó na biblioteca…

- Com a minha avó? O que é que ele está a faz… Eu vou lá! – não me desvaneci em especulações nem em palpites, quando eu mesma podia com as minhas pernas e com os meus olhos, tirar as conclusões daquele cenário, que fora tudo menos esperado… para mim e talvez para todos

- Mas… Menina Joana… Espere! Menina! – sem querer dar importância às advertências de Leonardo, rodei os meus pés e apontei-os numa única e inquebrável direcção, e por me ter começado a afastar não tive certezas do que ouvi depois – Ele não veio sozinho…

O meu coração ansiava por poder ver uma só pessoa, aquela por quem ele chamava, e comandando a minha marcha compassada, porém vacilante, levou-me até ao lugar onde poderia encontrá-la. Esqueci-me das boas maneiras que desde muito cedo fora habituada e entrei na biblioteca num rompante e sem bater à porta.
Foi mágico. Vi-o. Olhámo-nos. A surpresa entre nós foi evidente mas eu estava tão feliz por tê-lo aliFoi a primeira pessoa que procurei e encontrei, deixando os meus lábios rasgarem-se num sorriso de fé e o meu peito abrir-se a novos sentimentos e encantos, mas de repente a magia acabou e toda aquela sensação de me poder vir a sentir viva de novo, foi levada de mim, tudo mudou ao perscrutar quem mais preenchia aquela sala… O meu sorriso esmoreceu, os meus olhos perderam a cor e por momentos o meu coração deixou de sentir. 
Foi só aí que tive tempo de encaixar o aviso que Leonardo me dera… Ruben estava ali e não viera sozinho. 




Boa noite, queridas leitoras! :)
Aqui está um capítulo novinho, espero que gostem e deixem 
os vossos comentários.

Beijinhos,
Joana :)