sexta-feira, 26 de abril de 2013

Capítulo 12 - Tudo começou para nunca mais acabar (Parte IV)


- Ainda não parou de chover um minuto… - desabafei junto à janela, observando o vendaval que fazia a chuva precipitar-se furiosamente das alturas e um vento que soprava forte, agitando os galhos das palmeiras e a restante vegetação que pendia ao flanco do hotel

Estava no quarto de Pedro juntamente com ele, passáramos praticamente toda a tarde ali visto que o temporal rogado lá fora não convidava propriamente a um mergulho no mar da praia nem tampouco a passeios pelos ilhéus desertos.
Já há dois dias que chovia torrencialmente na ilha, e devido a estas condições meteorológicas as gravações tiveram obrigatoriamente que ser adiadas, e uma vez mais vi passar bem à minha frente o destino que voltara a ficar fora do meu controlo.

- Oh, já devias saber como este clima tropical é… Agora chove mas vais ver que mais daqui a pouco o sol já está aí outra vez e aquele calor sórdido também! – respondeu o meu melhor amigo e agente à cabeceira da cama, onde do seu tablet respondia aos meus e-mails há quase meia hora

- A questão é que nós já nem deveríamos estar aqui. Já passaram dois dias, Pedro, dois dias… A estas horas devíamos estar a chegar a casa! Não quero ter que ficar aqui muito mais tempo, este não é o meu lugar…

- Mas é o teu trabalho! – referiu ele sucintamente, descolando os olhos do pequeno ecrã por uns segundos para me olhar – Eu entendo-te mas tenta ser flexível… Isto é algo que nos incomoda a todos, é tempo e dinheiro que se está a perder. As gravações deveriam estar concluídas anteontem mas ninguém tem culpa disso porque ninguém esperava que se pusesse este tempo… É do tipo de situações que não estão previstas acontecer!  

- É… e acho que é exactamente isso que a minha vida tem mostrado ser estes últimos dias… Um total imprevisto! – o meu olhar voltou a trespassar a vidraça da enorme janela e a cair sob a paisagem que era arrasada pela tempestade, e de uma maneira totalmente irónica o meu âmago poderia assimilar-se àquela imagem… arrasado por novas sensações que eu própria desconhecia



***




A manhã do dia seguinte foi deslindada pelas abertas que fizeram do sol uma visita aguardada e bem-vinda às ilhas de Punta Cana. Viajámos cedo novamente até à Ilha Saona, tendo sido uma lagoa perto de uma das maiores quedas de água, refugiada por uma vegetação exorbitante, o cenário perfeitamente escolhido para a sessão fotográfica da campanha, para a qual eu e Francisco posámos até à hora de almoço. A parte da tarde estava programada para ser entregue somente às gravações do anúncio televisivo.

- Alright, people, let’s go… Let’s move! – ordenou altivamente a produtora, que enunciou os postos de tarefas e fez andar todo o pessoal da equipa de produção num autêntico frenesim de montagem de material e preparação do cenário

Heat Blue, chamava-se assim a nova aposta de perfume da Dulce&Gabbana. Pelo que tinha lido no guião que me tinha sido entregue no primeiro dia, Heat Blue – a nova fragrância para ela – é um perfume exótico e marcante de um Verão siciliano, que concentra notas de maçã, pimenta de alecrim e âmbar que “capta a atenção”, e essências médias de jasmim, bambu e zimbro, dando uma combinação absolutamente feminina em que “o efeito é marcante e de uma sedução arrebatadora, onde a mulher Dulce&Gabbana se apaixona e faz apaixonar”. O perfume é lançado a mulheres confiantes, donas de um grande poder de sedutismo, atracção, que gostam de um estilo de vida elegante e casual. Trasladando o sol do dia e as noites deslumbrantes, esta fragrância “aquática, fresca e purificadora” representa a sensualidade das ilhas paradisíacas das Caraíbas.
Gravámos as primeiras cenas em alto mar no esplêndido coral de Saona, tendo sido o primeiro plano filmado no barco, onde seguíamos com dois câmara-men, e o segundo nas águas azul-turquesa, onde nadámos juntos por alguns minutos, maravilhando-nos com peixes coloridos de todas as simetrias e no fundo do recife olhei as múltiplas estrelas que transpunham a figura de um céu anoitecido.
Seguimos depois de volta à praia, para junto de uma falésia onde iríamos concluir as gravações. A produtora voltou a relembrar-nos o que era pretendido que fizéssemos e o meu coração bateu mais forte quando ficámos a saber que teríamos de nos beijar, para que o anúncio ganhasse um novo sentido que consistia num derradeiro caso amoroso Heat Blue, onde os personagens têm um relacionamento de intimidade e paixão que traduziam a ideia pretendida para o perfume, num cenário de puro romantismo como era aquele.

- Scene four, take one… Action! – ouvimos pelo megafone e de novo as câmaras focaram o nosso plano

Eu permanecia encostada ao enorme rochedo e tinha Francisco na minha frontaria, encurralando-me num espacinho mínimo, fincando a sua mão na parede uns centímetros acima do meu ombro e olhando-me penetrantemente, na antecipação de um momento que tinha sido previamente programado pela realização. Mas não consegui… Quando senti a sua testa empurrar levemente a minha para beijar os meus lábios, eu não consegui entregar-me inteiramente à personagem que interpretava e separar o meu trabalho da minha vida pessoal. Embora não fosse essa a verdade dos factos, sentia que naquele gesto unicamente técnico estava de alguma forma a trair Ruben e tudo aquilo que sentia por ele, e esse pensamento fez com que desviasse o meu rosto do seu alcance quase de forma automática.

- Tá tudo bem, Joana? – o Francisco olhou-me inegavelmente preocupado com a minha rejeição infundada e esperou por uma resposta, tal como o resto dos profissionais que trabalhavam em nosso redor que ficaram confusos com o aquela minha atitude inesperada – Fiz alguma coisa de errado?

- Não, não fizeste nada de errado, apenas… Apenas não me estou a sentir muito confortável… com isto! Desculpa. – proferi num sussurro a modo sem jeito, que penso ele ter compreendido imediatamente

- Se quiser a gente pode pedir pra fazer uma pausa até você se recompor e se sentir preparada…

- Não, não, eu estou preparada! Aquilo não vai voltar a acontecer! – disse decididamente de maneira a conseguir afastar aqueles pensamentos patéticos

- Então deixa eu te guiar, tá bom? Relaxa…

- Obrigada. – agradeci sinceramente o seu apoio e depois fizemos o sinal ao pessoal da produção de que estávamos prontos para retornar as filmagens

Um novo clique da claquete voltou a ser escutado e a partir desse instante todas as atenções voltaram a recair sobre nós.
A sua mão direita palmeou a minha face e deixei que fosse ele mesmo a guiar-me, tal como me tinha dito, já que eu não me sentia capaz de fazê-lo por mim. As nossas respirações embateram sem pressão e foi uma questão de segundos até os meus olhos se fecharem e a minha boca sentir-se ser envolvida pelo calor latente da sua.
O beijo então aguardado pelas câmaras, surgiu, primeiro recatado e superficialmente discreto e depois mais intempestivo e dominador, e que em nada poderia ser comparado a um beijo do meu Ruben… Em primeiro e o mais essencial de tudo é que era um gesto meramente profissional e ausente de qualquer sentimento, e depois era a entrega que não existia entre nós, o sabor da boca que não era o mesmo, o toque de lábios que não era tão delicado, a sensação de carinho e preenchimento que não me fazia levitar, o arrepio na espinha que eu não sentia. Nada naquele beijo era Ruben e ali, jogada nos braços de outro homem, nunca tinha sentido na pele tanta certeza e segurança que o amava mais do que eu imaginava ser possível poder amar-se alguém, e sentia falta dele mais do que tudo.

- And… Cut! – a ordem do realizador irrompeu entre nós e a nossa atmosfera, anunciando a tão esperada finalização de todo trabalho – Congratulations, people, good job!

A enunciada foi contemplada por uma enorme saudação com uma salva de palmas de toda a equipa, inclusive também minha e de Francisco, que depois de me dar um beijo afável na testa, olhámo-nos nos olhos e sorrimos com cumplicidade, orgulhosos por termos feito parte daquele projecto.


***



- Pedro? – chamei-o quando entrei na pequena tenda descoberta e caminhei até ele, dando-lhe um toque leve no ombro – Vou dar uma volta por aí… Estou a precisar de espairecer um pouco.

Ele descentralizou a sua atenção do computador onde juntamente com um técnico de imagem revia a sessão de fotografias tiradas esta manhã, e olhou-me ao voltar-se para mim – Não queres ver as fotos? Ainda não foram editadas mas podes dar uma vista de olhos e ver o resultado… Acho que estão muito boas!

- Prefiro vê-las depois quando voltar.

- Tudo bem, mas precisas de alguma coisa? Queres que diga ao Alexandre para ir contigo?

- Não, não lhe digas nada… Acho que estou a precisar de estar sozinha por algum tempo e espairecer. Dar uma voltinha pela ilha, um mergulho na praia… - enumerei, revendo mentalmente o percurso do passeio que planejara traçar unicamente sozinha 

- Então mas tem cuidado e não te afastes muito! – pediu-me na sua habitual posição cautelosa e protectora em relação a mim, que eu já esperava voltar a ver-lhe – E leva qualquer coisa para comer… Não andes toda a tarde sem nada no estômago! 

- Sim, mãe… Eu levo alguma fruta na mochila, não te preocupes! – trocei comicamente e ambos nos rimos com a minha disposição de humor, que felizmente não tinha sido atingida pelo meu estado de espírito, não naquele momento 

- Estás cheia de piada, tu! – ele deu-me um toque no ombro que me fez balançar ligeiramente e voltámos a sorrir – Ah, espera, há uma coisa que tenho de te dizer… A produção vai dar uma festa logo à noite no bar da praia para comemorar-mos o fecho da criação da campanha… Quero ver-te lá, está bem?

- Sim, lá estarei… - prometi com um discreto sorriso nos lábios, despedindo-me dele com um beijo dócil que despoletei na sua bochecha – Vemo-nos depois!

Queria ver tudo, cada coreto, cada lagoa, cada falésia… Comecei por dar um mergulho numa praia escondida atrás dos vales, isolada e muito discreta. Tal como as outras a sua areia era fina e branca e a água era tão transparente que permitia ver o fundo e todo o tipo de búzios e peixinhos, tão quente que se tornou difícil para mim voltar a sair dela.
Voltei a percorrer novos trilhos, continuando somente por minha conta, mas com a companhia estranhamente agradável dos mais diversos animais exóticos que encontrava em pequenos montes e junto dos riachos, acompanhados da sinfonia reproduzida pelas aves coloridas, libertada nas copas das árvores de uma altura assustadora. Observei com curiosidade cada planta exótica, provei a medo alguns frutos silvestres e flagrei com a minha máquina fotográfica tudo aquilo que mais tarde queria vir a recordar.
Acabei por vislumbrar no cimo de um penhasco uma cabana de madeira, algo que se poderia assemelhar a um chalé, mas mais humilde e casual. Subi até lá e empurrei a porta encostada quando cheguei, e resolvi entrar. Fiquei surpreendida e simultaneamente maravilhada com aquele cenário: Havia cadeiras de veludo branco e rosa correctamente alinhadas e divididas por um pequeno corredor que conduzia a um altar… Aquela cabana estava preparada para aquelas que seriam cerimónias matrimoniais. Não era de surpreender, pois de facto qualquer casal de noivos que por ali passasse não escolheria outro sítio mais belo e fascinante para dar o nó que não aquele… E até eu senti uma vontade inexplicável de me casar ali.

