quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Capítulo 22 - Corações em fuga (Parte III)


















- Acho que não vou voltar a sair desta cama durante os próximos tempos. – a voz calma de Ruben escapuliu-se abafada contra a almofada e o ombro da mulher que considerava ser o amor da sua vida, que acolhia bem junto a si

Foi na alvorada do dia seguinte quando a manhã chegava ainda precoce e sem conseguir lutar mais contra as suas vontades, que ele trocou a frieza e solidão dos seus lençóis pelos de Joana, quando irrompeu secretamente pelo quarto de hóspedes pertencente ao grupo de meninas naquela semana, e subiu à cama onde a sua mais-que-tudo repousava em sonhos venturos.
Como se nunca tivessem parado de o fazer, assim que o sentiu chegar junto a si, o seu corpo gravitou de imediato contra o dele, encontrando rapidamente o ângulo perfeito para se aninharem.
Àquela altura Joana nunca pensara em vir a agir tão descuidadamente mas era difícil, quase mesmo impossível, medir a lógica; distinguir o certo do errado, quando o calor que Ruben irradiava a fazia sentir tão aconchegada e o corpo dele parecia corresponder tão bem às necessidades do seu.
Ela riu levemente daquele comentário, ainda de olhos cerrados, ainda a tentar acalmar a agitação do seu estômago que a despertava nos – para si já tão habituais – enjoos matutinos.

- Que horas são? – perguntou sussurrante, como se elevar a voz pudesse vir a deixá-la mais enjoada

- Ainda é cedo. Podemos ficar a dormir mais um pouco.

Mas Joana não conseguia voltar a adormecer. Um nó havia-se formado no cume da garganta, o estômago parecia ter conhecido o seu avesso e até o simples ato de respirar contribuía para a deixar mais nauseada pela mescla de perfumes que planavam o quarto, praticamente impercetíveis a um nariz humano comum, porém não ao nariz sensível de uma grávida.
Deitada no centro da cama com os braços de um Ruben quase adormecido em seu redor, esforçou-se por não fazer nenhum movimento que o alertasse e esperar que a vontade que tinha em correr para a casa de banho passasse, mas não passou, e quando a pressão no abdómen deixou de lhe dar tréguas, nenhuma outra solução lhe restou que não fosse desapegar-se do enlace dele, afastar as cobertas e correr para se debruçar sob a sanita.

- Joana? – ele ergueu o tronco com o mesmo rompante que sentiu o outro lado do colchão ser desocupado, e saltou imediatamente da cama para seguir atrás dela – O que é que se passa?

Quando entrou na casa de banho e a viu vergada na bacia, acendeu a luz que até então permanecia apagada, e ajoelhou-se atrás dela para lhe segurar o cabelo que caía despreocupadamente em torno do rosto. Com a mão direita que tinha livre afagou-lhe as costas em movimentos circulares e calmantes, esperando que de alguma forma a fizesse sentir melhor.

- Sentes-te melhor? – perguntou ao fim de um minuto ou dois, quando a sentiu começar a levantar e a viu pressionar depois a alavanca do autoclismo

Joana assentiu apenas e arrastou-se morosamente até ao lavabo para escovar os dentes.

- Esta é a fase da gravidez que eu estou desejosa que acabe o mais rápido possível. – confessou, a falar meio a sério e meio a brincar, enquanto colocava uma pequena porção da pasta dentífrica na sua escova elétrica

Ruben não pôde deixar de rir daquele desabafo quando a sorveu para dentro dos seus braços e lhe beijou carinhosamente o topo da cabeça.

- Vai passar… Desculpa. – ele pediu em compaixão, porque apesar de saber que aqueles sintomas eram nada mais que naturais no estado de esperanças, odiava não puder fazer muito que a ajudasse a aliviar aquele desconforto

Durante todo o tempo que Joana usou para escovar os dentes, Ruben não saiu do seu lado. Reclinou o corpo à parede mais próxima de si, e com as mãos resguardadas nos bolsos das suas calças do pijama, ficou a olhá-la através do espelho perfeitamente enquadrado no centro da parede.
Era um sentimento tão libertador poder finalmente ficar a admirá-la sem ter que recorrer a desculpas incoerentes e apressadas, olhá-la simplesmente porque podia; porque Joana era a mãe do seu filho; a mulher com que um dia, tinha a certeza, iria casar, e esse pensamento fez crescer em si a sensação de que naquele momento se tinha tornado o homem mais feliz à face da terra.

- Acho-te a mulher mais bonita do mundo, sabias? – perguntou-lhe com toda a adoração que podia suportar, quando os pensamentos se tornaram demasiados para serem só seus e tinham de ser partilhados com ela

Joana jogou fora a água com que tinha bochechado a boca, e esticou o braço para alcançar a toalha e secar os lábios.

- E tu és um tolo, sabias? – ripostou com um sorriso divertido enquanto o olhava através do espelho para depois se voltar para ele – És capaz de dizer isso depois de me teres visto, literalmente, a deitar o jantar fora?

- Digo e vou continuar a dizê-lo até ao dia em que decidas acreditar em mim.

- Não sei porque é que ainda me dou ao trabalho de discutir estas coisas contigo.

- Sinceramente eu também não sei. – concordou também, entrando no mesmo espírito de chacota com ela, logo que se voltou a aproximar – Comigo não tens hipótese.

- Ai não? – Joana desafiou

- Não. Se sentir que te deva dizer o quão deslumbrante te acho; o quão linda tu és, independentemente da ocasião, digo e pronto. – asseverou, beliscando-lhe suavemente a pontinha do nariz entre o seu indicador e polegar, deixando-a a rir  

- E tu também sabes que não é aconselhável contrariar uma mulher grávida, não sabes? – as suas sobrancelhas arquearam perfeitamente

- Esse é um conhecimento que vou aplicar com a experiência. – Ruben piscou-lhe o olho num jeito cúmplice e comprometido – Ainda tenho tanta coisa para aprender…

- Ainda tens tempo, não te preocupes. – sossegou-o imediatamente, afinal de contas esta era a primeira experiência de uma gravidez na vida dos dois, e ainda havia muito para aprenderem um com o outro

Joana acabou por lhe contornar o tronco com os braços e por alguns instantes deixaram-se ficar em silêncio.

- Estás a pensar em quê? – também ela partilhava da mesma sensação de poderem voltar a ser aos poucos, até restaurarem por completo toda a confiança que um dia tiveram, um livro aberto um para com o outro

- Estou a pensar nas saudades que tinha tuas… De conversar contigo até sobre as coisas mais palermas. – declarou com um sorriso – Desde o momento que chegaste a esta casa e até há umas horas atrás que não tínhamos trocado mais de duas ou três palavras, e quando o fizemos foi para discutir. E eu odeio quando discutimos. Não quero mais fazer isso.

