segunda-feira, 18 de julho de 2011

Capítulo 3 - O último adeus... a última decisão













Chovia torrencialmente no final da tarde do dia seguinte, a chuva intensa e copiosa caía vertiginosamente sobre as ruas imperantes de Nova Iorque. Joana mirava-a através da enorme janela do quarto, serena, observando a azáfama dos transeuntes no lado de fora, que corriam apressadamente de um lado para o outro tentando fugir à rigorosa precipitação. Envergava um vestido negro esmorecido, cortado a dois dedos acima dos joelhos, com umas botas igualmente da mesma cor e o cabelo estava apanhado numa trança perfeita, a cair-lhe sobre o ombro esquerdo.


- Joana? – imperou uma voz masculina nas suas costas. Era Will, invocando-a junto à ombreira da porta - ela virou-se para o seu semblante – Está na hora?

- Sim, está! – afirmou ele assentindo com a cabeça

Joana vestiu o longo sobretudo e colocou a mala ao ombro, saindo de casa ladeada pelo rapaz. Sarah já os esperava dentro do carro sentada no lugar de pendura, protegida do dilúvio que imperava no exterior. Antes de ocupar o lugar de condutor, Will abriu a porta de passageiros dando a entrada a Joana, protegendo-a sempre com guarda-chuva. Ela passou toda a viagem completamente absorta, olhando alheiamente os pingos de água que escorriam em velocidade pelo vidro da janela. Sentia um enorme e arrepiante aperto no coração, sentia-se sozinha, sentia-se como tivesse sido atirada para um poço obscuro e assustador, sem fundo…

- Estás bem? – questionou-a Sarah, olhando-a pelo retrovisor

- Sim. – afirmou com a voz sumida, continuando a espreitar pela janela já com os olhos a quererem deflagrar lágrimas gordas

Joana entrou de braço dado com Will juntamente com Sarah que seguia a seu lado. Ficou abismada por ver na igreja uma amálgama de presenças… a maior parte delas desconhecidas e as restantes, tinha-as visto uma vez ou outra. Também os seus colegas e professores de liceu estavam presentes, todos em grupo num canto ao lado esquerdo do altar. Por momentos foi invadida por uma nostalgia pacífica, estava orgulhosa por saber que a sua progenitora fizera diversas amizades e ganhara admiradores pelo seu cargo, embora também tinha conseguido discernir os rostos de algumas sanguessugas emproadas que trabalhavam em parceria no escritório com a sua mãe, que choravam desalmadamente e rezavam por ela, no fundo Joana sabia que estavam apenas a fazer uma triste deixa de uma peça de teatro e que mal chegassem a casa iriam festejar animadamente e pregar louvores ao céus por esta “morte abençoada”. No seu íntimo residia uma vontade desalmada de lhes dar uns valentes safanões e pô-las a andar dali para fora, porém não o fez, como é óbvio.
O sermão do padre estava a causar-lhe náuseas de tão pouco comovente e desproporcional que era… um dos momentos que mais lhe custou foi receber os pêsames das entidades mais emotivas e as que demonstravam mais compaixão. Custava-lhe dizer um “obrigada” ao mesmo tempo que lhe apertavam a mão, simplesmente porque era desconfortante e pesaroso.
No final da cerimónia fúnebre, chegou a parte mais arrepiante e dolorosa… a despedida. Todos os presentes abandonaram a igreja ficando apenas a única familiar da falecida e os dois amigos. Débora estava impávida e serena, a sua pele estava tão pálida que aparentava ser feita de cera e os seus lábios esboçavam um terno sorriso. Joana acariciou-lhe a face dura e automaticamente um calafrio lhe invadiu o corpo, aquela realidade parecia-lhe de uma maneira patusca, irreal e preferia pensar que a sua mãe estava apenas embargada a um sono profundo e simultaneamente eterno, mas é evidente que isso não passava apenas de um desejo idealizado… ela continuava ali… silenciosa, de olhos fechados e de sinais vitais petrificados. A rapariga aproximou-se e presenteou-a com um beijo prolongado na testa gélida, deixando escapar mais umas quantas lágrimas assim que cerrou as pálpebras.