- Queria tanto que estivesses aqui comigo, Ruben… - um sussurro vanguardista que aprisionava um pequeno lacrimejar dos meus olhos, soltou-se dos meus lábios aquando idealizara um cenário perfeito, que em tempos chegáramos a planear juntos

Foi mais que óbvio que tinha sido ele a primeira pessoa a interpor os meus pensamentos e ideias, e ao estar ali, naquele cantinho do céu, não desejei que mais ninguém estivesse ali comigo, que não fosse ele. Queria partilhar com ele não só aquela ocasião, mas todas as outras que tinha vivido naquela terra naqueles dias… Só Deus sabia as saudades que eu tinha dele, e só Deus sabia a angustia que me fazia sentir pequenina por não poder tê-lo ali ao meu lado, a viver aquele momento comigo.   


***


Era noite cerrada quando voltei à praia e não foi difícil dar com o bar onde certamente estava a decorrer o festejo e este já tinha tomado o seu começo.
Era um espaço agradável, muitos cocktails a rodar e música merengue que contagiava qualquer um a dar uns passinhos de dança no ritual carabiano. Ao fundo da sala, perto de umas mesas redondas de pé alto, vi Pedro, que ao fazer-me sinal com a mão não se demorou até me alcançar.

- Ainda bem que já chegaste… Estás bem? – a minha testa acolheu um beijo quente seu e esse simples gesto de carinho permitiu que as portas do um sorriso se abrissem por segundos em meus lábios

- Hum, hum… Estou. – respondi seguramente e senti depois ele puxar-me pela mão para me arrastar consigo

- Vem… O pessoal da campanha está desejoso para falar contigo! – encruzilhámo-nos com alguma dificuldade por entre as pessoas que já animadas improvisavam ali no meio uma pista de dança, e pela sua mão firmemente agarrada à minha segui atrás dele  

Levou-me até aos produtores e realizador, e foi com eles que ficámos a falar por largos minutos… Discutimos alguns pormenores da campanha publicitária e ouvi por algumas vezes saudarem-me com os parabéns, pelo contentamento que receberam do meu empenho e trabalho, notoriamente satisfeitos com o resultado final que chegara a ultrapassar as expectativas do que era esperado.
Mas não fiquei lá dentro por muito mais tempo, precisava de respirar outro ar, outro ar menos carregado do que aquele que se vivia no interior, e refrescar a minha mente com pensamentos mais leves.

- Tengo un corazón, mutilado de esperanza e razón/ Tengo um corazón, que madruga donde quiera/ Y este corazón se desnuda de impaciência ante tu voz/ Pobre corazón, que no atrapa su cordura… - dei por mim a trautear a música natural dominicana que passava quando sai do bar, e foi inevitável não atribuir um sentido pessoal à letra

Sentei-me na areia e deixei-me ficar a olhar o mar, agora enegrecido pela noite, e ali até o silêncio se tornava uma melodia deliciosa para apreciar.
Apesar do sol já se ter posto há muito, um ar quente ainda viandava pela atmosfera, tornando-a ligeiramente húmida e abafada, contudo preferia a solidão lá de fora do que a agitação quase louca que reinava no interior do bar.

- Dando a escapadinha? – um timbre o qual já havia aprendido a discernir, soou ao alto das minhas costas e um pequeno sobressalto foi inevitável para mim, pois encontrava-me remotamente perdida sob os meus mais profundos pensamentos de vida

- Francisco… - disse o seu nome, logo que olhei a cima do meu ombro e o vi, hirto atrás de mim

- E aí… Posso perguntar o que tá fazendo aqui sozinha na vez de ‘tar lá festejando com a galera?

- Está lá muita confusão dentro e… Sinto-me melhor aqui. – proferi com sinceridade, até fazer um sorriso consulado coabitar meus lábios – Senta-te se quiseres…

- Com licença. – pediu, extremamente educado e senti o meu lado esquerdo, até então vazio, ser ocupado por ele – Peguei um drink pra você…

- Oh, não era preciso teres tido trabalho comigo, obrigada! – agradeci-lhe a amabilidade e peguei no copo de pina colada que ele havia trazido para mim – Francisco, sobre o que aconteceu nas gravações… Queria agradecer-te o apoio que me deste, não imaginas o quanto me senti ridícula com a situação! – proferi com um sorriso calmo, porém envergonhado no rosto

- Ridícula? Que é isso, garota… Imagina! – ele menosprezou o lance ocorrido naquela tarde de filmagens, aquando o nosso beijo, mas aquela minha primeira reacção foi algo que mais tarde me veio a deixar constrangida perante ele

- Eu nunca fiz nada disto antes, nunca me deparei com situações como esta no meu trabalho… Fiquei um pouco atrapalhada com a situação.

- Deixa pra lá, até porque eu entendo… Cê não tá acostumada, é natural, eu mesmo não me acostumei ainda e olha só que essa não foi a minha primeira vez! – ambos gargalhámos do seu jeito de falar, era incrível como o seu sentido de humor conseguia interferir com o meu, mas depois um silêncio circunstancial e aterrador caiu sobre nós – Problemas no paraíso?

- Quem não os tem?

- Pelo seu jeito, os seus parecem ser sérios…

- Espero conseguir resolvê-los assim que sair daqui. – respondi em meio tom, dando um curto sorvo da minha bebida

- Problemas do coração? – tornava-se assombroso como há tão pouco tempo nos conhecíamos, e ele já ganhara um pouco da capacidade de me ler nas entrelinhas – Desculpa, são os seus assuntos, não me quero intrometer demais.

- Sim, problemas do coração… - sem contar com que me desse ao assunto com ele, acabei por lhe revelar o motivo-rei de toda a minha apatia

- Sabe que a gente tende a ter mais facilidade em abrir o coração pra alguém que não conhece direito, do que pra’queles com quem fala todos os dias…

- Agradeço-te a simpatia, a sério que sim, mas não quero aborrecer-te com os meus problemas… Além de que é uma história complicada.

- Tem ninguém me apressando não! Eu tenho tempo… - Francisco olhou-me com um sorriso meigo, mostrando-me estar inteiramente disposto a ouvir-me

- Então, muito resumidamente… - comecei por respirar fundo e preparei-me para lhe contar apenas uma parte do enredo que me atormentava por demasiado – Eu e o meu namorado reconciliámo-nos recentemente, depois de termos ficado um longo período de tempo afastados. Passámos esta última semana em São Francisco e tínhamos combinado regressar a Portugal juntos, no mesmo voo, mas houve uns contratempos, perdi o avião e do nada caiu-me a proposta de fazer o anúncio e tive que vir a correr para aqui sem ter tempo de pensar duas vezes, sequer…

- E isso quer dizer… - ele teve a necessidade de procurar por um esclarecimento, pois eu não tinha sido demasiado precisa no ponto da questão

- Isso quer dizer que ele foi no voo que tínhamos combinado ir juntos e não sabe que eu estou aqui. – discursei calmamente, como nunca me imaginei fazê-lo pois sempre que recordava aquele assunto ganhava um súbita vontade de lacrimejar, e no seu rosto jovial decifrei um laivo de confusão

- Não sabe? Cê não falou desse negócio pra ele? Não lhe ligou…?

- Isso teria sido a primeira coisa que tinha feito se tivesse maneira de o contactar… Acreditas que nem voltámos a trocar de número?

- Puxa vida, assim fica complicado tentar ajudar você, né? – vi-o passar a mão pelos cabelos como maneira de expressar a sua pequena risada de desalento e eu sorri-lhe de volta pelo seu comentário… um sorriso desconcertante – E acha que ele vai ficar chateado com você por causa dessa parada?

- Não sei, Francisco, sinceramente não sei… – falei ao mesmo tempo que os meus ombros se encolheram perante a evidente ausência de respostas – Tal como eu te disse… É uma história complicada! Mas então e tu, fala-me de ti… Aposto que não tens estes problemas com a tua namorada! – tentei desviar o assunto “eu e os meus problemas”, e com ele desviar toda aquela tensão que lentamente se começou a formar no sabor da conversa

- Nisso cê me ganha, porque felizmente não tenho esse tipo de problemas com a Jessiann… A gente tá muito feliz! – um sorriso imensamente tranquilo da sua boca, foi o suficiente para me fazer acreditar que no campo do amor ele tinha encontrado um conforto de paz, algo que na minha situação eu já não estava tão certa de continuar a ter – Cê quer vê-la? Acho que tenho aqui uma foto dela…

- Ah… Sim, claro! – peguei no seu copo para que ele tivesse mais facilidade em conseguir retirar a carteira do bolso traseiro dos seus calções de praia, e quando encontrou a fotografia da sua namorada guardada no interior entregou-ma, e eu voltei a dar-lhe o copo

- Ela é muito bonita! – gracejei, ao ver a rapariga loira de sorriso fácil de se gostar, flashada na impressão digital que segurava na minha mão

- É, é linda mesmo… E olha só, a gente já tá esperando o nosso primeiro filho!

- O quê, tu… Tu vais ser pai?

- Surpreendida?

- Sim… Na verdade estou um pouco! – revelei, porque o facto é que estava mesmo surpresa tendo em conta as circunstâncias que vim depois a nomear – Desculpa mas olhando para ti, nunca pensei… Quer dizer, és um homem novo ainda, para não falar que o teu trabalho te faz andar de um lado para o outro… Não o tempo todo mas quase!

- É, eu sei, mas pretendo abrandar o ritmo quando ele nascer, não quero perder nada… E quanto ao ser novo, é, é verdade que sou novo ainda e sei que a maioria dos homens da minha idade não tem intenção de se ver com um neném nos braços para cuidar e educar, mas eu e a Jessiann… A gente tem uma relação e uma vida bastante estáveis, nos conhecemos um ao outro melhor que a nós mesmos, moramos junto faz tempo e aí a gente pensou: Porque não darmos o passo seguinte?

- Não sabes o quanto admiro a vossa coragem… - não fiquei indiferente ao discurso dele, àquela sua certeza que o dominara em cada palavra e devo confessar que fiquei tenuemente emocionada, e aquela firmeza e certidão, um dia, nas mesmas condições, também eu queria tê-las em mim

- Você nunca pensou em ter filhos? – aquela pergunta à primeira vista inocente, despoletou em mim um misto de sensações que eu não esperava de todo sentir, pois fez-me relembrar de algumas conversas que partilhei com Ruben ultimamente

- Sim, claro que já pensei, mas acho que este ainda não seria o momento certo para dar esse passo na minha vida… Estou a concluir os meus estudos, tenho trabalho e uma vida também ela estável, mas não me vejo a ser mãe agora, ao contrário do que o Ruben pensa!