- Acabaram-se as discussões entre nós. Não há nem vai haver mais motivos para isso.

- Ainda bem. – ele suspirou aliviado e trouxe as mãos de Joana até aos seus lábios para beijar delicadamente – Queres que te prepare um chá? Alguma coisa para comer?

- Não, não é preciso. Só quero dormir mais umas horinhas.

Ruben concordou e levou-os de volta para o quarto, onde debaixo dos cobertores encontraram de novo, e instantaneamente, o seu lugar.
Já aquando confortáveis nos braços um do outro, ele não conseguiu evitar de perambular por um instante por baixo dos lençóis até se encontrar ao nível da barriguinha de Joana para falar ao seu bebé.

- Vais deixar a mamã descansar, não vais, Pêssego? – sussurrou, mesmo antes de lhe beijar a pele que ele mesmo tinha descoberto

- Pêssego? – Joana riu com adoração – É assim que lhe vamos chamar?

Regressando debaixo das cobertas para olhá-la, deixou o seu corpo pairar sobre o dela no processo.

- A ideia foi da Sofia, e até descobrirmos se é menino ou menina…

- Eu gosto da ideia. – acabou por aprovar, torneando-lhe a face delicadamente com a mão, gostando da fricção que a barba fazia na polpa dos seus dedos

Ruben beijou-lhe o queixo, depois o peito e voltou a descer.

- Mal posso esperar para te conhecer. – confessou com um brilho no olhar que porém Joana não pôde ver, logo que regressou junto do ventre e o acariciou, como só ele sabia

Era difícil para Joana não se emocionar com qualquer situação que mexesse com os seus sentidos, e presenciar todo o entusiasmo que Ruben mostrava ter cada momento um pouco mais, em vir a ser pai, deixava-a num completo holocausto de emoções. Esperava intimamente que conversar com o bebé se torna-se num hábito que gostava de o ver levar até ao final da gestação.  
Não foi muito tempo depois, e devido ao cansaço que os corrompia, que voltaram a adormecer só para despertarem nas duas horas seguintes, quando os primeiros raios de sol começavam a espreitar os jardins da vivenda.

- Ru, tenho fome. – Ruben acordou com o queixo e os braços de Joana pregoados em seu peito, e o olhar dela projetado diretamente na sua direção

- Bom dia. – gracejou, com um sorriso preguiçoso a cobrir-lhe uma cara sonolenta

- Bom dia. – desejou também, passando logo e mais uma vez à parte mais importante – Tenho fome.

Ruben espreguiçou-se debaixo do corpo dela para desentorpecer os membros e com isso livrar-se de toda a dormência.

- Que horas são?

- Sete. – Joana respondeu, acabando por se sentar em cima dos seus calcanhares e ao lado do corpo dele

- Tens fome, é? – ele afastou as cobertas e puxou o corpo para cima e para trás, para vê-la sorridente a consentir vigorosamente com a cabeça – Então vamos desder, que eu preparo o pequeno-almoço para nós.

Por causa dos enjoos, normalmente e apesar de não ser aconselhável, Joana tinha-se acostumado a saltar a primeira refeição, mas a partir daquele dia essa rotina iria conhecer uma nova transformação. Parecia que até o bebé se começava a adaptar ao novo ponto de viragem na vida dos pais, e por isso procurava por novas fontes de energia.
Passaram a cara por água morna e saíram do quarto pé-ante-pé, de maneira a não incomodarem ninguém que pernoitava no mesmo corredor, e desceram ao andar debaixo para enveredar por uma cozinha que aos poucos amanhecia.

- Apetece-te comer alguma coisa em especial? – ele perguntou-lhe com carinho, começando a olhar o interior do frigorífico

- Qualquer coisa para mim está bem.

- Queres panquecas recheadas com compota de morango e nutella? – aquela era uma das suas especialidades secretas que em tempos tinha feito delicias ao paladar e coração de Joana

No entanto ela torceu o nariz rapidamente. Embora durante toda a sua vida tenha tido um dente doce, o chocolate e algumas outras doçuras tinham vindo a deixá-la nauseada nos últimos dias.

- Vou tomar isso como um não. – confirmou, quando a olhou acima do ombro e voltou a procurar – Então que tal croissants caseiros que a Glorinha nos deixou, e torradas acompanhadas de um bom café?

- Não posso beber café…

Ruben esbofeteou-se imediatamente em pensamento.

- Desculpa, esqueci-me. – começava a sentir-se um amador e depressa tentou encontrar outra solução, desta vez ao espreitar os armários – Cereais?

Joana agitou a cabeça em conceção negativa. A simples recordação do sabor a leite quase a fez enjoar de novo.

- Vais ter que me ajudar aqui, Sra. “Qualquer coisa para mim está bem”… Estou a ficar sem ideias.

Ela acabou por rir de embaraço em colocá-lo naquela posição e foi para junto dele quando contornou a bancada.

- Waffles com iogurte natural; pedaços de fruta e chantilly. – ela ditou, como se tivesse agora mesmo memorizado uma ementa que nem sequer havia sido prescrita por si – E sumo de laranja.

- Uau! Sabes exatamente o que queres. – Ruben espicaçou em brincadeira, porém olhando-a com uma seriedade quase incrédula – Tinha-me ajudado se tivéssemos logo começado por aí.

- Desculpa. – a sua mão compadecida tocou-lhe o peito áspero e torneado – Nem para mim é fácil decidir o que comer… Às vezes o que comi há apenas umas horas, agora pode deixar-me completamente agoniada.

- Não tens que pedir desculpa. – ele disse exibindo o seu lado compreensivo, quando não resistiu em tocá-la também, a ela nas faces frescas e perfeitamente esculpidas, desnudadas de qualquer maquilhagem – Até porque é aqui este pequeno general que dá as ordens. – do rosto dela as suas mãos voaram então para lhe acariciar a barriga, não querendo perder uma oportunidade que tinha para fazê-lo – Só temos de respeitar o que ele pede.

Conseguindo convencê-la a sentar-se na bancada e simplesmente esperar, Ruben responsabilizou-se inteiramente pela confeção do pequeno-almoço. E naquele momento ele tinha tomado uma decisão: Todas as coisas as quais estavam restringidas da alimentação de Joana, estavam restringidas também da sua. Aquela gravidez era dos dois, então todos os esforços por esta implementados, Ruben pensou, tinham de ser feitos igualmente pelos dois. E naquela manhã iria começar já pelo café. O café escaldante, forte, que gostava de tomar simples; uma perdição que ambos partilhavam e agora um esforço que ambos iriam adotar até à chegada do bebé.

- O que foi?