- Isto é só um até já, querida mãe.


***


O temporal não revelava indícios de querer dar tréguas e a chuva raivosa continuava a cair das alturas acabando por chapinhar estrondosamente sobre os inúmeros chapéus-de-chuva e nos solos do vasto cemitério.
Após o padre proferir o último discurso, o caixão foi levado para a sua última morada. No momento em que os coveiros começaram a encher o túmulo com terra, Joana fechou os olhos e abraçou Will com todas as forças que ainda lhe restavam. Rompeu novamente num choro agoniante, sentia que aqueles abutres estavam a obrigar a sua mãe a morrer. De súbito a precipitação abrandou, acabando no fim por escassear. Os dementes mais próximos do leito deitaram flores, cada ramo perfeitamente enfeitado e os crentes e espirituosos atiraram mãos cheias de terra para dentro do túmulo em sinal de respeito.
Estar ali, a presenciar todo aquele cenário devastador, estava a destrui-la por dentro, a matá-la. Afastou-se ligeiramente antes que Sarah e Will a pudessem ver e escapuliu-se por entre a multidão. A fúria que tinha com Deus por lhe ter roubado a mãe para leva-la para os seus aposentos era de tal forma caótica que fazia Joana derramar lágrimas e mais lágrimas à medida que se afastava. Estagnou junto ao enorme e misericordioso portão de ferro já um pouco ferrugento, para tentar acalmar a corrente de emoções, o misto de mágoa e revolta… e foi nesse instante que observou um outro alguém. Tinha a impressão de que se tratava de uma presença masculina devido à estrutura corporal e à sua indumentária… estava cabisbaixo, encostado à porta do carro. Aparentava-lhe um aspecto estranhamente familiar, porém não o conseguiu discernir por completo, visto que o “desconhecido” se encontrava de costas e a uns valentes metros de distância. Quando ganhou coragem para ir ver mais de perto quem se tratava, um timbre grave de voz travou-a.

- Mas que raio te passou pela cabeça para desapareceres assim?

- Desculpem… - não conseguiu dizer mais nada, continuava hipnotizada a tentar adivinhar quem era aquele homem

- Joana, passa-se alguma coisa? – desta feita foi Sara a interroga-la pousando as suas mãos nos ombros da amiga

- Aquele homem ali… - fez um trejeito com a cabeça na direcção dele

- O que tem?

- Não sei, mas acho que não me é totalmente alheio… parece que o conheço de algum lado. – supôs nunca descolando os olhos da sua figura

- Estranho, acho que nunca o vi! – indagou Will

- Pois, provavelmente eu também não e só estou pra’qui a divagar… a criar macaquinhos na minha cabeça. – fez uma breve pausa – Quero ir para casa… - finalizou olhando-os pela primeira vez

- Então vamos, eu deixo-vos às duas em casa. – mostrou-se cavalheiro

Assim que Joana abriu a porta do carro para entrar, voltou a procurá-lo com o olhar… de fugida. Perscrutou-o a alcançar as chaves no bolso e a pressionar o botão destrancando assim o enorme e reluzente BMW, entrando posteriormente sem nunca mostrar o semblante.
Assim que Will estacionou à porta do prédio de Joana, Sara ofereceu-se para passar a noite com ela, na tentativa de a acalmar. Subiram e instalaram-se, depois de terem comido alguma coisa, abriram o sofá cama e acomodaram-se entre os cobertores.

- Ainda estás a pensar nele? – perguntou Sara, vendo a amiga estranhamente absorta

- Nele quem? – mostrou-se alheia

- Naquele homem que viste à entrada do cemitério…

- Hum… para dizer a verdade, não… desisti de tentar descobrir quem era, não lhe consegui ver a cara e não encontro mais nenhuma ligação. – fungou

- Então estavas a pensar em quem?