- O Ruben? – perguntou no segundo seguinte, pois eu ainda não tinha mencionado o nome dele, ainda assim ele compreendeu antes de me deixar esclarecê-lo – O seu namorado…

- Sim, o meu namorado… Quando falamos nos planos que temos para a nossa relação, por vezes o assunto de construirmos uma família cai na conversa… Acho que ele ia delirar só com a ideia, eu sei que ele quer muito ser pai!

- Então e você?

- Eu não sei… Tenho medo, acho que é isso… Tenho medo de falhar! Um filho trás muitas responsabilidades, não é um passo que se decida dar de ânimo leve, e eu ainda não acho que me sinta preparada.

- Nunca ninguém se sente realmente preparado até que chega o momento em que tem de estar! – proferiu com total sabedoria, e apesar de ‘ser mãe’ pertencer à minha lista de desejos, este era um que eu pretendia realizar apenas no futuro

- Sim, talvez tenhas razão… E bem, a conversa está muito agradável mas é melhor eu ir andando! O meu voo é de madrugada e ainda quero descansar um pouco! – ciciei, logo que espreitei as horas avançadas do meu relógio de pulso

- Tá indo pró hotel?

- Não, estou instalada num bungalow… Fica no outro lado da praia!

- Então fica no caminho… – ele levantou-se e ajudou-me a levantar também, logo que me estendeu a mão – Eu posso te acompanhar até lá e depois sigo pró hotel! – sacudi a areia da minha saia e sorri-lhe em seguida, grata pela sua companhia naquela noite


***


- Parece então que estou entregue! – anunciei quando finalmente chegámos junto da porta do meu quarto – Obrigada!

- Não tem de quê, e aproveito pra agradecer também a óptima companhia e foi um prazer trabalhar com você… Espero que nos voltemos a encontrar!

- Eu também espero que sim… Faz uma boa viagem!

- Cê também, e vou torcer pra que dê tudo certo nesse seu lance com o Ruben… E não se preocupa porque se ele é ‘o cara’, ele não vai abdicar de uma garota tão boa onda e ainda por cima linda, que nem você! – mais uma vez naquele dia ele voltou a conseguir fazer-me rir, e senti-me incrivelmente bem com isso – Tenha uma boa noite e se cuida, 'viu?

- Boa noite, Francisco, e mais uma vez obrigada… - despedimo-nos com um abraço apertado e dois beijinhos no rosto, e depois de o ver descer as escadas do alpendre entrei no quarto  

De novo sozinha. Por mais que eu tentasse, por mais caminhos que percorresse, todos iriam levar-me ao mesmo… Ali, embrenhada àquela solidão, àquele vazio inexplicável.
Tomei um duche rápido, preparei uma sandes e um copo de leite, que petisquei em curtos minutos e por fim arrastei-me até à cama, onde caí, completamente estafada. Tinha a minha cabeça a doer, implorando-me por algum descanso não só físico mas também mental, mas não consegui dormir tão rapidamente como esperava… Estava a algumas horas de embarcar no bendito avião e voar até Lisboa, até a porto seguro. Fechei os olhos com força e para que o sono chegasse e me levasse consigo, tentei focar-me apenas numa esperança: ele vai compreender, eu sei que ele vai compreender…



***



(D. Anabela)

Que ninguém diga que está completamente bem e plenamente feliz, pois quando menos se espera um prenúncio desventurado pode bater à porta e causar destroços que poderão ser irreparáveis. Tinha mais certeza disso mesmo de cada vez que olhava o meu Ruben e lhe decifrava o seu sofrimento traduzido só no olhar. Estava lá em casa desde que regressara do estágio, há quatro dias, e era normal ele vir para ao pé de mim sempre que regressava do estrangeiro para como ele dizia “matar saudades de casa” mas agora era diferente, correra para ali por outras razões, razões a que eu não tinha ficado completamente esclarecida, mas então recebi-o de braços abertos, sempre pronta a fazer o meu papel de mãe e consolá-lo o melhor que podia.

- Posso? – ouvi dois toques leves na porta da cozinha que se encontrava aberta, e ao olhá-la fitei David à sua ombreira

- Claro, meu filho, entra! – permiti imediatamente, enxugando as mãos ao avental e vi-o caminhar até a mim no intuito de me cumprimentar com dois beijinhos

- Vim deixar o Ruben, e como esse cheirinho a cozinhado já se sente na entrada, resolvi passar aqui pra dar uma olhada e ver a senhora! – disse-me com um sorriso afável, que era já habitual nele

- Fizeste bem… E diz-me, como é que estás? – perguntei e voltei para junto do fogão, onde preparava o jantar

- Eu tô bem, graças a Deus… A Dona Anabela é que me parece meio em baixo… Tá tudo bem com a senhora?

- Não, meu filho, nem tudo… - poderia conseguir disfarçar muitas situações que não queira que ninguém soubesse, mas nunca iria conseguir disfarçar a preocupação de um coração de mãe – É o Ruben, desde que aqui chegou que parece ser outra pessoa! Fecha-se no quarto, não fala comigo e eu já não sei o que fazer, David… Eu sei que se passa alguma coisa e grave, para ele estar assim, mas eu não o posso ajudar se ele não falar comigo!

- O Ruben ainda não contou pra você?

- Onde é que ele está?

- Já subiu… Foi para o quarto logo que a gente chegou!

- Então vem cá, senta-te aqui um minuto. – pedi-lhe encarecidamente, retirei o avental pendurando-o, e acabámos por puxar duas cadeiras e sentámo-nos junto da mesa da cozinha – Ele não fala comigo sobre isto e sempre que eu tento ele foge, mas tem falado com o irmão… Eu sei que tem alguma coisa a ver com a Joana… Tem, não tem?

- Tia, eu não sei se deva, se o Ruben ainda não falou nada pra você, então eu… - os laços de amizade entre eles os dois eram muito fortes, era natural que o David não quisesse quebrar a confiança ao contar-me, mas como mãe eu precisava de saber

- David, não me escondas nada… Conta-me o que aconteceu entre eles para o meu Ruben voltar neste estado. Eles estavam bem, não estavam? O que é que aconteceu?

- É, ‘tavam bem… Eles voltaram lá em São Francisco e pareciam tar muito felizes, sabe? Sem mais nada do passado a atrapalhar… E quando foi pra regressarmos, eles combinaram em voltar a Lisboa no mesmo voo mas aí chegámos e o Ruben ‘tava esperando ela no aeroporto, e ela não apareceu… A Joana não veio com a gente no avião!

- Não veio com vocês e não disse nada? – inquiriu duvidosa, pois naquela história algo parecia estar mal contado – Não ligou, não deu notícias… Nada?

- Nada, tia Bela! E é por isso que o Ruben tá desse jeito… Ele a procurou em casa dos avós dela, na casa onde ela costumava morar com os pais, e nesses dias a gente continua sem saber nada da Joana! – a sua voz esmorecida assim quanto o seu olhar, traduziram o desalento que também a ele o abalava

- Achas que ela…?

- Não sei, mas quero acreditar que não… Eu conheço a Joana e eu sei que ela ama o Ruben, ama muito! Ela não seria capaz de lhe fazer o mesmo duas vezes.

- E o que é que ele acha? – somente procurava por respostas, pois só desta forma poderia arranjar uma maneira de tentar amenizar a dor do meu filho

- Apesar de nunca me ter dito com todas as letras, eu penso que ele tá achando exactamente isso! – o que eu mais temia aconteceu, não por ser verdade, porque poderia não ser, mas porque o Ruben acreditava nisso – Eu gostava de continuar essa conversa com a senhora mas tenho de ir… A Adriana e os meus pais me estão esperando para jantar e ainda tenho uma hora de estrada pela frente…

- Claro, meu filho, não te prendo mais! Ia perguntar-te se querias ficar connosco para o jantar mas sendo assim… - esbocei-lhe um sorriso terno e sobre a mesa ele apertou ligeiramente as minhas mãos como sinal de força e carinho – Ah, lembrei-me agora! Fiz um frasquinho de compota de framboesa e nozes para a tua mãe, fomos ontem tomar café e esqueci-me de lho levar. Se me fizeres o favor…

- Claro, pode deixar que eu entrego pra ela! – ele disponibilizou-se perante o meu pedido e logo que pus as bocas do fogão no mínimo e coloquei o frasco num saquinho, entreguei-lho em mãos e acompanhei-o depois até à porta – O Ruben que me diga se continuar precisando que o leve e traga do treino…

- Obrigada pelo teu apoio, eu sei que te dá trabalho andares sempre a fazer estes quilómetros todos, mas ele agora mal pega no carro!

- Não me custa nada… A gente é como irmãos, tô fazendo o que tenho a certeza que ele faria por mim!

- Obrigada, David! – agradeci uma vez mais e partilhámos um abraço de despedida – Conduz com cuidado, até amanhã!

- Não se preocupa, tia Bela… Até amanhã!

Voltei a fechar a porta e preparei-me para traçar novamente caminho até à cozinha mas detive-me a meio da sala quando vi Ruben a caminhar no corredor do andar superior, antecedendo à escadaria.
Lembrei-me do dia em que ele me telefonara dos Estados Unidos, extremamente alegre e feliz, dando-me uma notícia que eu não contava de todo, mas que me deixou radiante ao ouvi-la… A de que voltara a reatar os laços de uma relação que enleava com a mulher que eu sabia ele ter amado realmente sem limites, mas agora toda a sua alegria que lhe deslindei pelo telefone tinha desaparecido, e ele estava ali, descendo os últimos degraus das escadas, de coração destroçado sem saber que rumo seguir.

- Vem cá… - chamei por ele, deslindando-lhe as lágrimas nos olhos

- Dói tanto, mãe…

- Eu sei, meu filho, vem cá. – ele não se sentiu capaz de rejeitar o conforto que eu tinha para lhe oferecer e jogou-se nos meus braços, deixando o choro fluir quando me apertou com força contra si, como se eu fosse o seu único ponto de apoio seguro – Está tudo bem em chorares, Ruben, chora… Deita tudo cá para fora!

- Eu não aguento mais, mãe… - ciciou sofregamente, deixando cair sobre mim quase todas as forças do seu corpo que ainda o mantinham de pé

- Anda, vamos sentar-nos! – peguei-lhe na mão e guiei-nos até ao sofá que onde acabámos por ocupar um canto – Queres conversar?

- Não, ainda não… - recusou e eu respeitei a sua vontade, quando estivesse pronto para falar, ele mesmo iria dar esse passo e procurar-me

Puxei-o de volta para mim, abracei o seu corpo com os meus braços protectores e não demorou muito até sentir as suas lágrimas molharem o meu peito. Ficámos os dois em silêncio e apenas o ouvia chorar mais e mais, como um menino pequeno e assustado que eu não sabia mais defender das desilusões da vida. Não havia castigo pior para uma mãe do que ver um filho sofrer, e o meu Ruben estava a sofrer… Estava a sofrer por amor.