Já com a mesa posta e recheada de todos os mimos que os vinham satisfazer, Ruben foi sentar-se impreterivelmente ao lado dela na bancada onde tranquilamente deram início a uma refeição simples, partilhada a dois.

- Nada. – ele respondeu com inocência impressa no olhar e um sorriso que se esforçava por esconder, enquanto a via deleitar-se com uma jorrada de chantilly que apinhava em um waffle

- A tua mãe nunca te ensinou que não é simpático olhares diretamente para as pessoas quando elas estão a comer?

- Mas eu nem acredito que sejas a mesma pessoa. A Joana que eu conheço é um pisco a comer, mas tu…

- Se te estás a preparar para me insultar-

- Não, nada disso. Só estava a fazer uma observação.

- Hum, hum. – o olhar reprovador que Joana lhe lançou foi o suficiente para fazê-lo repensar na escolha das suas palavras, e mais importante – na escolha das suas observações

- Aliás, agora que me lembro… Não eras tu que odiavas chantilly de morte?

- Era, mas já experimentaste comê-lo com estes waffles? É a melhor combinação de sabores do mundo! – o ar de aprazimento que lhe destingiu enquanto saboreava o que parecia ser a receita da felicidade, Ruben iria pessoalmente certificar-se, que nunca abandonaria o seu pequeno e precioso rosto 

A faceta séria que portava para mantê-lo longe de problemas acabou por cair, e ele então riu por vê-la assim e roubou-lhe uma dentada de waffle que Joana segurava entre os dedos.

- Ei! Restringe-te ao teu lado do prato.

- Tens razão, é mesmo delicioso. – garantiu, segundos antes de se perderem entre suaves gargalhadas – É verdade, e onde é que está o meu super, mega beijinho de bom dia?

- Não sei do que estás a falar… - ela falou despreocupadamente, voltando a pousar o copo de sumo de laranja natural, sob a superfície da bancada, depois de o ter feito voar até aos lábios

- Joana… - Ruben advertiu, tentando ao máximo parecer intransigente – O meu beijo?

- Pode aparecer alguém, Ru… - tentou justificar o mais plausível que conseguiu, mas mais justificações daquelas simplesmente não eram aceitáveis

- E se aparecer? Eu não estou mais preocupado com isso e tu também não devias estar. Esta situação toda termina hoje… Chega de nos escondermos.

Verdade era que enchia-a de confiança, certeza e fé, vê-lo tão determinado em querer pôr um ponto final àquele noivado e isso fazia com que não fosse capaz de resistir aos carinhos pelos quais Ruben tanto lutava. Não por muito tempo.

- Tu não desistes pois não? – inquiriu com um sorriso apaixonado, e já sabendo a resposta de antemão

- De ti? Nunca. – e mais uma vez lá estava aquela confiança, aquele poder de controlo que quase a deixava fora de si

Joana não esteve em posição de lhe continuar a negar o que quer que fosse e então inclinou-se na direção dele, repenicando-lhe um simples mas delicioso toque de lábios, para ser inquestionavelmente prolongado pelas vontades e bem-querer que Ruben tinha, quando ela se voltou a afastar e que se arrastaram para o canto da boca, a linha do maxilar e terminaram no pescoço, deixando-a deleitada e sem mais pensamentos coerentes.



***



 - Prontinho. – asseverou Ruben quando arrumou a mala de Joana no interior da bagageira do jipe e baixou a porta – Tens a certeza que que não queres ficar mais um pouco? – caminhou para junto dela que permanecia encostada à porta do condutor, sem vontade de a ver partir

- Tenho. Eu não quero cá estar quando as meninas chegarem… Quando a Inês chegar… Não estou pronta para vê-la depois de tudo…

- Ei, ei… - a sua voz transmitiu-lhe calma e tranquilidade quando teve necessidade de a interromper, e lhe albergou ao mesmo tempo o rosto entre as mãos – Eu não quero que te sintas culpada por nada disto que está a acontecer. Nada disto é culpa tua. Percebes o que te estou a dizer, não percebes?

Joana percebia, no entanto não deixava de ser uma situação desconfortável… para todos.

- É melhor começar a fazer-me à estrada, não tarda elas estão aí.

- Vais voltar já para casa?

- Não. Acho que vou passar em casa dos meus avós primeiro… - ela disse, pensando agora mesmo sobre o assunto – Quero explicar-lhes o que está acontecer connosco antes de partirmos para Nova Iorque.

Ruben consentiu.

- Eles sabem do bebé?

- A minha avó sabe, e sinceramente a esta altura o meu avô também já deve saber… Eles são unha com carne e não conseguem esconder nada um do outro, não por muito tempo, pelo menos.

- E sabem que sou eu o pai? – certamente que ainda não sabiam, pois nunca aceitariam comparecer ao seu casamento se fizessem a mais pequena ideia que o filho que a neta carregava no ventre era do noivo de outra mulher, e mesmo Joana acabou confirmá-lo com um aceno cético da cabeça – Então eu quero lá estar quando lhes contares, vamos contar-lhes juntos… Os teus avós são a família mais próxima que tens e eu sei o quanto eles significam para ti.

Joana não teve que concordar ou deixar de concordar com ele. Era indubitável e mais do que natural que era exatamente isso que iriam fazer, tal como todas as decisões futuras tomadas em prol da relação – iriam ser feitas juntos, lado a lado, inseparavelmente.  

- Isto está mesmo a acontecer, não está?

- Isto está mesmo a acontecer. – garantiu prontamente, o timbre a não deixar-se quebrar, a atitude mais determinada que nunca – E não há volta atrás, pois não? – não evitou em procurar saber, dúvidas que ainda pudessem assombrá-la

- Não há volta atrás. – mas Joana não só parecia como estava cem por cento segura daquilo que dizia

Ruben puxou-a para um abraço apertado e beijou-a terna e demoradamente na testa, que curiosamente se ajustava ao nível perfeito da sua boca. Como se por ironia do destino, a estatura de Joana tivesse sido gerada para se intercalar na sua. E então ajoelhou-se diante dela, segurando-a no lugar com as mãos vincadas um pouco abaixo das ancas.

- Até já, filhote. – ele acabou por lhe mimar a barriga com mais uma enxurrada de afagos e ela deixou-o, porque sabia que Ruben precisava, e quando terminou de o fazer elevou o queixo para olhá-la mesmo do sítio onde estava – Vemo-nos dentro de algumas horas.

O fardo de uma despedida, ainda tal como ele disse – seria apenas por umas horas –, deixava um sabor agridoce na boca de Joana. Dizer-lhe adeus sob os joelhos da promessa de se voltarem a ver num futuro propínquo, prescrito de planos para uma vida a dois, nunca atraíra um bom presságio e daí as separações dissaborosas e ingratas que advieram no passado. Esse pensamento percorreu a mente de ambos, apesar de nenhum querer tocar no assunto. Joana não iria aguentar se mais algum percalço se intrometesse nas suas vidas, e honestamente Ruben também não.