- No meu pai, no canalha que ele é! – disse num laivo de fúria

- Ainda lhe guardas rancor?

- Não diria bem rancor… é mais ódio e desilusão, embora os meus pais tivessem separados, eles mantinham uma relação amigável… não percebo porque é que ele não apareceu no funeral… contudo sempre tive esperanças que ele viesse… - suspirou

- Se calhar não tinha voo, ou então foi o excesso de trabalho que fizeram com que ele não pudesse vir… - tentou adverti-la

- Por favor Sara! Isso são desculpas, tretas! O meu irmão tinha o direito de ver a nossa mãe uma última vez, nem que fosse… nem que fosse, morta!

Sara juntou-se mais a ela e abraçou-a, acabando depois por interroga-la.

- Eu sei que esta pergunta não vem a propósito, mas… o que é que estás a pensar fazer da tua vida… daqui para a frente?

Joana mostrou-se pensativa por instantes.

- Vou voltar para casa… Vou voltar para Portugal. 
  


Aqui vos deixo mais um capítulo, espero que tenham gostado
e não se esqueçam de comentar, é muito importante! :)
Um beijinho,
Joana :)


P.S. Informaram-me que alguns leitores não conseguiam comentar em anónimo, de facto não estava a aceitar comentários de utilizadores que não estavam registados, sem me aperceber. Mas já resolvi o assunto, agora quem quiser, já poderá deixar o seu comentário em anónimo! :)

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Capítulo 2 - Da demência à insanidade...

Ao encontra-la naquele estado, Sara privou-se de fazer mais perguntas, abraçou a amiga e no seu carro, levou-a para casa. Durante todo o trajecto de viação até aos arredores do centro da cidade, Joana remeteu-se ao silêncio, tentando destruir todas as imagens que deflagravam na sua memória relativamente ao que se sucedeu à momentos atrás, enquanto pela janela, vislumbrava as centenas de pedestres que passeavam nas ruas tirando fotografias a tudo com que se deslumbravam, ou simplesmente trocavam palavras de jeito bastante descontraído nos bancos do passeio, em frente às grandes montras de lojas brilhantemente enfeitadas. E foi nesse espaço de tempo, que perguntava para o seu íntimo porque razão a vida não se podia limitar a ser um mar de rosas, em vez de ser um inferno na terra. Foi a travagem súbita do carro à porta do seu prédio, que lhe reteve as patuscas divagações. Sarah acompanhou-a e subiram ambas até ao apartamento. Logo no instante seguinte ao romperam pela porta, foi perceptível de imediato um breve latido do cão de Joana, um Shar-Pei que comprou logo após a sua mudança para Nova Iorque, que veio numa correria até junto da dona deixando esvoaçar as pequenas orelhas durante a marcha.


- Meu pequeno Iokane! – agachou-se afagando-lhe a avolumada massa corporal, visto que o pêlo era bastante reduzido – Deves ter fome… comida? – voltou a erguer-se dirigindo-se à cozinha enquanto que Sara foi na direcção da sala de estar



O cachorro seguiu imediatamente atrás dela, já esperando pelo jantar junto à sua tigela, posicionada mesmo por detrás da enorme janela da varanda. Ao ouvir o som estridente dos cereais embaterem no fundo da tigela de metal, Iokane abanava a pequena cauda incessantemente e farejava o seu prato predilecto, acabando por devora-lo em escassos minutos, visto que comer foi desde sempre o seu passatempo preferido. Joana foi também para a sala depois de ter ido ao quarto vestir uma roupa mais confortável. Atirou-se para cima do sofá, ao lado de Sara, que via um filme enquanto esperava pela amiga. Assim que a viu de novo absorta a fixar um ponto no tecto tingido por um branco imaculado enquanto tentava conter o choro, pegou no comando acabando assim por desligar o televisor.