- Eu não vou aguentar passar por tudo outra vez, não vou… - ao fim de alguns momentos ele quebrou a sua barreira de segurança que comigo havia estado silenciada nestes últimos dias e começou por desfiar os limiares da sua dor – Já a procurei em todos os lugares possíveis e continuo sem saber nada dela… Onde está, com quem está, se está bem…

- Já tentaste ligar-lhe?

- Já, já tentei mas de todas as vezes que lhe ligo o telefone está sempre desligado… Sempre!

- Talvez tenha acontecido algum contratempo…

- Qual contratempo? Já passaram quatro dias, mãe, quatro dias… Se ainda não deu notícias, se ainda não apareceu é porque não quer ver-me! É porque se arrependeu do que vivemos nesta última semana, é porque se arrependeu de nós! – aquela afirmação que saiu da sua própria boca, feriu-o mais do que ele pensava, e o resultado reflectiu-se nas lágrimas que continuaram a rasgar o seu rosto agora furiosamente, desencadeando um soluçar aflitivo

- Não digas isso, Ruben… Não vês que só te estás a magoar a ti mesmo ao dizeres essas coisas?

- Ela prometeu, ela prometeu que desta vez era para sempre, que íamos ficar juntos mesmo que tivéssemos de lutar contra tudo e contra todos…

- Tem calma, meu filho, vais ver que vai ficar tudo bem… - prometi, apesar de me arriscar numa promessa que não estava inteiramente ao meu alcance de ser cumprida – O teu irmão vai passar o fim-de-semana ao Algarve, porque não vais com ele? Fazia-te bem espairecer um bocadinho…

Ele não me respondeu e continuou envolto naquele choro que não cessava e que a cada segundo me partia mais um bocadinho o coração. Continuei a embalá-lo nos meus braços e ao fim de alguns minutos dei conta do Mauro, que desceu apressadamente as escadas e se precipitou até à porta sem dar pela nossa presença.

- Filho, vais sair? Não jantas connosco? – a minha inquirição demoveu-o por segundos e a minha voz fez com que instintivamente ele me encontrasse

- Não, mãe, esqueci-me de a avisar… Vou jantar com a Paula! – informou-me, e quando se preparava para sair, deteve-se ao reparar na figura destroçada sobre o meu colo, do irmão… largou a maçaneta da porta e caminhou calmamente até nós – Então, puto? – tocou no ombro de Ruben, esperando uma explicação dele àquele seu estado, mas apenas o fez abrandar o soluçar

- Deixa-o estar, Mauro… - pedi-lhe, sabendo que Ruben precisava somente de algum descanso e não de dar justificações que o fizessem reviver a sua mágoa    

- O quê, não me digas que estás assim outra vez por causa daquilo que estou a pensar! – arguiu numa voz aveludada de censura, o que a mim só me veio a garantir que eles já tinham discutido aquele assunto antes – Eu já sabia que isto ia acontecer, eu já sabia… Ela a mim nunca me enganou! 

- Mauro! – adverti-o no mesmo instante num tom repreensivo

- Mauro, o quê? É verdade! Quem engana uma vez, é capaz de enganar sempre! Só se quis aproveitar de um coração de manteiga como tu…

- Tem cuidado com o que dizes… Estás a falar da Joana, da minha namorada! – Ruben desprendeu-se da minha alçada e ergue-se do sofá de rompante, encarando o irmão num frente a frente, e ao vê-los começar a exaltarem-se um com o outro, um nó forte formou-se no topo do meu estômago

- Namorada? Essa é boa… Que tipo de namorada é ela para fugir pra Nova Iorque e estar três anos sem dar notícias? Que tipo de namorada é ela para te deixar uma segunda vez, nos Estados Unidos, e não te prestar cavaco?! Abre os olhos, puto, não sejas otário!

- Meninos, parem já com isso! – ordenei, tentando impedir que aquela troca de palavras mais acesa evoluísse para uma discussão séria

- E se eu quiser ser otário… Hum? Achas que é fácil para mim? Eu estou apaixonado por ela, será que tu não entendes isso?!

- Ruben… Eu já vos avisei!

- É assim que queres, não é? Então olha, deixa-te andar aí a chorar pelos cantos como tens feito nestes dias, deixa-te estar aí a sofrer… Sofre! Parece que até gostas…

- Tu não sabes do que falas, não sabes nada! - vi os olhos de Ruben encherem-se com novas lágrimas pela mágoa e revolta que o deviam estar a corromper por dentro, e nos seus punhos cerrados junto ao corpo, apercebi-me que ele fazia um esforço enorme para se controlar

- O que eu sei é que essa tipa não te merece, e não digas depois que eu não te avisei! Até logo, mãe! – deu-me um beijo na testa e sem dizerem mais nada um ao outro ele afastou-se, deixando-nos uma vez mais a sós com o bater da porta que anunciou a sua saída

- Não ligues ao teu irmão… Tu sabes que ele só disse aquilo porque está preocupado contigo e não gosta de te ver assim!   
  
- Não, mãe… Eu contive-me porque não quis dar parte fraca na frente dele, mas talvez o Mauro até tenha razão! – o seu corpo caiu pesadamente no centro do sofá e de novo uma avalanche de lágrimas apoderou-se do rosto do meu menino

Apesar de ter sido áspero com as palavras, Mauro não tinha intenção de o magoar, pelo contrário… Estava apenas a assumir as suas funções de irmão mais velho. Melhor do que ninguém ele vira-o sofrer há três anos atrás, quando aquele amor lhe tinha pregado uma rasteira, e agora, depois de todo este tempo, vê-lo na mesma situação era algo que a ele também o abalava. Ruben sempre fora aquele que conseguia elevar a moral e transmitir a sua alegria e boa disposição a qualquer um, até nos momentos mais difíceis, e aquela tristeza e sofrimento que não era habitual ver-se nele, desencadeou em Mauro o instinto defensivo sob o irmão. Sentei-me junto dele e tentei perceber que novos sentimentos o estavam a invadir.

- O que é que queres dizer com isso, Ruben?

- Quero dizer aquilo que é óbvio! Eu tentei, eu juro que nestes dias tentei descartar esta possibilidade, mas ela está tão clara… - ele olhou-me com os olhos raiados por uma vermelhidão e mágoa que doía – A Joana deixou-me…   

- Oh, meu filho, não digas isso… Isso não é verdade!

- É, mãe, é verdade! – a sua cabeça tombou sobre as suas mãos, e um novo tormento atracou a sua alma – Eu amo a Joana, mãe, eu amo-a tanto e ela deixou-me… Ela deixou-me… - balbuciou embalado por uma desconsolação infinita, num choro inquieto que lhe sacudia o peito em cada soluçar e me deixava com o coração nas mãos por não poder fazer nada que pudesse sossegá-lo, e livrar-lhe daquela dor que retomara então à sua vida




Queridas leitoras, aqui fica mais um capítulo!
Espero que gostem e não se esqueçam de deixar os vossos comentários! :)

Beijinhos,
Joana 



sábado, 6 de abril de 2013

Capítulo 12 - Tudo começou para nunca mais acabar (Parte III)




















(Ruben)

Abandonámos o hotel a um tempo confortável para podermos chegar ao aeroporto às horas que nos tinham sido estipuladas, e com isto conseguir fugir ao trânsito que não tardava em aglomerar-se no acesso aos viadutos.
A partir do momento em que nos despedimos no meu quarto, com a promessa de voltarmos a estar juntos mais tarde, nunca mais voltara a ver a Joana, e sem querer, a vontade de a ter outra vez em meus braços foi-me rompendo de mansinho.
Mas o que é bem certo e verdade, é que seguido do instante em que embarcáramos finalmente no avião que o tempo correu, voou… Dando lugar à paz de espírito e tranquilidade que retomaram à minha vida, e às quais eu me entreguei por completo nas horas seguintes.

- Manz? Manz, acorda… - quase que imperceptivelmente consegui distinguir uma voz que aos meus sentidos parecia estar longe, acompanha por uma força que sentia junto do meu ombro, agitando-me e forçando-me a despertar – Acorda, pô!

- O quê? Já… Já chegámos? – foi a primeira coisa que disse, logo que desencostei num sobressalto o meu corpo ainda meio adormentado do banco, soltando os phones com os quais havia adormecido nos ouvidos e olhando depois a figura de David, que tinha permanecido toda a viagem ao meu lado

- ‘Tamos chegando… A hospedeira avisou pra gente colocar o cinto que dentro de minutos já vamos aterrar!

Ainda só tinham passado algumas horas e eu já estava com saudades dela. Tentei por muitas vezes durante a viagem sair da primeira classe para procurá-la, nem que fosse só por cinco segundos, cinco segundos que dessem para lhe dar um beijinho e me certificar de que ela estava bem… Mas acabei por não fazê-lo, pois David foi-me pedindo sempre para ir aguentando mais um pouco, alertando-me também, e com razão, que naquelas circunstâncias eu não poderia abandonar a classe que era somente reservada à comitiva, para ir vê-la. Para além de ser arriscado não deveria expor-nos daquela maneira e muito menos comprometer a minha posição, pois em qualquer dos casos eu ainda estava sobre o comando e chefia do meu clube.

- Cê tá dando nas vistas, manz… - a voz alarmista e libertada num sussurro de David junto do meu ombro, despertou-me do transe intrépido em que eu estava envolto, não conseguindo desligar a minha atenção das portas de desembarque

- O que é que tem? Só estou a olhar…

- O problema é que cê já tá olhando há tempo demais, ué… Tá aí e todo mundo topa que tá alguma coisa de errado com você!

Estávamos há alguns minutos junto do tapete rolante à espera das nossas bagagens, e desde então que eu não desprendera de maneira alguma, os meus olhos da zona de desembarque, na ânsia e expectativa de acalmar o meu coração quando uma nova pessoa rasgava passagem e todo eu tremia na expectativa que fosse Joana… mas nunca era.
Tínhamos sido os primeiros a abandonar o avião, e de cada vez que eu voltava a procurá-la e não a encontrava, o meu ser desalentava um pouco mais assim como todas as minhas esperanças que esmoreciam.

- Rapazes, já que todos recolheram as malas, vamos indo! Os seguranças já deixaram passar os jornalistas e não tarda estão aí… - informou-nos cautelosamente Rui Costa, colocando-se à frente do grupo – Eles não nos deverão poupar a perguntas e contudo não vamos ignorá-los, mas peço-vos para serem o mais rápidos possível e não se demorem a entrar no autocarro!

Quando começámos a caminhar pelo aeroporto, que àquelas horas da madrugada estava muito pouco frequentado, e sem ainda nos termos afastado muito aproveitei para falar em surdina a David – Eu não vou com vocês…

- Você o quê? – julgando-me ter perdido a sanidade, ele fez-me a pergunta óbvia de quem procurava por um esclarecimento

- É isso mesmo que ouviste, mano… Eu não me vou embora!

- Como é que é? Cê tá louco, Ruben? – David abrandou o ritmou da passada e apressou-se a controlar o tom de voz, para que ninguém ao nosso redor deslindasse o teor da conversa – Você sabe que não pode fazer isso… Ainda não fomos dispensados, sabe que não pode saltar fora assim!