- Vem cá. – ela chamou-o para si fazendo-o levantar de novo, o olhar turvo pelas lágrimas que se esforçava para não deixar cair na frente dele

Colocando-se na pontinha dos pés para lhe contornar completamente o pescoço com os braços, as pálpebras de Joana cerraram-se no momento em que as testas se encontraram a meio caminho, num tombo delicado e necessário.

- Volta para mim. – pediu num murmúrio inabalado, tão profundo que Ruben pôde senti-lo ecoar nas paredes da sua alma

- Eu volto. – respondeu com a mesma emoção –  Assim que resolva esta situação toda e fique finalmente livre, vou a correr para ti. Eu sou teu, Joana. Sempre fui.

Ruben olhava-a com tanto amor, tanta adoração que foi impossível para Joana não se perder na cor dos olhos dele, as lágrimas a suspenderem-se nas pestanas.
Quando se beijaram avivaram em si aquela sensação de quem perde o folgo, e respirar deixa de ser uma necessidade; aquele apetite que não é saciável; quando os astros finalmente se alinham e o corações voltam a bater no ritmo certo. Uma mistura de sensações a aconteceram todas ao mesmo tempo. E até àquele momento nunca os lábios um do outro lhes pareceram tão suaves e apetecíveis.
Joana acabou por entrar no carro deixando ser Ruben a fechar-lhe a porta. Pressionou o botão para deslizar o vidro e deixá-lo apoiar os antebraços na ombreira.
 
- Por favor, conduz com cuidado. – alertou sinceramente, no seu instinto nato de proteção que sempre fizera recair sobre ela – Liga-me assim que chegares a Lisboa.

- Eu ligo, não te preocupes. – sossegou-o no mesmo segundo, enquanto cruzava o cinto de segurança na frente do peito – Espero que corra tudo bem aqui, e vai com calma… Sabes que não vai ser fácil.

- Eu sei. – ele suspirou e acabou por lhe sorrir suavemente, acariciando-lhe o rosto como se tentasse memorizar através do toque, cada linha, cada contorno do semblante mais perfeito que alguma vez vira – Faz boa viagem.

- Obrigada. Até logo.

Rodou a chave na ignição e engatou a primeira, cruzou somente a calceta traseira do jardim, pois mesmo antes de trespassar a saída da vivenda através dos portões elétricos que Ruben tinha previamente aberto, foi obrigada a parar quando o viu correr na sua direção, através do espelho retrovisor.

- Passa-se alguma coisa? – ela perguntou, subitamente preocupada logo que voltou a descer o vidro da janela

- Eu amo-te. – Ruben disse numa só respiração, quando inclinou a cabeça para o interior do carro, para olhá-la no fundo dos olhos aquando proferidas as palavras – Não podia deixar-te ir embora sem te dizer primeiro que te amo. Sabes disso, não sabes?

Joana encarou-o em silêncio por um largo minuto, como se tivesse desaprendido a falar. Por vezes Ruben tinha a capacidade de a deixar sem palavras, de a consumir ao ponto de a fazer perder a reação. E esta era uma dessas vezes, ele conheci-a tão bem.
Os seus olhos voltaram a lacrimejar, e desta feita sabia que não podia culpar as hormonas. Era ele. O responsável era ele. Achava que nunca iria ser capaz de se acostumar aos elogios espontâneos, aos mimos inesperados, aos desabafos do coração que Ruben não prescindia em partilhar consigo nos momentos mais imprevisíveis e casuais, e no fundo Joana adorava ver-se ser surpreendida por ele de todas essas maneiras.

- Eu também te amo. – acabou por confessar, a voz a deixar-se quebrar pela infinidade de comoções – Muito. – Ruben não precisou de ouvir mais nada, vergou o corpo o mais que pôde para dentro do carro para conseguir beijá-la completamente, e oh Deus, se beijou

As mãos de Joana soltaram o volante e foram pousar nas extremidades do rosto dele, puxando-o para si o mais possível até sentir o aroma da colónia da qual Ruben se mantinha fiel há anos, entranhar-se nos poros da sua pele.
Ele esticou o braço e soltou-lhe o cinto de segurança, tinha de a sentir o mais perto de si possível. Que se danassem as barreiras. Que se danasse tudo.
Separando as bocas apenas por um par de segundos, deixou-a sair do carro e assim que a trouxe de volta para o lado de fora viatura, o corpo dela era inteiramente seu. Empurrou-a suave e firmemente contra a porta que então já tinha fechado, as mãos pesadas sob a cintura, os dedos longos a vincarem-lhe a pele por cima das roupas. As línguas voltaram a invadir a boca um do outro sem um pedido de consentimento que já não era necessário entre eles, num beijo mais urgente e delirante que o anterior, a deixarem-se levar pelo que os seus âmagos ditavam, pelo que o sentimento queria.

- É melhor ires embora agora antes que eu não te consiga deixar ir. – a respiração dele era pesada contra as suas faces frias, o ar gélido da manhã a criar aquela pequena nuvem de neblina e orvalho aquando expelida pelos lábios

Joana soltou meia gargalhada intercalada por meio soluço de um choro muito leve, estrangulado pelas lágrimas de felicidade que agora lhe definam as sinuosidades das maçãs do rosto.
Voltou a beijá-lo uma última vez, e quando finalmente conseguiram separar-se, Ruben seguiu o carro até à estrada, já do lado de fora dos portões e ficou a vê-la desaparecer na linha do horizonte – um horizonte que esperou ele –, viesse carregado de promessas.



***



Mais tarde naquela manhã, pouco depois de as meninas terem regressado da despedida de solteira numa noite tipicamente lisboeta, que num dos aposentos do andar superior Ruben procurou por Inês, acabando por encontrá-la sem dificuldades e ao fim de pouco tempo, no interior do seu antigo quarto, rodeada por duas modistas e uma das suas melhores amigas que tinha trazido consigo da capital, para a última prova do vestido de noiva antes de subir ao altar.

- Ruben, não podes entrar aqui, estamos a aprovar o vestido. – exalou a amiga de Inês, que correu para a porta assim que o viu cruzar a ombreira

- Agradeço a tua preocupação relativamente a superstições, mas eu preciso de falar com a Inês.

- Falas depois de lhe colocares a aliança no dedo, agora estamos a prepararmo-nos.