- Eu sei que gostas de ver aquele filme, não precisavas de ter desligado! – disse continuando de olhos fixos no tecto

- Joana, o que é que se passou no hospital? Foi a tua mãe, não foi? Voltou a acontecer… - indagou meigamente

Sara era uma pessoa que se poderia considerar amiga para toda a vida. Joana até à data não conhecera rapariga mais responsável e respeitosa que ela. Podia ser uma amiga não desde sempre, mas sem dúvida que para sempre. Joana abraçou-a de imediato enquanto deixava brotar lágrimas dos seus olhos cansados.

- Já não sei o que hei-de fazer Sarah, não sei! – lamuriou afastando-se – Estou cansada de ver a história a repetir-se sucessivamente… dia após dia! É frustrante ir visita-la, e no fim ela já nem se lembrar quem eu sou e o que represento! – proferia arrastando os pés, fazendo círculos invisíveis no centro da sala

- Vem cá, amor, senta-te aqui! – Joana aproximou-se sentando-se ao seu lado direito – Sei que isto para ti é desgastante, mas tens que te consciencializar que a doença da tua mãe não evoluirá para melhor… o tempo é o seu pior inimigo e como consequente, só irá fazê-la sofrer ainda mais! – afagou-lhe o cabelo

- E é isso que me custa, tê-la tão perto de mim e ao mesmo tempo tão longe… vê-la a caminhar para o precipício e não a poder salvar!

- E quem pode? Ninguém a pode salvar! Por mais que a ajudem nos tratamentos, ela não acabará por ficar curada… apenas estão a tentar prolongar a sua permanência cá, entre nós… mas já mais a poderão salvar!

Ao assimilar na sua cabeça as palavras que custavam ouvir, mas certíssimas de Sarah, Joana apertou a cana do nariz com o polegar e o indicador tentando conter as lágrimas que se avizinhavam expandir pelo rosto. Levantou-se e encaminhou-se para o pequeno bar instalado num dos extremos da sala, retirando uma bebida alcoólica, dando depois dois goles no gargalo da garrafa.

- Nem penses numa coisa dessas! Dá-me já isso! – arrancou-lhe a garrafa das mãos – Bolas, Joana! Quantas vezes eu já te disse que a bebida não resolverá os teus problemas? – recriminou-a

- Não resolvem mas ajudam a esquecer! – contrapôs

- Durante quanto tempo? De que é que te vale beber para esquecer e dormir sobre o assunto se no outro dia quando acordares vês que os problemas não desapareceram? Eles estão lá, eles irão sempre estar lá no dia seguinte!

- Eu sei, desculpa… - pediu num sussurro, pregando o olhar ao chão   

- Não peças desculpa a mim, pede desculpa a ti… és só tu que trilhas o caminho da tua vida, mais ninguém o irá fazer se não tu! 

Sentaram-se de novo no sofá. Joana deitou-se na posição fetal pousado a cabeça sobre as pernas da amiga, deixando que esta lhe desenvencilhasse alguns dos cachinhos mais rebeldes dos seus longos cabelos, enquanto se pronunciava.

- Só acho que chegou a altura de mostrares aquilo que és… de libertares de uma vez por todas os teus receios, parares de ser uma menina mimada que pensa que tudo gira à sua volta. Tu não és a Super Mulher, Joana… não tens poderes sobrenaturais. És um ser humano tal como muitos e de uma vez por todas tens que parar de pensar que o mal só te acontece a ti! Não é por seres filha de quem és que estás imune a todos os dissabores da vida, porque ambas sabemos que não é verdade. – suspirou – E se pensas que a morte é um bicho de sete cabeças e má, estás redondamente enganada e a ser muito preconceituosa!  Achas justo a tua mãe estar a sofrer desta maneira? - Joana desatou num chorou deprimente, Sara embalou-a nos seus braços – Caramba, eu adoro-te, miúda… és a minha melhor amiga! Já nem falo no teu pai, mas tenho a certeza que a família que tens em Portugal também te ama tal como a tua mãe.