- Eu não vou sair daqui sem saber nada da Joana!

- Ah, Ruben, por favô! Tarda não e a Joana tá aí… Qual é?

- Enquanto não a vir com os meus olhos, eu vou ficar e ponto final! – bradei em surdina e sem quaisquer hesitações, recusando-me a sair dali sem saber nada dela, sem a ter visto uma única vez

- Vai arranjar lanha pra se queimar por coisa nenhuma, mas cê que sabe… - ele agitou os caracóis no ar num sinal claro de repreensão passiva à minha atitude, aparentemente incompreensível, e depois afastou-se, assim como os meus colegas que vindos mais atrás acabaram por passar à minha frente

Por vontade e necessidade própria travei o percurso traçado pelos meus pés e estaquei no meio do corredor colossal por onde seguíamos. Rodei ligeiramente o meu corpo e ao olhar para trás, centralizei o cenário que provavelmente me custara mais enxergar nos últimos tempos… Duas das hospedeiras que seguiram connosco a bordo fechavam as portas de desembarque, assegurando-se de que ninguém mais restava. No segundo seguinte olhei à minha volta numa réstia quase inconcebível de esperança e esta acabou por arder ficando em cinzas, pois nada, nem um mero sinal me levou a identificar Joana… A minha Joana.

- Ruben? Ei, Ruben! – foi a voz grave de um dos preparadores físicos do clube que fez com que eu voltasse à terra, e sem lhe responder rodei o pescoço e somente olhei-o – Então, ficas aí especado…? Não vens? – confrontado com aquela pergunta, por segundos o meu cérebro bloqueou o raciocínio e eu fiquei sem saber o que dizer mas a resposta era fatalmente derradeira e não poderia falhar

- Ah… Sim… – clareei um pouco a voz que me tinha falhado brevemente, e a minha cabeça vergou-se num único movimento de cedência, seguida pelo olhar que a acompanhou remontando à cor fria chão – … Sim, vou.

Um aperto forte no peito dificultou-me a facilidade de simplesmente respirar e fez soltar uma dor que me dominou por dentro. Sem voltar a olhar para trás segui o meu caminho, sozinho, sem ela, e o que mais temia acabara por ter sido confirmado aos meus olhos e logo depois ao meu coração: a Joana não fez aquela viagem, não tinha saído daquele avião, e isto, se alguma vez tenha realmente entrado.




***



(Joana)

O voo, embora cansativo pelo seu número excessivo de horas, foi calmo e passivo na sua maioria, apesar de não termos conseguido escapar à zona de turbulência depois da paragem que fizemos em Nova Iorque.
Tentei descansar um pouco mas foi totalmente em vão, pois no mesmo segundo em que fechava os olhos, o meu ser destabilizada aquando o meu pensamento não temia em desassossegar-me, viajando até ao outro lado do Atlântico para estipular única e somente uma pessoa: Ruben. Não conseguia deixar de me preocupar, e recear até, a sua reacção quando descobrisse que, ao contrário do que ele julgava, eu não tinha viajado para Lisboa e com isso as conclusões precipitadas que ele poderia tirar em prol de um desfecho que nenhum de nós dois anteviu.

- Ladies and gentleman, welcome to Dominican Republic. We have just landed at Punta Cana International Airport. Hope you enjoyed your flight! – a voz aguda da assistente de bordo ressoou a todos os altifalantes do avião, dando-nos a confirmação necessária da nossa chegada àquele paraíso tropical

Não sei bem como, mas a verdade é que mal saímos pelas portas do aeroporto, já um jipe preto estava estacionado à nossa espera para nos levar para o hotel onde iríamos permanecer as próximas duas noites.
Senti-me numa outra dimensão enquanto pela janela do carro via passar por mim as paisagens mais exóticas e extraordinárias que alguma vez vira na vida. Como hábito, Pedro encarregou-se de fazer a nossa reserva, e enquanto ele optou por ficar entre a austeridade de um quarto de hotel, eu preferi instalar-me no conforto em um dos trinta e dois bungalows pertencentes à companhia do hotel, contemplados por uma praia semiprivada a qual era cercada por centenas de palmeiras que conferiam a intimidade de todos os hóspedes a um verdadeiro paraíso.

- Tu vê lá, Joana, não te metas em aventuras! Sabes que pode ser perigoso ficares sozinha, e assim todo o cuidado a tomar é pouco… - alertou-me cautelosamente Pedro, consciente de que tinha sobre mim uma carga de responsabilidade não apenas como um colega de trabalho, como também de um irmão mais velho

- Sim, eu sei… - os meus olhos reviraram-se num movimento muito rápido, pelas instruções precisas para me manter em segurança que ele cismava em repetir-me aos ouvidos – Os bungalows ficam apenas a uns metros do hotel, para além de que ninguém me deve conhecer aqui, este é um sítio privado, não vai haver problema!

- Mesmo assim continuo com a ideia de que o Alexandre deveria ficar contigo!

- Ai, Pedro, por favor… Deixa de ser melodramático! – pedi num desafogo, permitindo aos meus lábios traçarem um sorriso irónico no instante seguinte, que ele rapidamente soube traduzir – Além disso não te esqueças de que o bungalow é individual, querias que o pobre do segurança dormisse comigo ou ficasse de plantão no alpendre?

- Deixa-te de piadas, Joana, eu estou a falar muito a sério! – advertiu-me ele rapidamente, não deixando no ar qualquer dúvida para a seriedade do assunto
  
- E eu também estou! – afirmei, muito certa de que iria tudo correr pelo melhor e dei-lhe um beijinho na bochecha, pronta para o deixar e tal como ele, ir dormir algumas horas antes do começo do primeiro, dos dois dias de trabalho – Vá, vai descansar e fica sossegado…



***



Horas mais tarde os batuques ritmados contra a porta de madeira do meu quarto perfuraram os meus sonhos, obrigando-me a desprender dos lençóis e levantar-me, para ir ver quem era. Ainda a cambalear sobre os pés descalços e de olhos semicerrados pelas horas contínuas que passei a dormir, rodei a maçaneta nas minhas mãos e abri somente uma brechazinha para conseguir espreitar um pouco do lado de fora, sem que a luz exasperada do sol me ferisse os olhos.

- Bom dia, flor do dia! – o sorriso animador de Pedro denunciou-lhe uma disposição e energia fora do normal, tendo em conta o voo exaustivo que tivéramos há apenas umas horas

- Bom dia… - respondi monocordicamente e sem permitir que qualquer entusiasmo me cativasse a voz, deixei-o entrar e da mesma maneira vagueante e adormentada com que lhe fora abrir a porta, assim retomei o mesmo caminho de regresso à cama que gritava por mim – Então, entusiasmada para trabalhar e relaxares um pouco neste cantinho do céu?

- Hum, hum… - rumorejei ao mesmo tempo que deixei cair o meu corpo pesadamente sobre o colchão – Entusiasmada para dormir, pelo menos, mais uma horinha!

Ele riu-se do meu tom leve de piada, que sabia não ser normal em mim logo que acordava – Era bom não era? Mas temo que não possas fazê-lo… O melhor é ires arranjar-te e depois vamos comer qualquer coisa, porque daqui a mais ou menos duas horas vais ser apresentada à equipa e começas os primeiros testes de imagem e afins para iniciarmos as gravações!

- Está bem mas dá-me então só mais cinco minutinhos… - pedi-lhe, com a cabeça totalmente afundada na almofada que fez com que a voz me saísse indiscutivelmente abafada entre a esponja volumosa e perfumada pelos meus cabelos

- Não, nem mais cinco, nem dez, nem vinte minutinhos… - senti as suas mãos atacarem o meu braço puxando-me para fora da cama – Vá, deixa mas’é de ser preguiçosa e levanta-te!

- Ai, Pedro, que chato… Bolas!

- Sim, sim, muito chato! Mas agora vai… Andor, à minha frente, andor! – pressionando-me nas costas, ele foi-me empurrando para a casa de banho

Deitei-lhe a língua de fora apenas para espicaçá-lo e depois entrei, deixando-o à minha espera no quarto.
Embora preferisse tê-lo feito, não me prolonguei por demasiado no banho, ainda assim levei-o com calma, sem deixar-me pressionar pelo curto tempo que teria para ficar pronta.




Arranjei-me com uma roupa leve que sabia que iria ser indispensável ao calor tropical republicano, e deixei o meu cabelo tomar os seus jeitos naturais aquando enxugado, assim como a maquilhagem que eu reduzi somente a um pouco de blush pois sabia que mais tarde os profissionais delimitados ao encargo do meu visual, iriam alterá-lo para os posteriores testes de imagem. 

- Quinze minutos… Nada mal… para uma mulher! - logo que voltei a enveredar pelo quarto, olhei Pedro sentado à beira da cama, balbuciando com um sorriso os minutos cronometrados da minha demora, pelo relógio de pulso

- Sempre tão engraçadinho, não é? – evidenciei, numa expressão conotada por uma ironia forçada

- Sabes como é…

- Sei… Sei muito bem até! Mas diz-me lá, que horas são?

- Ah… É quase meio-dia! – confirmou, olhando novamente o seu relógio

 - Meio-dia?! – questionei, num arregalo súbito dos meus olhos – Isso quer dizer que são seis da manhã em Portugal… O avião deles já deve ter aterrado há algumas horas! 

- Sim, é provável!

- Então empresta-me o teu telemóvel, por favor, para ligar ao Ruben! – pedi num tom inegável de súplica, que ele não poderia recusar

- Pois, quanto a isso, bem… - como por um reflexo repentino de culpa e cobardia, o seu olhar protegeu-se do meu ao fixar outro ponto que não os meus olhos, e aquela sua hesitação despoletou em mim uma inquietude momentânea

- O que foi, Pedro? Que cara é essa?

- Promete-me que não te chateias comigo…

- O quê? Mas que conversa é essa? – inquiri num só assopro, e a sua expressão desalentada alertou-me de que alguma coisa estava a ser-me escondida

- Promete, Joana!

- Não, desculpa mas eu não vou te prometer nada enquanto não me disseres o que se está a passar… O porquê dessa tua hesitação! – os meus braços tiranos exigiram-lhe uma explicação logo que se cruzaram diante do meu peito, e o meu semblante tornou-se inevitavelmente mais taciturno, receando o que iria ainda ouvir – Esqueceste-te do telemóvel no hotel, é isso? Se for isso não tem problema, quando formos comer qualquer coisa podemos passar pelo teu quarto para o ires buscar…

- Não, não… Não foi isso que aconteceu, eu não me esqueci do telemóvel! – negou para depois respirar profundamente a fim de se confessar a mim – A verdade é que eu… Eu não tenho o número do Ruben! – disse por fim, numa afirmação frívola em conteúdo, que me apanhou de surpresa e me feriu

- Tu não… Tu não tens o número do Ruben? – um sorriso de pura prepotência desenhou-se por vontade própria nos meus lábios, julgando eu estar a ser vítima de uma brincadeira de muito mau gosto por parte do meu agente – Como não tens? Tu disseste que…

- Desculpa, eu pensava que o tinha, mas como troquei de cartão recentemente, perdi alguns contactos e nunca mais me lembrei de lho pedir… Desculpa! – perdoou-se rapidamente e bem na minha frente viu-o erguer-se, portando um sentimento de culpa que lhe preencheu os ombros na totalidade

- Isso quer dizer que me mentiste?