- Camila, lê os meus lábios: Eu vou falar com a Inês. Agora. – ele declarou pausadamente num tom sério e absoluto, a conversa definitiva que queria travar com a sua quase-a-deixar-de-ser, noiva, não iria ser impedida nem que o Papa se intrometesse, e claramente não evitando um véu de sarcasmo usado nas suas expressões

- Deixa-o entrar. – Inês acabou por autorizar, olhando-os de soslaio acima do ombro

- Mas ele não te pode ver com o vestido antes do casamento, dá azar! – a rapariga de cabelo loiro-oxigenado afirmou como questão de facto, e com o indicador a perfurar o ar

- Deixa-o entrar, Camila! – ela voltou a insistir, descendo do escalão do pequeno banco que usara para facilitar a prova do vestido – Importam-se de sair? Eu preciso de falar com o meu noivo. – perguntou, dirigindo-se primeiramente às duas modistas de meia idade

Em silêncio e sem fazer quaisquer intervenções, ambas as senhoras pousaram os seus kits de costura, os quais serviram de auxílio a uns ajustes de última hora ao vestido, e acabaram por cruzar-se com Ruben à saída.

- Tu também, Camila. – ela advertiu, vendo que a amiga tinha ficado para trás – Por favor.

Olharam-se por fim quando o quarto esvaziou… Foi tempo de ficarem a sós. Agora não era só Ruben, mas também Inês sabia que algo tinha mudado na relação de ambos, e surpreendentemente estava disposta a falar sobre isso.

- O vestido é deslumbrante. – referiu ele passivo, num enxergo que lhe lançou ao tomar lentamente posse do quarto caminhando para o seu interior

- É, não é? – inquiriu retoricamente numa postura incrivelmente calma e modesta, enquanto dedilhava o cetim da saia do seu vestido, tirando um vislumbre melancólico da sua imagem refletida no espelho vertical do quarto – Queria usá-lo uma última vez antes de o arrecadar no fundo do armário, uma vez que não vai ter qualquer utilidade.

As sobrancelhas de Ruben crisparam no mesmo segundo que tomou conta do significado daquelas palavras, criando-lhe duas linhas singulares vincadas no meio da testa, e uma rotura de confusão foi-lhe refletida nos olhos.

- Eu não dormi nada a noite passada, Ruben. – Inês voltou a falar, para se desprender do seu reflexo que contemplava no espelho e procurar pela figura dele, quando torneou brevemente o corpo na sua direção

- Eu também não. – a não ser as últimas duas horas que foram passadas abraçado a Joana, mas isso, claramente, não lhe iria dizer – não havia necessidade

- Eu sei o que vieste aqui fazer. O que tens para falar comigo…

- Sabes?

Ela sorriu sem a mínima vontade quando o seu olhar procurou albergar-se ao soalho do chão. Tinha chegado a altura de jogaram todas as cartas sobre a mesa.

- Eu posso ser muita coisa, Ruben, mas estúpida, graças a Deus que não é uma delas. – o seu fáceis assombrou-se por uma realidade que então se estava a abater sobre eles – E posso também ter andado com os olhos fechados durante muito tempo, mas sou inteligente o suficiente para saber que te perdi.

O seu pensamento estava a correr a mil à hora. E estupefacto era decerto um adjetivo que fazia pouco jus ao seu estado de plena perplexidade, trucidado pelas afirmações dela. Pela postura dela. Definitivamente que este não tinha sido o cenário que idealizara quando procurou por todas as hipóteses imagináveis aquando se dirigiria a Inês com a sentença de colocar um ponto final a uma relação que não tinha sido liberada a ser vivida.

- Achas que consegues perdoar-me? – foi tudo o que ele conseguiu dizer naquele momento e só ao fim de algum tempo… não havia como negar, Inês sabia o que estava a acontecer

- Talvez um dia, não sei. – ela abraçou o próprio corpo, como se tivesse de recorrer a uma autodefesa para não sair ainda mais magoada daquela situação – Mas não me peças que o faça agora.

Ruben condescendeu em silêncio. Não podia exigir mais dela.

- Nunca foi minha intenção arrastar-te a ti e aos teus sentimentos para esta história. Nunca me passou pela cabeça usar-te, e se pensas que foi isso que eu fiz, volto a pedir-te desculpa pela forma errada como agi.

- Eu sei que nunca intencionaste usar-me para ultrapassares a tua antiga relação, sei que tentaste fazer-me feliz e até certo ponto conseguiste… Mas chega aquele momento que não dá para continuar a fingir. E Ruben… Tu não consegues continuar a fingir o quão apaixonado continuas a ser pela Joana. Esta semana deu para comprovar isso mesmo, e toda a gente nesta casa o sabe.

- Nem toda a gente…

- Toda a gente, Ruben. – Inês garantiu – Os teus amigos sabem-no também, só não dizem nada para me pouparem à vergonha.

- Não digas isso. – o seu timbre complacente, expressou a sua tentativa de remissão – E eles são teus amigos também.

Inês voltou a sorrir, porém preferiu não comentar.

- Tu és uma pessoa muito especial, mas nós não…

- Nós não escolhemos quem amamos. – Inês concluí-lhe o raciocínio, acabando por referir-se aos seus sentimentos por ele naquela teoria – Eu sei disso também. Só pensei que talvez, com o tempo, eu conseguisse fazer-te esquecer dela, mas estava errada… Não há tempo suficiente possível, que fizesse isso acontecer.

- Estás a ser tão compreensiva… - confessou enquanto a olhava num misto de curiosidade e cautela, esperando que a qualquer momento ela reatasse uma discussão voraz vinda do nada

Inês riu discreta e quase que milagrosamente por vê-lo tão deslocado assim. Sabia que Ruben não estava habituado a ver aquele seu lado mais compreensivo e humano e por isso mostrar-se tão admirado com ela, no meio de todas as circunstâncias. E chegava mesmo a ser triste e até ridículo, Inês pensou. Como é que estava disposta a fazer o compromisso mais importante da sua vida ao lado de um homem ao qual nem se dava a conhecer a cem por cento? De uma forma ou de outra, por estes ou aqueles motivos, aquele casamento não possuía alicerces suficientemente fortes capazes de sustentar uma relação que desde o seu começo vinha a mostrar ter tantas decadências, e por mais que lhe custasse a admitir, no fundo ela sabia disso.

- Eu sei que não fui a melhor noiva nem companheira nos últimos tempos, e desculpa por todas as discussões patéticas que causei entre nós. – admitiu, tentando ser o mais sincera possível – Eu amo-te, Ruben, mas amo-me mais a mim. E antes de trocarmos alianças juntamente com votos que sabemos que não iremos ser capazes de cumprir, vamos poupar as nossas famílias a uma cena, e terminar este relacionamento quando ainda somos capazes de controlar os ânimos e comportarmo-nos como pessoas civilizadas.   