O silêncio imperou, apenas o soluçar de Joana quebrava o gelo.

- Em que estás a pensar? – inquiriu Sara

Ela levou algum tempo em se prenunciar, tentando estagnar o choro.

- Hum, não sei bem… na verdade não estou conseguir construir pensamentos coerentes e lúcidos neste momento… - indagou calmamente - Sinto que a minha mente se transformou num deserto – a sua voz saiu-lhe cause imperceptível

- Ainda te lembras dos nossos tempos de Liceu? Do baile finalistas?

- O baile em que o Brayn te pediu em namoro ao microfone e tu lhe atiraste com um copo de sangria à cara?

- Sim, esse mesmo! – gargalhou – Mas isso foi porque eu já estava bastante alcoolizada, no meu estado sóbrio nunca faria tal coisa. – pausou brevemente - Mas olha que o Will também era para finalmente te pedir em namoro, mas coitado à última cortou-se… faltou-lhe a coragem!

Joana mostrou-se abismada.

- Ele ia fazer mesmo isso? – pausou enquanto Sarah consentia com a cabeça – Eu era apaixonada por ele, mas sabia desde o início que não valia a pena investir numa relação, que não iria levar-nos a lado algum.  

- E agora sois bons amigos… Gosto de vos ver assim! Mas às vezes gostava de poder voltar atrás e recuperar tudo que perdi… desfrutar tudo o que ainda havia para viver!

- Tenho saudades dos nossos velhos tempos… - arqueou os lábios num sorriso

- Também eu Joana, também eu… - concluiu com um suspiro




                                                                              ***

Joana “acordou” tarde, por volta da hora de almoço. A noite tinha sido passada praticamente em claro, voltas e reviravoltas na cama, sem deixar que o sono a embalasse. Assim que pôs os pés fora do quarto, ouviu o som ensurdecedor do telefone de casa, que tocava incessantemente.

- Estou sim? … Ah bom dia doutor, diga! … Precisa de falar comigo? Porquê tanta urgência? … É a minha mãe, não é? O que é que aconteceu desta vez, diga-me! – vociferou quase a exaltar-se -  Está bem, eu vou já para aí. Até já!

Estranhou o conteúdo daquele telefonema, não fazia a menor ideia do que a sua mãe tinha aperaltado desta vez, e muito sinceramente estava com receio de vir a descobrir. Depois de dar um valente pequeno-almoço a Yokane enchendo a sua tigela de cereais como ele tanto gostava, meteu-se debaixo do chuveiro tomando um duche bem fresco e rápido. Enrolou a toalha ao corpo enquanto secava o cabelo. Vestiu uma roupa confortável e informal e assim que saiu de casa, foi ao Grumpy de onde levou um café duplo para beber durante o caminho, apanhando posteriormente o autocarro, dirigindo-se mais uma vez até ao hospital. Caminhar naquele corredor, pela primeira vez foi-lhe totalmente desconfortante, tinha um nó cego formado no estômago e receava mais que tudo esta visita forçada, que aparentemente o motivo ainda lhe era desconhecido. Viu o médico Stephen Dorff aproximar-se, sem lhe dar tempo para se pronunciar, limitou-se a agarra-la no braço sem nunca a magoar encaminhando-a para o seu gabinete.

- Preciso de ter uma conversa muito séria consigo! – informou-a ele, sentando-se na cadeira

- Diga de uma vez… o que é que aconteceu com a minha mãe?

- Não é sobre o que aconteceu que lhe quero falar… digamos que, hum… é mais sobre o que lhe irá acontecer…

- Desculpe mas eu não estou a perceber onde o doutor está a querer chegar – levantou-se – mas agradecia sinceramente que se deixasse de rodeios e fosse directo ao assunto!