- Não, eu não te menti, eu apenas não me lembrei que não o tinha… - ele precipitou-se na minha direcção, mas imediatamente repeli-o, antes que tivesse oportunidade de me tocar – Por favor, não me odeies, havemos de arranjar uma solução!

- Uma solução, Pedro? Que solução? – sem eu mesma querer, as lágrimas começaram a subir aos meus olhos e um sentimento misto de traição e mágoa transpuseram-me a voz, que não contive em elevar – Nós estamos a centenas de quilómetros um do outro, eu não tenho maneira de o contactar a ele ou a qualquer um dos nossos amigos, como raio se há-de arranjar uma solução?

- Acalma-te, por favor… Tem calma… - pediu-me sofregamente, tentando apaziguar o meu estado, que naquele momento estava sobressaltado demais

- Tu sabes, tu sabes que eu só aceitei vir assim para aqui, porque me prometeste que ia poder falar com o Ruben, mas afinal… - Pedro interrompeu-me a tempo, pois não estava disposto a ouvir-me recordar-lhe a verdade dos factos

- Porque de outra maneira eu sabia que não virias… Apanhavas o próximo avião para Portugal e viravas costas a uma oportunidade como esta! Tu nunca puseste os teus desejos e interesses pessoais à frente do teu trabalho, não irias fazê-lo agora! Como teu agente eu não poderia deixar… Seria um erro!

- Como meu agente, Pedro? Como meu agente?! – inquiri voltando a subir o tom revoltoso da minha voz, mostrando-lhe um sorriso de puro desalento – E então onde fica o meu amigo no meio disto tudo? Tu és o meu melhor amigo, caramba! Mesmo que não concordasses, era suposto aceitares as minhas escolhas independentemente de tudo, e não mentires-me daquela maneira! Eu voltei a conquistar o amor do Ruben e não estou disposta a abdicar dele novamente por causa de um equívoco! – uma recordação triste do ressentimento de Ruben por ter sido obrigada a deixá-lo uma vez, passou-me na frente dos olhos e acutilou-me o coração, pois temi que a ausência de notícias da minha parte o levasse a precipitar novas conclusões

- Ouve, eu até entendo que te custe estares aqui e o Ruben em Lisboa sem saber nada destes contratempos, mas não achas que estás a exagerar um pouco? Depois de amanhã já estamos de volta a Portugal… Logo logo podes falar com ele e explicas-lhe tudo, não precisas de fazer disto um drama!

- Tu não entendes, pois não? – a minha voz tinha por fim esmorecido, tal o meu cansaço em expor as razões que apesar de tudo, apenas eu conseguia enxergar – Acho que ninguém entende, na verdade…

Esse era um facto. Ninguém conseguia colocar-se no meu lugar e entender aquela minha posição, aquela ordem de impotência de quem nada podia fazer para alterar o destino injustiçado que poderia voltar a impor-se num futuro prospero, reavendo as mágoas e os erros cometidos num pretérito ainda demasiado presente.
Abanei levemente a cabeça num gesto claro de quem não conseguia ser compreendida e peguei então na minha mala, preparando-me para sair sem dar a Pedro qualquer tipo de justificação.

- Joana, onde vais? Espera…

- Não venhas atrás de mim, está bem? Eu quero estar sozinha! – detive-me quando abri porta que antecipou a minha saída precipitada, e olhei-o naquela que seria a última vez antes de partir – E não te preocupes que eu não vou fugir aos meus deveres, sei perfeitamente as responsabilidades que tenho aqui…

- Joana! Joana, espera… Vamos conversar! – sem ter tido a necessidade de olhar para trás, consegui senti-lo acompanhar-me até à porta e deter-se junto da ombreira, vendo-me fugir do alpendre tabuado e alcançar as escadas que me levaram enfim a pisar o areal

Não sabia o que fazer, isto se podia mesmo fazer algo… Estava de mãos e pés atados e com uma dor agressiva por evidentemente me sentir ser a única culpada daquela história toda, pois começara a apoiar o meus receios na incerteza de que a minha relação com Ruben pudesse vir a ser susceptibilizada por desencontros que não estiveram ao nosso alcance evitar.
Antes de me lançar os meus deveres, pelos quais estava ali, tirei um momento só para mim, precisava dele para pensar e sobretudo sossegar-me na esperança de que tudo iria correr pelo melhor e depois, quando me senti suficientemente mais leve e calma, segui para o hotel, ao encontro da equipa responsável pela campanha a qual eu fora escolhida para representar.



***



Fui apresentada a todos os elementos da equipa com os quais iria trabalhar nos próximos dois dias de gravações, e animou-me a maneira calorosa com que cada um chegou junto a mim e se disponibilizou para tudo o que eu viesse a prescindir.
Em tempo fugaz que nem mesmo eu  dei conta de passar, quando dei por mim já seguia num catamaran que rasgava as águas azuis turquesa do alto mar, velejando em direcção à Ilha Saona onde iriam ser feitas as filmagens do anúncio. Embora tivéssemos trocado olhares por diversas vezes, durante toda a viagem não mantive qualquer outro contacto com Pedro, ainda estava demasiado magoada com a atitude dele e enquanto aquela revolta interior não abrandasse em mim o suficiente para perder o orgulho, eu mesma iria continuar a manter a distância entre nós.

- Lhegámos! – anunciou um senhor carabiano de meia-idade que conduzira o catamaran, num típico sotaque castelhano que nos anunciou a chegada a bom porto a um fenómeno deslumbrante da natureza

Logo que saímos do barco pisámos a areia escaldante e puramente branca que era beijada pela água mais quente que alguma vez provara.
Situada na província La Romana, Saona era uma das ilhas da República Dominicana mais requisitada em resorts e indispensável à visita turística, era também considerada uma das melhores e mais bonitas ilhas paradisíacas de todo o mundo e que eu mesma tivera o privilégio de conhecer com os meus próprios olhos. Fiquei imediatamente fascinada com todo o cenário de sonho em meu redor quando senti pairar no ar o cheiro característico a fruta tropical, os coqueiros, alguns assustadores pelas suas alturas, que faziam sombra às espreguiçadeiras e camas de rede que faziam as delícias de qualquer um. Sobre as nossas cabeças observei com entusiasmo alguns pequenos macacos mais atrevidos que se exibiam nos galhos das palmeiras e outras tantas aves exóticas que não soube distinguir pelo pouco conhecimento que tinha na área.

- Era capaz de apostar que a gente já se cruzou em algum lugar, só ainda não lembrei onde… - enquanto bebia uma deliciosa água de côco nos dez minutos dispensados antes de iniciarmos a pré-produção, ao balcão do pequeno bar juntou-se a mim o modelo que iria dividir a tela comigo, presenteando-me com um sotaque delicioso a que eu já estava tão bem familiarizada

- Ah… Sim, eu também penso que sim… - confirmei, praticamente certa que não estava induzida a erro ao olhá-lo brevemente, recordando os traços famosos do seu rosto – …em Nova Iorque, se não me engano!

- Em Nova Iorque… É, acho que agora eu lembro! Cê era a tal moça portuguesa com quem eu iria pousar junto pra’quele catálogo… Mas aí houve aquela troca com a agência e terminámos nem fotografando! – recordou num tiro certeiro, esboçando-me um sorriso ténue que eu correspondi no segundo seguinte

- Hum… Sim, exactamente! Estivemos juntos no estúdio mas a sessão acabou por ser adiada. – pousei o côco sob o balcão e o mesmo fiz com aos meus braços cruzados

- Meu nome é Francisco mas por favor, me chama só de Chico, como todo o mundo me chama. – ele soltou uma gargalhada suave e eu vi-me tentada a acompanhá-lo, voltando a segurar as duas palhinhas da minha água de côco, contemplando mais um sorvo – Você deve ser a Joana, né?

- Sim, sou eu! Muito prazer, Francisc… Chico! – a minha mão foi ao encontro da dele que já se tinha erguido na minha direcção, e foi no que ar elas se agitaram levemente selando o típico cumprimento com a partilha de dois beijinhos no rosto

Francisco Lachowski, era assim o seu nome. Tal como ele me conhecia a mim pelo profissão que tínhamos em comum, eu dele sabia o que apenas tinha visto e lido pelos média… Ele era o modelo brasileiro mais requisitado no seu país, e no seu currículo poderia orgulhar-se de já ter sido convidado para representar as marcas de moda mais prestigiadas em todo o mundo, o que fazia dele um profissional de prestígio que dava e certamente continuaria a dar cartas ao ramo. E apesar de já nos termos cruzado, como ele mesmo referira e eu recordara, nunca em outra ocasião havíamos sido apresentados.

- E aí… É a primeira vez que faz esse tipo de trabalho? Noto aí uma pontadinha de nervosismo em você…

- Sim, estou um pouco nervosa, mas nada demais! – o meu olhar voltou a recair sobre o seu semblante e um sorriso educado foi expresso nos meus lábios – Fiquei surpreendida por ter sido chamada a fazer o anúncio, visto que a maioria do meu trabalho passa pela máquina fotográfica e não pelas câmaras…

- “Há sempre uma primeira vez pra tudo”… Não é isso que a galera tá sempre falando? E se escolheram você pra esse anúncio, é porque sabiam que cê ‘tava bem à altura, ué!
 
- Sim, talvez tenhas razão… Ainda por cima estou aqui por um dos melhores motivos que é o meu trabalho, acho que só tenho que aproveitar!

- É isso aí, moleca… Relaxa, aproveite esses dias num lugar de sonho como esse, que tarda nada já ‘tamos dizendo adeus ao Caribe e de volta a casa! – um sorriso simpático denunciou-lhe toda a jovialidade de que era portador e rapidamente aquela sua certeza anestesiou-me com a lembrança de um fardo que me acompanhava desde aquela manhã

“…de volta a casa”. Conseguia perfeitamente atribuir um segundo significado a estas palavras… Palavras que para mim só faziam sentido se fossem sinónimo do porto de amor e paz que Ruben representava para mim, mas palavras as mesmas que deixavam de rimar agora que voltara a estar tão longe dele. E pronto… Lá estava eu de novo mergulhada naquela melancolia que não me deixava pensar direito, que me fazia sentir culpada e se abatia em mim com afogos de medo e desesperanças por temer voltar a perder a razão, talvez a mais forte de todas as que tinha, de refazer a minha vida e continuar a ser feliz.
Abanei levemente a cabeça de modo a varrer os meus devaneios e notei que Francisco me olhava introspectivo, reparando que eu estivera longe por alguns momentos.
Acabámos por ser chamados e nas horas seguintes que se estenderam durante quase toda a tarde, entreguei-me exclusivamente ao trabalho. Às minhas mãos chegou um guião que eu li atentamente de forma a perspectivar o cenário do anúncio que iria ser gravado no dia seguinte, pois naquela tarde limitámo-nos apenas à escolha de cenários, figurinos e ao ensaio das cenas. Quando chegámos ao fim sentia-me realmente cansada, mas felizmente não cansada o suficiente para descobrir outros encantos escondidos naquele paraíso das Caraíbas.