Ruben continuava a ver-se ser surpreendido por tamanha maturidade que a via mostrar ter perante a situação. Sempre imaginou uma cena triste causada no altar quando não fosse capaz de pronunciar o “Sim, aceito” eterno.
Era esta a mesma Inês que o convencera a escolher Joana para sua madrinha de casamento na mera intenção de lhe ferir os sentimentos? A mesma Inês que tinha causado tantas discussões em ataques de ciúmes por vê-lo trocar um simples olhar com Joana? Partilhar o mesmo espaço com ela? Respirar o mesmo ar?

- Uma vez que estamos a ser sinceros um com o outro, eu tenho uma coisa para te dizer e prefiro que saibas por mim agora, do que venhas a descobrir mais tarde por outras pessoas. – ele respirou fundo, preparando-se para a confissão mais difícil que até então enfrentara

Intimamente, Inês quase que podia jurar saber o que estaria para ouvir da boca dele, no entanto permaneceu em silêncio enquanto o olhava com expectativa.

- O bebé que a Joana está à espera… É meu. É o meu bebé. – ele evitou rodeios, índio direto ao assunto - foi como tirar um penso rápido num rompante súbito

E foi exatamente para aquela evidência que as suas suspeitas tinham apontado. A sua premonição estava certa, e apesar de ter criado as suas próprias pressuposições, ouvi-lo proferir a confirmação das mesmas, despertou a dor aguda que crescia em seu peito. No entanto o seu orgulho não a deixou vacilar na presença dele, não se queria mostrar surpreendida – porque de facto não o estava –, apenas magoada, e secretamente esforçou-se para não deixar cair nenhuma lágrima e mostrar-se mais forte do que realmente se sentia.

- Foi o que eu pensei. – consentiu com a voz superficialmente degradada – Vais assumi-lo? – teve de perguntar, porque apesar de tudo não sabia o ponto da situação entre a relação dele com Joana

- Claro que vou. – Ruben respondeu rapidamente – talvez um pouco depressa demais para com a consideração que tinha com os sentimentos da sua quase-quase-a-deixar-de-ser noiva – Se pudesse voltar atrás tinha feito as coisas de maneira diferente, quando eu te digo que nunca foi minha intenção magoar-te, muito menos com uma traição, estou a ser sincero.

- É impossível não me sentir magoada, afinal a relação que eu tinha com o meu namorado e o casamento que andei a planear durante meses, não passaram de uma mentira.

- A amizade que tenho por ti sempre foi verdadeira. Sempre te quis ver feliz.

- Neste caso a amizade só, não foi suficiente. Nunca é. – murmurou culposamente, acabando por ainda procurar nele algumas explicações – Eu sei que é inútil mas tenho mesmo de te perguntar.

Inês fez uma breve pausa procurando alento para continuar, e só falou quando voltou a ganhar coragem de o olhar novamente nos olhos.

- O que é que a Joana tem que eu não tenho? O que é que ela te dá que eu nunca fui capaz de te dar?

Ruben respirou fundo e rodou alguns graus sobre os seus calcanhares, à procura de outro ponto de fuga naquele quarto que não fosse o rosto dela. A conversa estava a ir suave demais, e confrontado com aquela pergunta esperava encontrar a resposta mais honesta que não alimentasse uma discussão.

- Eu sei que provavelmente esta é a frase mais batida em todas as separações, mas esta é a verdade – o problema não és tu, Inês. – garantiu, cruzando na frente do peito os dois braços nodosos  – Não é a falta de amor da tua parte, não é a falta de atenção ou de companheirismo. Não é isso que está em causa aqui.

- É o quê, então? – ela insistiu

- Há quatro anos eu apaixonei-me perdidamente por uma menina que hoje é mulher, e simplesmente não consigo tirá-la nem da minha cabeça, nem do meu coração. Eu já tentei e acredita, não dá. Por muito tempo que passe; por mais que as circunstâncias nos impossibilitem de ficarmos juntos. – mesmo sem saber, os seu olhos começaram a brilhar… era assim sempre que falava sobre Joana e do amor que sentia por ela – Há quatro anos encontrei a pessoa, a única pessoa com quem me vejo a partilhar a minha vida. É amor. Profundo, raro, inexplicável, que como a minha mãe já me disse, só se dá uma vez.

Inês apercebera-se da maneira como Ruben falara da sua – não tão discreta – amada… O tom de voz que amoleceu, a expressividade do rosto que suavizou, e a energia dos seus olhos… Ele nunca falara assim de si, ela tinha a certeza disso.

- E esse amor tu deste-o à Joana. Só pedia que me tivesses amado metade, daquilo que a amas a ela.

- Não digas isso, não te contentes com tão pouco. Não existe tal coisa como ser-se amado às metades, e tu, como qualquer pessoa, mereces ser amada por inteiro. – ela sentia as palavras de Ruben roçarem nos seus ouvidos, mas era difícil atribuir-lhes um significado… talvez mais tarde, quando a poeira assentasse e tudo doesse menos – Se alguém te oferecer menos que isso, não aceites.

Depois de tanto tempo a tentar não vacilar, Inês acabou por deixar baixar a guarda e as lágrimas precipitaram-se-lhe no rosto lentamente. E porque se sentiu o causador de toda aquela mágoa que agora a lastimava, Ruben tomou a decisão de se aproximar dela, cordialmente, pronto a confortá-la.

- Por favor, não. – ela parou-o quando se apercebeu que estava prestes a ser abraçada por ele – Eu não preciso da tua pena.

Ruben ficou ali a vê-la lutar contra o choro. Não se sentia destroçado como ela, porque a decisão de por termo àquela relação na verdade tinha partido de si, mas porque já tinha vivido tantos momentos da sua vida ao lado dela e no fundo a amizade que lhe sentia continuava lá, não podia deixar de partilhar com Inês um pouco da sua dor.
Quando a sentiu mais calma, foi sentar-se ao lado dela no beiral da cama e foi lá que passaram a meia hora seguinte… A dizer tudo o que achavam que deveria ser-se dito, a partilhar o silêncio quando o peso das palavras carregava sobre a consciência de cada um.

- Há alguma coisa que possa fazer por ti? Qualquer coisa…

- O que eu queria de ti, tu não me podes dar. – Inês ditou sussurrante, sentindo as lágrimas, que então lhe tinham secado sobre a pele, causarem-lhe uma ligeira sensação de irritação no rosto – Por isso não, não há nada.

- Espero que um dia no futuro, quando os nossos caminhos se voltarem a cruzar, tu me possas olhar sem mais mágoa ou ressentimento, Não queria ter de perder uma pessoa como tu, afinal muito antes de começarmos a namorar, eramos amigos. – Ruben sabia que estava a pedir o impensável mas teve de arriscar, estava a sentir-se mal o suficiente, e só procurava agora fazer o mais correto e minimizar o máximo de dor que conseguisse

- Talvez o tempo ajude a curar as feridas, mas tanto eu como tu sabemos que nada será como dantes.