- Volte a sentar-se faz favor! – apontou com a mão para a cadeira – Leia este documento e saberá do que lhe quero falar. – entregou-lhe um envelope com uma catrefada de papeis

Joana entrou em pânico quando a palavra “Eutanásia” lhe ressaltou à vista, escrito em letras gordas, logo na primeira folha.

- Isto… isto não é o que eu estou a pensar, pois não? – inquiriu-o com a voz trémula

- Lamento, Joana.

- Diga-me por favor que ela não quer uma coisa destas!

- É a vontade da sua mãe…

- É impossível ela ter pedido isto… com certeza que não estava lúcida!

- Estava perfeitamente lúcida quando tomou esta decisão… nós fizemos exames que confirmassem isso mesmo!

- O senhor não pode permitir que uma coisa destas aconteça! – afirmou com o rosto desfigurado, com os olhos a brotarem lágrimas desalmadamente

- Não posso ir contra a vontade do paciente, é o desejo da sua mãe! Ela tem o direito de decidir que rumo quer dar à sua vida, tem o direito de escolher a sua morte!

Aquela notícia causou o efeito de uma brusca e impetuosa colisão em Joana… arrancando-lhe todas as forças, todas as esperanças que tinha construído, uma por uma.

- O senhor é médico! – afirmou com os olhos rasos em lágrimas – Não pode aceitar um desmazelamento destes, vai tudo contra aquilo que a sua profissão exige! – pausou tentando acalmar-se – O senhor fez um juramento antes de desempenhar esse cargo! Jurou cuidar das pessoas, jurou salva-las da morte! E tudo para quê? Para agora deixa-la partir assim… sem tentar seja o que for para ajuda-la? Isso é desumano! – vociferou levantando-se da cadeira, completamente atordoada

- Desumano é deixar que a sua mãe continue a sofrer!

Joana comprimiu os lábios para não cair no erro de dizer alguma barbaridade.

- fez embater a papelada com toda a força que tinha, em cima da secretária – Eu recuso-me a fazer parte de uma mentira! Recuso-me a assinar seja o que for! – saiu logo de seguida embatendo a porta com violência

Numa correria desorientada, dirigiu-se até ao quarto da mãe, ruborizada de indignação. Encontrou-a mais uma vez sentada na cama a folhear outra revista.
Aproximou-se a passo rápido.

- Diga-me que não é verdade mãe, que não quer fazer… - procurou uma melhor palavra que se adequasse aquela loucura. – isto!

- Joana, filha… sabes que não tenho outras alternativas… - pousou a revista, olhando-a pegando-lhe nas mãos

- Claro que tem outras alternativas, claro que tem! – tentou convencer-se a si própria, sentando-se ao lado de Débora

- Ambas sabemos que não…

Joana enxugou as lágrimas com as palmas das mãos.

- Isto vai contra os seus princípios, vai contra tudo aquilo em que sempre acreditou!

- De que me valem agora esses princípios se nem posso ter uma vida normal?

Joana ressentiu-se.

- E vai deixar-me assim? Sozinha? – inquiriu, deixando que o choro tomasse de novo conta de si

- Tu não estas sozinha meu amor, nem nunca estives-te! Tens pessoas maravilhosas que te amam e que te querem ver feliz!

Ela inclinou-se, encostando a face direita ao peito da mãe enquanto a abraçava.

- Porque é que me está a fazer isto mãe, porquê? – perguntou-lhe num murmúrio, deixando as suas lágrimas molharem a camisola do pijama de hospital, que Débora indumentava

- É o melhor para todos meu amor, mas principalmente é o melhor para mim… - afagou-lhe o cabelo        

- Eu não consigo assinar os papéis que ditam a sua sentença! Sinto-me como se estivesse a traí-la… a empurra-la para a morte! – disse baixinho

- Olha para mim, Joana! Olha para mim! – ela olhou, com os olhos rasados de um vermelhão que doía, e foi aí que reparou que também a sua mãe chorava, mas de jeito tão solene que conseguia passar perfeitamente despercebida – Quero que saibas, que esteja onde eu estiver irei sempre estar a olhar por ti! – exibiu um sorriso carinhoso, o que fez Joana descontrair

Ficou ainda alguns instantes embalada ao colo da mãe, a tentar memorizar o seu cheiro inconfundível, tentar memorizar o seu toque quase angelical, tentar matar as saudades que certamente iria sentir.