- Eu não vou poder ir contigo porque ainda tenho uns assuntos a tratar com a produtora, e como não podes ir sozinha… O Alexandre leva-te lá! – rematou Pedro rapidamente, tomando controlo das pontas soltas de uma conversa que iniciáramos há minutos

- Porque é que o Alexandre tem de ir comigo? Que eu saiba posso muito bem ir sozinha aonde quiser! – não queria ser demasiado fria nas palavras, mas por razões óbvias o ressentimento deixado na nossa última conversa ainda estava bem presente em mim

- Podes, podes ir aonde quiseres, mas a partir do momento em que escolheste ir passear na cidade, que deixaste de poder decidir se vais ou não sozinha!

- Não percebo porquê, eu ainda sei tomar conta de mim…

- Joana, tudo isto que vês aqui à tua volta é muito bonito mas acredita que também pode ser muito perigoso… As redondezas da cidade é o contraste disto tudo, há destroços, pobreza e o que não falta lá é marginalidade, portanto, para tua segurança, é melhor que o Alexandre te acompanhe, ok?

- Tudo bem… - os meus ombros descaíram sob o meu tronco, e uma postura mais complacente face ao cuidado que Pedro tomava em mim, tornou-se visível aos olhos de todos daqueles que nos estavam próximos

- Pronto, mas então não te excedas nas horas, não tarda e vai anoitecer… - sobre alertou-me, relembrando uma vez mais a extrema responsabilidade que tinha sobre mim naqueles dias

- Sim, não te preocupes. – acordei simplesmente, para ao fim de escassos instantes o segurança particular se juntar a nós

- Joana… Quando voltares vamos acabar a conversa desta manhã, está bem?

- Até logo! – respondi em altivez já a uma distância considerável dele, e agitei-lhe a minha mão no ar, num gesto claro de quem fintava o assunto mestre que ele havia ressuscitado entre nós, e o qual eu não queria nem iria voltar a tocar, não segundo a minha vontade


***


A cidade de Salvaleón Higuey estava localizada somente a um par de quilómetros dos complexos hoteleiros de Punta Cana. Para lá usámo-nos do meio de transporte que os turistas usufruíam para visitar as zonas da periferia, e iniciámos então o passeio pelas avenidas principais que eram demarcadas pelos monumentos que divisavam os lugares emblemáticos da cidade, como galerias de arte, estúdios de artistas, o museu Taino e rapidamente deixei-me seduzir por um ambiente enfeitiçante que me envolvia e me fazia apaixonar.
Percorri as praças da baixa avenida e enveredei pelo centro histórico, que rodeado por provavelmente um dos maiores jardins que até então vira, exibia com orgulho a imponente e belíssima Basílica La Altagracia construída no século XVI, que guardava para os fies, a padroeira dominicana. Porém não entrei, pois não sabia o horário de visitas e também queria aproveitar todo o tempo que me fora dispensado para continuar a conhecer cada recanto que ainda se alistava na minha mente.

- Não acho boa ideia irmos à vila, Joana… Aquilo lá é uma realidade diferente da que estamos habituados a ver e pode ser perigoso, não te esqueças que esta ainda é uma cidade em vias de desenvolvimento! – informou-me o sempre coerente Alexandre, que fizera questão de não me largar um segundo durante todo o percurso

- Tudo bem, é uma cidade em vias de desenvolvimento, mas também não é nenhum submundo! Vamos lá, damos uma voltinha e depois vimo-nos embora… Simples! – argumentei, forçando uma proposta que rezei para que fosse aceite por ele

- Não acho que o Pedro vá gostar quando souber…

- O Pedro não tem que saber! – rematei com um sorrisinho desafiador que se instalou temporariamente no meu rosto

- Não sei, Joana, não sei… O Pedro confia em mim, não acho correcto esconder-lhe o que quer que seja, ainda para mais no que toca a ti e à tua segurança!

- Mas eu estou em segurança, não vês? Tu estás comigo e não me vais perder de vista por um segundinho, pois não? Vá lá Alexandre, não te custa nada… - um tom pedinchão que não era frequente em mim sobressaiu-se na minha voz e num reflexo as minhas mãos prenderam-se no colarinho da sua t-shirt, e os meus pés colocaram-se em pontinhas de maneira a conseguir chegar mais perto dele e puder olhá-lo atrás dos seus óculos escuros, porém foi em vão pois a diferencia das nossas alturas era eleva e ele cismava em não olhar-me nos olhos para não ceder às minhas vontades – Sabias que és o meu segurança preferido?

- Talvez seja porque eu sou o teu único segurança(!) – o ar de evidência da sua afirmação deram-lhe os fundamentos essenciais a uma feição cómica que nos fez desprender em gargalhadas que nos reconfortaram a alma

Alexandre tinha largado a segurança em portas de discotecas há pouco mais de um ano e desde então que me acompanhava em todas as viagens de trabalho a que eu era incumbida, ficando a cargo dos meus serviços. Ilustrador de um corpo alto e forte pelas horas excessivas de treinos e ginásio, ele era um homem que estava prestes a ingressar na casa dos trinta anos e livre de compromissos de maior, o que lhe dava disponibilidade para se ranger à flexibilidade da minha agenda e acompanhar-me sempre que preciso.  

- Pronto, tudo bem, vamos até à vila… Mas que não te passe pela ideia afastares-te de mim, estás ao meu encargo!

- Ai, obrigada, Alex! Obrigada, obrigada! – agradeci-lhe sinceramente, surpreendendo-o com um abraço que ainda assim se mostrou difícil de reforçar, pois devido à sua enorme corpulência os meus braços tiveram dificuldade em contornar-lhe o tronco na totalidade

Descemos sem pressas os caminhos da calçada que cada vez mais se iam estreitando e por fim invadimos a monotonia das típicas ruas de favela.
Assustava-me de vez em quando com as dezenas de motorizadas que passavam à nossa beira, sendo estas o transporte mais comum dos locais para fins de trabalho, e com aquele panorama debuxado bem em meu redor, acabei por ver imagens que iria certamente manter vivas na minha memória por muito tempo.
A azáfama era grande, havia pessoas amontoadas nas ruas, muitas delas refasteladas nos passeios dando significado ao titular de pobreza… Vi agrupamentos de casas de todas formas, algumas unicamente construídas a pedra e outras pintadas a inúmeras cores, e rapidamente fiz a distinção entre os dois comércios locais: junto às quelhas e zonas mais refugiadas, instalava-se o artesanato de mercado negro, onde imediatamente Alexandre me proibiu de chegar perto, e mais abaixo junto às margens do rio Chavón era assentado o comércio de produtos turísticos e piscatórios.

- Tenho sede e não trouxe água comigo… - revelou-me ele num desabafo de fastio, pois o clima excessivamente quente e abafado bem como o esforço que fizera ao andar a pé, reflectiram-se em si com o desidrate do seu organismo

- Sempre podes ir comprar! Passámos há pouco por um café do outro lado da rua… Vais comprar uma garrafinha de água que eu fico aqui à tua espera.

- Se eu for comprar uma garrafa de água tu vens comigo, não te vou deixar aqui sozinha! – proferiu num tom sério e perspicaz que lhe automatizava toda a responsabilidade que tinha sobre mim

- Olha bem à tua volta, Alexandre… Achas mesmo que alguém está interessado em vai fazer-me mal? Cada um está na sua vidinha, a fazer o seu trabalho… Eu sou apenas uma turista que está aqui de passagem!

- Mas é exactamente por seres uma estranha aqui, que podes chamar atenções, Joana… Eu até posso acreditar que haja aqui muita gente de bem e com boas intenções, mas sabes que de boas intenções…

- …está o inferno cheio, eu sei! – ciciei em tom monocórdico aquando completei o provérbio popular que estava acostumada a ouvir desde pequena – Mas vai, podes ir… Eu não saio daqui, prometo. E se alguém tentar fazer-me mal, eu juro que grito! – disse tentando parecer muito séria, e mordi os lábios para não me rir na cara dele para assim não deixar exposto o meu jeito mais gozão de ser

- Não sais mesmo? – a sua sobrancelha arqueou-se altivamente, sobressaindo da lente ocular e exigindo-me uma só garantia

Mostrei-lhe as palmas hirtas das minhas mãos quando os meus braços se ergueram no ar separados pelo meu tronco, expressando a sinaleira de uma promessa muda.

- Queres que te traga alguma coisa? Desde que saímos da praia que ainda não comeste nada…

- Estou bem assim, ainda não tenho fome… Obrigada.

- Então eu não me demoro… Volto num minuto. – ele começou a afastar-se e em passadas largas vi-o preparar-se para atravessar a rua, que naquele momento estava bastante movimentada não só por veículos dos mais rudimentares, com também por pedestres comerciantes, que levavam consigo animais de gado para venda ou troca de artesanato

Assim fiquei ali sozinha, e quase que dei por mim a respirar um novo ar… Um ar com sabor a liberdade, diria mesmo. A agitação daquela pequena e pacata vila despertava-me a atenção de uma maneira que eu não julguei ser possível, prometendo mostrar-me as pequenas maravilhas que aquela terra escondia. Não consegui ficar ali parada enquanto ainda havia tanto para descobrir, e olhando de relance Alexandre que ainda não conseguira alcançar as portas do café, aventurei-me por novos caminhos.
Passei na dianteira de dezenas de mesas que mantinham em exposição artigos de venda, muitos deles feitos pelas mãos dos próprios feirantes, enquanto os ouvia gargantear em castelhano pregões que despertavam as atenções daqueles que ali passavam, e ao mesmo tempo que me miravam curiosos de cima a baixo e depois me lançavam sorrisos enigmáticos que eu retribuía com um ligeiramente tímido e aveludado.
Seguidamente, ao varrer com o olhar o meu redor, deslindei as águas do enorme amazonas Chavón, onde sabia ter sido gravado um filme da saga “Rambo”, e foi inevitável a atracção que senti para me aproximar delas. Desci uma pequena colina de terra batida e quando cheguei junto às orlas foi numa pedra achatada que achei  pousio confortável para me sentar e ficar a relaxar uns momentos, vendo as mulheres caribianas lavarem as suas roupas nas águas do rio, juntamente com os filhos pequenos que as acompanhavam e brincavam alegremente nas margens.