- Eu sei. – ele compreendeu

O silêncio voltou a ser imperativo, e àquela altura o que havia mais para dizer?

- Mas bem… - Inês começou, tentando recompor-se o melhor que podia e que o seu estado melancólico lhe permitia, erguendo-se enfim da cama – É melhor descermos e avisarmos todos de que já não vai haver casamento. Está na hora de pormos um ponto final a isto e cada um seguir com a sua vida. Eu vou tentar seguir com a minha.

- Tenho a certeza de que te vais sair lindamente. – Ruben não dizia isto só para lhe dar palmadinhas nas costas e fazer-se sentir melhor, ele sabia que Inês era uma mulher que não baixava os braços frente a adversidades e mais tarde ou mais cedo dava a volta por cima em qualquer caso… e este não seria diferente – Vamos então.

Esperou no corredor que ela despisse novamente o vestido e quando voltou surgir claramente mais recomposta, pela porta do quarto, deixou-a passar na sua frente e seguiu de perto atrás dela até ao piso inferior, onde se reuniam amigos e família, e alguns outros convidados começavam a chegar.
O capítulo da vida deles como casal tinha conhecido então o seu fim. Quanto ao futuro de Inês, agora só ela o poderia traçar, e relativamente ao de Ruben já novos presságios e boas-venturanças haviam sido prescritos, aguardando ansiosamente para serem vividos.



***



- Avó? Avô? Está alguém em casa? – Joana chamou para dentro da casa dos seus avós, depois de fechar a porta atrás de si e cursar pelo hall de entrada

- Menina Joana! – Leonardo cortejou ao vê-la pela primeira vez naquela semana, quando descia a impetuosa escadaria que ascendia ao andar superior

- Bom dia, Leonardo! – saudou-o também amistosamente, com um sorriso tranquilo nos lábios que não passou despercebido ao mordomo da vivenda – Os meus avós estão cá em casa?

- Não, menina. Eles tiveram de sair para resolver uma situação no hotel, mas creio que já não devam demorar.

- Está bem, então eu vou esperar. – bradou, enquanto desprendia a mala do seu ombro para pousá-la sobre um dos sofás individuais predispostos na sala de estar – Quando chegarem por favor diz-lhe que eu estou na biblioteca e preciso de falar com eles.

- Com certeza, menina. – o sempre cumpridor Leonardo consentiu, mesmo antes de a ver desaparecer pela porta da divisão que se agrupava à sala

Quando ingressou na biblioteca dos seus avós, Joana viu pela primeira vez com atenção o seu telemóvel desde que chegara de viagem, que acabou por demorar mais tempo que o previsto uma vez que ainda passou por sua casa para deixar a mala e verificar o correio.
Demarcadas no ecrã inicial, discerniu mais de uma dezena de mensagens texto a desejarem-lhe um feliz aniversário, e sete chamadas perdidas, - quase todas elas de amigos seus – e mais um número lá no meio que não tinha registado na sua lista de contatos mas que rapidamente calculou pertencer a uma só pessoa. Como é que ao fim de todo este tempo ainda não tinham trocado de número? Ela agitou a cabeça depreciativamente com um sorriso nos lábios, e marcou o número de volta para fazer a chamada, esperando ser de facto Ruben, a atender do outro lado da linha.

- Estava a começar a ficar preocupado. – foi a primeira coisa que o ouviu dizer, depois de a linha assinalar somente dois toques

Joana sentiu os seus lábios vestirem um sorriso quase que inconscientemente. O tom dele era sério, mas sempre tão suave. Como é que podia já sentir a falta dele quando ainda só há umas horas estivera rodeada pelos seus braços?

- Desculpa, só cheguei agora a casa dos meus avós… Ainda passei na minha casa primeiro. – tranquilizou-o, e antes de se conseguir conter, já as palavras seguintes lhe escapavam por entre os lábios – Como estão as coisas por aí?

- Estabilizadas. Resolvidas. O casamento já foi oficialmente cancelado. – Joana não sabia o quão nervosa estava até escutá-lo preferir aquele acerto definitivo, e pôde finalmente expelir todo o ar que tinha até então retido nos seus pulmões

- Como é que reagiu a Inês a isso tudo?

- Melhor do que estava à espera, para dizer a verdade. Vindo dela não esperava menos que um escândalo, mas correu tudo bem… Conversámos e chegámos a um consenso. – Ruben falou pacífico, no entanto guardando para si outros dissabores que tinha travado com a família da sua ex-companheira, sendo que a última coisa que queria naquele momento era desassossegar as instáveis emoções de Joana – Está tudo mais calmo agora entre nós… Quer dizer, dentro dos possíveis, claro.

- Que bom. Ainda bem. – foi como uma lufada de ar fresco a abater-se sobre si, finalmente podia voltar a respirar – E quando voltas para Lisboa?

- Assim que termine de fazer uns telefonemas… Preciso de cancelar o serviço de catering; a banda; enviar os presentes de casamento para trás... – enumerou ele do topo da sua cabeça, e logo Joana conseguiu imaginá-lo no outro lado do telefone a passar uma mão no rosto e roçar a barba, um comportamento muito típico dele em situações de stress – Esta casa está uma confusão.

- Desculpa.

- Joana, não te atrevas. – advertiu ele com seriedade, odiava fazê-la sentir-se culpada 

- Ainda é isto que queres? – o seu timbre portava um mesclado de medo e esperança – …Ficar comigo?

- É o que eu mais quero. Não duvides disso por um segundo. – Ruben exalou, frustrado em não poder estar ao lado dela naquele instante e levar-lhe para longe todas as inseguranças – Estou só a resolver a trapalhada que causei.

Houve uma pausa. Ambos permaneceram a escutar as respirações um do outro através do auscultador.

- Gostava que estivesses aqui comigo, estou à espera que os meus avós cheguem para lhes contar…

- Eu também queria estar aí contigo, mas a verdade é que não sei quando vou conseguir sair daqui.

- Eu sei. Não te preocupes. – ela compreendeu e Ruben agradeceu-lhe silenciosamente

Surgiu um novo silêncio. Um tipo de silêncio que não incomoda e que serve apenas para se ser ouvido, que é ditador de tudo o que não precisa de ser pronunciado… como o bater daqueles dois corações, oh… tão apaixonados.