- Eu assino! – acabou por dizer

A sua mão esquerda com que rubricava, estava tão trémula que mal conseguia pegar firme na caneta, as lágrimas expandiam-se pelo rosto já humedecido e a sua caligrafia ficou de tal maneira irreconhecível, que se no local não estivessem testemunhas presentes, poderia dizer-se que o documento tinha sido falsificado.
Despediu-se dela e saiu do quarto. Dirigiu-se numa marcha lenta até à enorme sala de espera. Deixou-se deslizar pela parede, até ir de encontro à mármore cor da cal… chorou horas a fio, esperando pela má notícia. Era quase madrugada, quando o médico chegou junto dela. Pôs-se de cóqueras, fixou-a com o olhar até ganhar coragem para se prenunciar.

- Acabou de falecer.

Foi nesse momento que Joana rompeu num choro desgastante. Agora tinha certezas que tudo havia terminado.

- Posso vê-la? – perguntou por entre o soluçar provocado pelo choro

- Está mesmo disposta a fazê-lo?

- Sim.

Caminharam por entre os corredores, como se tratasse de uma marcha fúnebre. Joana conseguia sentir o cheiro a morte, facultado não pela realidade em si, mas pela fraqueza e o desgaste que já abundavam no seu corpo, o que a permitia ter aquele tipo de “alucinação”. Débora estava já na morgue. Joana aproximou-se de mansinho, com o estúpido pensamento de não a querer perturbar. Olhou-a. Ela estava traquila, agora não havia mais dor, não havia mais sofrimento. Levou a sua mão aos cabelos da mãe, fazendo-os deslizar pelos dedos.

- Eu amo-a mãe, amo-a muito! – despediu-se limpando rapidamente as lágrimas

Pouco tempo depois acabou por se retirar da morgue, ladeada pelo médico.

- Precisa que chame alguém para a vir buscar? – perguntou-lhe ele, gentilmente

- Obrigada doutor, mas creio que não será preciso… - disse-lhe já a caminhar no corredor

- Lamento que tudo tenha acontecido desta maneira… mas penso que foi o mais sensato a fazer. – pausou brevemente – A sua mãe era uma senhora, uma mulher de bom carácter e excelência! – afirmou ele

- Sim, eu sei. – consentiu orgulhosa, correndo depois para fora daquele hospital

O ar do exterior embarcava o frio gélido, Joana envolveu o cachecol no pescoço, abraçando o seu próprio corpo para tentar ganhar uma temperatura corporal mais confortável. Caminhou sobre o asfalto iluminado no recinto da noite. As imagens à sua volta, davam-lhe a sensação de correrem a finitos km/h, provocando uma tremenda sensação de mau estar e por isso mesmo, ficou-se por colar os olhos ao passeio humedecido pela chuva primaveril que se havia precipitado no inicio da noite. A cada passo que impunha, as lágrimas ameaçavam expandir-se novamente, provocando-lhe uma impressão incomodativa nos olhos. Sentia-se à deriva rumando sem destino aparente, sentia-se demente e inerte, a sua alma estava ferida e o seu coração estava cheio de nada... 



Muito obrigada por todo o apoio, espero que 
continuem a gostar e a acompanhar! :)
Beijinhos,
Joana :)

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Capítulo 1 - Quando o mundo nos foge das mãos...