- …Viene a pedir mi mano, viene/ vamos a sonar unos palos para que me quiera por siempre/ que su amor sea verdadero i oh!/ para que me quiera i ay! – ouvia afinadamente as mulheres trautearem cânticos nativos da sua cultura, aquando realizavam atarefadamente as suas lidas de donas de casa

Deixei-me ficar ali alguns instantes a absorver aqueles cheiros, aquela imagem magnífica que me inspirava fascínio e se estendia na frontaria.
Pouco depois vi uma menina, não devia ter mais dos seus seis anos de idade, de cabelos compridos escuros e roupa descuidada, sentar-se a uns escassos centímetros de mim. A curiosidade de criança despertou-se dentro de si e reparei que ela me olhava discretamente com um certo enigmatismo, talvez por ver uma rapariga como eu, com uma cor de pele diferente da sua. Sorri-lhe num jeito afável e senti a sua timidez desaparecer naturalmente.

- Me llamo Jarlin. – disse-me ela num tom doce de uma pequena menina

- Tienes un nombre hermoso, Jarlin. – respondi-lhe na mesma língua, e num jeito surpreendentemente natural, deixámos que laços de afecto se formassem entre nós

- Gracias… Blanquita! – agradeceu sorridente, e eu não pude deixar de me rir com a alcunha que a pequena me à oferecido, visto que não sabia o meu nome, e recorrendo ao pormenor da cor da minha pele

- Este lugar es realmente magnifico… Debes gustar de vivir aqui, no?

- Sí, me encanta, pero nunca he salido de los Altos de Chavón… Los otros chicos han dejádo aqui, pero yo nunca he visto las cataratas ni las playas… - um sorriso triste foi revelado pelos seus olhinhos negros, e ao fim de um instante marcado pelo silêncio entre nós, ela voltou a tomar ordem da conversa – Me gusta tu pelo… Brilla con la luz del sol.

- Puedes tocarlo, si quieres… - ela pareceu-me entusiasmada com a minha permissão, e até sentir os seus dedinhos começaram a fazer tranças e prenderem pequeninas flores em todo o meu cabelo, foi uma questão de segundos

- Joana! Joana! – ao fim de alguns minutos ouvi nas minhas costas uma voz grossa que me era bastante familiar, e ao levantar-me num rompante pude clarificar o dono da mesma

- Alexandre… - o seu nome saiu-me num sussurro por entre os lábios ao olhá-lo, estava bem ciente que iria ouvir uma reprimenda da sua parte pois tinha transposto a sua barreira de segurança

- Corri a vila quase toda à tua procura! Não sabes a preocupação com que me deixaste… Pensei que te tinha acontecido alguma coisa! – a sua figura ofegada pela correria que fizera à minha procura, denunciou-lhe e com razão, a cara de poucos amigos e talvez tivesse sido isso que levasse a pequena Jarlin a esconder-se atrás de mim, confusa com o que estava a acontecer

- Alex, Desculpa… Mas este sítio é tão bonito que me senti tentada a explorá-lo um pouco mais e nem dei pelo passar do tempo! – apressei a perdoar-me, sabendo perfeitamente que a culpa daquele pequeno alarido era minha – Eu sei que foi irresponsabilidade da minha parte e peço desculpa por isso!

- Foi, foi muita irresponsabilidade da tua parte, Joana… Se te tivesse acontecido alguma coisa eu… Eu nem sei!
 
- Já conheces a Jarlin? – perguntei imediatamente, numa tentativa constrangida em fugir das suas repreensões em meu ataque, e Alexandre apenas conseguiu responder com um sorriso desajeitado, ao olhar a menina que apareceu timidamente do meu lado esquerdo, segurando as mãos aos meus calções

- Bem, mas agora é melhor voltarmos… Daqui a pouco está a anoitecer e ainda tenho que arranjar transporte para nos levar ao hotel! 

- Sim, é melhor irmos que já sei como é o Pedro se chegarmos tarde! – dito isto voltei-me para a pequenita e agachei-me à frente dela – Me tengo que ir, pero antes quiero ofrecerte un regalo… - retirei a mochila que trazia às costas e do seu bolso exterior peguei algumas conchas e um pequeno búzio que trouxera da praia

- Qué es esto?

- Dame tus manos, dulce… – pedi-lhe, e logo que as suas pequenas mãos se estenderam à minha frente formando uma concavidade, ofereci-lhe as conchinhas e o búzio – Mientras que no puedas ver el mar, pones la caracola cerca de tu oreja e puedes escutar el sonido de las olas siempre que quieras. – a pequena Jarlin pareceu ficar encantada com a prenda modesta que lhe entregava e a sua felicidade foi visível ao meus olhos quando estes lhe deslindaram um sorriso lindo e puro ainda de uma criança

- Gracias, blanquita, muchas gracias! – vi-a pousar com todo o cuidado as conchas no chão e depois assaltou o meu corpo ainda agachado, com um abraço, enlaçando-se ao meu pescoço e presenteando-me com o melhor gesto de gratidão, carinho e conforto que eu poderia receber e que tanto me fizera falta naquele dia


***


Foi com uma lividez de nostalgia a rebentar em meu peito que voltei às unidades hoteleiras onde estava instalada. O crepúsculo já tinha caído e tivemos sorte por Alexandre ter conseguido negociar com um guia turístico e termos seguido numa lancha com um grupo de ingleses e alemães que tinham passado a tarde de visita à Ilha Saona.
Depois de ter conseguido vencer a insistência do meu segurança que prostrou a sua vontade em acompanhar-me até às minhas instalações, continuei a caminhar sob o areal que ainda não havia arrefecido, e sozinha segui para o meu bungalow estrategicamente posicionado à beira-mar. Subi as escadas tabuadas que antecipavam o pequeno alpendre, mas qual não foi a minha surpresa ao ver um novo hóspede acampado à entrada…

- Pedro? O que é que estás aqui a fazer? – interceptei o meu agente mal o olhei, notoriamente surpreendida por tê-lo ali… sentado no chão junto da porta, aguardando pela minha chegada a qualquer momento

- Joana… Já chegaste… - um sorriso discreto, porém aliviado por me ter ali, abonou o seu rosto, visivelmente esgotado pelo dia de trabalho e pelos pequenos conflitos que enfrentara entretanto

- Estás aqui há muito tempo? – inquiri apenas por educação e perscrutei a sua figura num relance arremessado de alto a baixo, logo que ele se levantou

- Há algum… Uma hora, talvez. – referiu, vendo-me colocar a chave na fechadura e destrancar a porta – Não me esqueci que deixámos uma conversa pendente esta manhã…

- Não deixámos nada pendente esta manhã, Pedro… Ficou tudo dito!

- Não ficou tudo esclarecido… Ainda temos que falar sobre o que eu fiz. – ele ripostou disposto a esmiuçar uma nova conversa até ao fim e forçou a sua invasão no meu quarto, onde há segundos eu tinha entrado

- Não há mais nada para falar, o que está feito está feito e não há nada que possa alterar isso… Não há como voltar atrás!

- Pelo menos deixa-me explicar-te a razão porqu…

- Tu já me explicaste! Não querias que eu desistisse deste projecto e então mentiste-me para que não voltasse a Portugal sem antes fazer a campanha! - falei sempre com refutações de contra-ataque, reformulando o seu discurso matutino numa simples frase que resumia as suas intenções

- Vês? Vês? É por isto que eu quero falar contigo… com calma! Tu estás diferente comigo, estás chateada, noto isso no teu tom de voz… Nem nos olhos me consegues olhar.

- Eu não estou chateada contigo, eu estou magoada que é que diferente! – voltei-me para ele e o meu dedo alteou-se no ar aquando o corrigi – A tua atitude magoou-me!

- Eu sei que fui um otário em ter-te mentido, não o deveria ter feito, mas também nunca pensei que isso fosse tão sério para ti!

- Desde que alguma coisa, por mais insignificante que possa parecer, interfira negativamente no meu namoro com o Ruben, é sério para mim! – o meu corpo combalido pelos destroços que o abalavam, desamparou-se a um canto de um sofá de dois lugares, onde deixei sentadas comigo todas as minhas angústias – O facto de termos combinado regressar juntos a Portugal e de repente sair-me tudo fora dos planos, perder o avião, vir para aqui sem mais nem menos e não ter como falar com ele… Acredita que é angustiante…

- Se soubesses o quão arrependido estou neste momento…

- O teu arrependimento não apaga o erro cometido! – acusei frivolamente, não parando para reflectir um segundo numa contestação alternativa àquela, mas depressa me auto-recriminei por somente estar a agir por instinto e susceptibilizar a posição de Pedro, que já por várias vezes me tinha mostrado o seu arrependimento – Desculpa, desculpa por estar a ser tão fria contigo mas esta situação toda… Eu, eu não estou bem. 

Tal como acontecera naquela manhã, um terrível e inexplicável sentimento de perda golpeou-me o compassar, outrora virtuoso, do meu coração, que mais uma vez se encontrava brutalmente fragilizado.
Senti de novo aquela súbita vontade de chorar, e contrastando de uma maneira irrevogável com a vontade que tinha se sorrir, ela prevaleceu. As lágrimas inoportunas começaram então a picar-me os olhos e não demoraram a soltarem-se pelas linhas dantes desenhadas no traçar do meu rosto, e uma vez mais entreguei-me à dor que tinha de aprender a lidar calma e silenciosamente. 

- Não, a única pessoa que aqui tem de pedir desculpa sou eu, Joana. Estás no teu direito de me tratares como achas que mereço… Desculpa por ter inferiorizado vossa relação. – a sua voz tocou um arrependimento tal que chegou até a ressentir-se num aperto do meu peito e depois senti o calor do seu corpo ocupar o vazio do meu lado no sofá, pronto a proteger-me na sua alçada

- Eu amo-o, Pedro, eu amo-o e tenho um medo terrível de o voltar a perder! – pela primeira vez desde que entrámos naquele quarto, o meu olhar procurou o abrigo do seu e ficou completamente desarmado, ao deixar-lhe exposto todo o rasgo de lágrimas que o corrompiam

- Shiu, isso não vai acontecer! – os seus dedos cuidados ocuparam-se de limpar a água salgada que me banhava as faces, quando as suas mãos cálidas procuraram o meu rosto para acolher… os seus lábios foram ao encontro da minha testa e em dois segundos mergulharam-na no sentimento de um beijo delicado que reacendeu um novo alento que eu precisava de voltar a tocar, e depois encostei a cabeça no seu peito, permitindo a mim mesma embalar-me com o seu afago nos meus cabelos – Tem um pouco de calma e tenta não pensar mais no assunto… Vais ver que logo que chegarmos a Lisboa e falares com ele, fica tudo bem!

- E se não ficar? – a pergunta foi lançada num sussurro tenebroso mas ficou suspensa no ar, à espera de uma resposta que acabou por não ser proclamada… ele não sabia o que mais poderia dizer-me para me acalmar, e por outro lado eu não sabia o que precisava de ouvir para afastar todos os receios e fatalidades que não esperava tão cedo voltar a sentir      




Eu sei, meninas, eu sei que não tenho conseguido ser regular nas publicações, desculpem mas como devem saber os estudos vêm em primeiro lugar! 
Contudo deixo-vos aqui um novo capítulo, espero que gostem e por favor comentem,  é muito importante recolher as vossas opiniões! :)
Prometo que postarei o próximo capítulo tão rápido quanto me for possível.

Beijinhos a todas,
Joana :)