- O que achas que os teus avós vão achar disto tudo? – perguntou então, sendo que Joana naturalmente os conhecia melhor

- Sinceramente não sei que reação esperar deles… Os meus avós são as pessoas mais honestas e compreensivas que conheço, e tenho a certeza que assim que lhes contar sobre a nossa situação, eles terão alguma coisa a dizer, mas no fundo não sei. – ela pausou por um instante, sendo que quando voltou a falar, deu liberdade aos seus lábios para se adornarem num novo sorriso que passou totalmente despercebido a Ruben – No entanto é melhor teres cuidado com o meu avô, pelo menos durante os próximos tempos, porque quando ele souber que és tu o responsável pelo meu estado de graça… Não sei não…

- “Não sei não”? O que queres dizer com isso? – ele promulgou de imediato, quase como se sentindo ameaçado

- Nada… Só te estou a alertar para teres cuidado, só isso. – Joana mordeu imediatamente o lábio inferior para evitar uma gargalhada que adivinhava prestes a rebentar do seu peito

- Mas que tipo de cuidado?!

- Depois do futebol, obviamente (!), tu sabes que o Sr. Caetano não só é adepto como também é um praticante frenético da caça, eu já te tinha dito. – salientou pausadamente – Portanto ele tem um armário repleto de armas do desporto que trata como se fosse um santuário…

- Espera, espera! Tu não estás a querer dizer o que eu penso que… - Ruben interrompeu os seus próprios pensamentos, tal era o nervoso miudinho que começava a crescer em si no que respeita àquela conversa, já Joana fazia um esforço quase desumano para prosseguir com a brincadeira sem se deixar rir primeiro – O teu avô é o tipo de senhor capaz de intimidar e impor respeito a qualquer um, sempre me intimidou mais que o teu pai… Achas mesmo que ele era capaz de me fazer alguma coisa?

Aquele foi o ponto de rutura, Joana não conseguiu continuar mais com a pequena, mas totalmente infalível brincadeira, que tinha iniciado.

Adorável. Ele é simplesmente adorável, ela pensou.

Podia adivinhar-lhe quase todas as feições do rosto por detrás do telefone – o arquear das sobrancelhas; as quase impercetíveis ondas que se formavam na testa que se enrugava; e a agitação dos olhos inquietados –, tudo a acontecer quase que ao mesmo tempo.
Adorável, Joana voltou confirmar a si mesma e começou então a rir, agora para que ele também a pudesse ouvir. Já não se lembrava da última vez que rira com aquele à-vontade, com aquela despreocupação porque foi realmente engraçado escutá-lo a ficar sem jeito, a atropelar-se nos intervalos das próprias palavras.

- Isto foi uma brincadeira? – Ruben perguntou incrivelmente mais surpreso do que aliviado – Estiveste a gozar comigo, Joana Margarida?

- Joana Margarida, hum? Estou a ver que ficaste chateado… – interveio, ainda a sentir-se burlesca, quando se sentou parcialmente a um dos extremos da secretária, voltada de costas para a porta

- Tu não podes ter esse tipo de brincadeiras – de muito mau gosto, vamos já aqui deixar bem claro –, ou então o meu coração não vai conseguir aguentar muito tempo. – ele referiu, tentando parecer indignado – E daqui a alguns meses eu vou ter um bebé para cuidar, e o meu coração tem de estar a funcionar a cem por cento.

- Eu sei disso perfeitamente, até porque nós partilhamos o mesmo bebé. – ela murmurou-lhe com suavidade, roubando-lhe completamente o folgo

Estas palavras não foram de maneira nenhuma indiferentes a Ruben, que sentiu o seu peito começar a aquecer e ser inundado por uma alegria inexplicável… Aquele era o facto, o facto de vir a partilhar paternidade com a mulher da sua vida, de que mais se poderia orgulhar de todas as conquistas que já tinha feito.

- Caso não te lembres o meu avô sempre gostou bastante de ti. E sempre gostou de te ver jogar também, aliás, acredito piamente que era ele o teu fã numero 2.

- O teu avô, meu fã… número 2? A sério? Não sabia disso.

- Não sabias porque nunca me ocorreu contar-te.

- Mas então espera… Se ele era o meu fã número 2, quem era o número 1?

Joana voltou a trincar o lábio, desta vez não para suprimir uma gargalhada, mas sim para conseguir lidar sozinha com um golpe súbito de timidez.

- Tu sabes perfeitamente quem.

- Hum… Talvez a minha mãe? – foi a vez de Ruben brincar com ela

Joana evocou o silêncio, à espera que fosse resposta suficiente. E no meio daquilo tudo acabaram por partilhar um sorriso, que apesar de não poder ser visto aos olhos um do outro, sentiram-no. Essa era mais uma coisa que aos poucos estavam novamente a recuperar entre si – a sincronia.

- Mas falando agora a sério. – ela interferiu, guardando o romance para mais tarde mas mantendo a doçura na voz – Não tens de te preocupar com o meu avô. Ele pode ter um osso frio para os negócios, mas entre a família ele consegue ser a pessoa mais querida. E ele só me quer ver feliz, e quando perceber que é a teu lado que eu o sou, vai ficar tudo bem.

Até àquela altura Ruben não tinha a menor ideia do impacto quase absurdo e espetacularmente excecional que aquelas palavras podiam acarretar à sua alma. Gostava do simples caso de que a cada momento que partilhavam, Joana tonava-se cada vez mais sincera consigo, expunha-lhe com menos receios o que lhe embargava o coração e o pensamento.

- Só quero que isto termine rápido para podermos começar um novo capítulo, a nossa vida juntos como uma família.

- A nossa família. – ela enfatizou, deixando que o acorde daquela sentença se afundasse em si como a mais bela das melodias

- Vou desligar e fazer uns telefonemas, quanto mais depressa tratar desta situação toda, mais depressa volto para ao pé de ti.

- Está bem. – Joana concordou, até porque agora os seus avós poderiam chegar a qualquer momento – Então até logo.

- Até logo. Beijo. – a voz dele era tão quente e suave  

Ambos desligaram a chamada em simultâneo e as paredes revestidas pelas enormes estantes de livros da biblioteca, puderam ouvi-la suspirar tranquilamente, mesmo antes de a verem sobressaltar num segundo mal fracionado.

- De quem é que eu era fã número 2?

Uma nova voz, grave e profunda, surgiu inesperadamente, fazendo Joana ocorrer com a mão ao peito apanhada no meio de uma surpresa, ao orientar o corpo para a porta. Chegara então a altura da confrontação que adiara por demasiado tempo. Respirou fundo. Estava preparada. 






Boa noite, meninas! :)
Cá está mais um pedacinho da nossa história.
Espero que gostem e não se esqueçam de me deixar a vossa opinião em comentário,
gostava de saber o que estão a achar do rumo que estou a dar à narrativa. :)

Muitos beijinhos,
Joana