Depois de eleger o mais perfumado e celestial ramo de flores de toda a florestaria, Joana dirigiu-se numa correria até aos arredores da Central Park. Apanhou o autocarro que parava ali monotonamente todos os dias e à mesma hora. Sentou-se bem longe dos dois ou três casais de turistas que tagarelavam retoricamente enquanto deslumbravam a beleza da cidade, pelas janelas de vidro perfeitamente limpas. Finalmente tinha chegado ao seu local de destino… o mesmo agora de todos os dias, saiu daquele autocarro que nem uma bala dispara do cano de uma pistola e deu início a uma marcha aceleradamente efusiva. Olhou de realce para o relógio de pulso e calculou mentalmente a última meia hora de visitas que tinha, para ver a sua mãe. Atravessou a indeterminável estrada (sem dar muita relevância aos semáforos) numa correria tal, que foi induzida às incontáveis buzinadelas e às dezenas de protestos críticos simultâneos, por parte dos condutores a quem descabidamente, tinha interceptado o percurso.
Encruzilhou-se o melhor que pôde por entre a vasta multidão que caminhava no largo passeio cimentado, até finalmente pressionar o puxador da enorme porta envidraçada do hospital. Imediatamente foi envolvida por um ar bastante abafado e sufocante, do calor aglomerado dos vários corpos identificados pelos rostos monocórdios que enchiam cada recanto, que se locomoviam no edifício de um modo frenético, juntamente com o sempre instalado burburinho de fundo juntando as conversas e as lamúrias dos utentes e acompanhantes… foi-lhe também perceptível de imediato pelas suas narinas, o cheiro tão agoniante e característico de um centro hospitalar… na verdade já não fazia parte de um factor incomodativo para ela, visto que já estava bem familiarizada a este ambiente.
Depois de ter bebido um café de enfiada na cafetaria do hospital, mostrou o seu cartão de visitas a uma auxiliar de enfermagem que já a conhecia ia fazer um ano, devido às suas visitas diárias… pressionou o botão e chamou o elevador.
Quando as portas se abriram, desejou intimamente ter ido pelas escadas, visto que o cubículo oscilante estava a abarrotar de gente por todas as extremidades. No fim de ter carregado no botão para o piso onde queria sair, tentou encaixar-me num recanto ínfimo junto às bordas. 
Por grande azar o seu, parecia que o tempo não queria passar e o elevador cismava em continuar com a sua subida em câmara lenta.
Talvez por graça divina, não sabe, as portas voltaram a abrir-se e Joana saiu do elevador que nem um recluso foge de uma prisão.
Enveredou pelos inúmeros e copiosos corredores, pintados por uma cor enjoativa e estagnou junto à porta do quarto 405. Recompôs-se e incinerou o seu melhor sorriso para ver a mulher da sua vida.
Deu a volta à maçaneta e abriu a porta, vislumbrou-a de imediato no recanto do quarto… lá estava ela, sentada no centro da cama com os óculos de ver ao perto encaixados na ponta do nariz, enquanto folheava com a polpa húmida do dedo, uma revista de humor ou algo do género. Ainda sem desviar o olhar do seu semblante, deu por si a reflectir… Onde estava o seu aspecto tão jovial? O seu carisma e vontade de vencer na vida? Onde estava agora a sua tão eloquente vivacidade e o brilhozinho nos seus olhos cor de mel sempre que recebia a visita da filha? É esta maldita doença a causadora deste cenário! É o Alzheimer que lhe anda a roubar a mãe! Após um longo ano, os seus cabelos dourados deram vez a uma quantidade indeterminável de cabelos brancos, grisalhos… a sua bonita expressividade facial ficou… inexpressiva, agora eram as rugas vincadas, implantadas no seu rosto que lhe davam um ar deveras, esmorecido. Tinha saudades da mulher revolucionária a quem os limites não significavam absolutamente nada, mulher que lutou pelos seus ideais até não ter mais uma réstia de forças… uma mulher detentora de um corpo esbelto e elegância embasbacante, feito de inveja a qualquer uma! Essa sim era a sua mãe!

- Joana, filha… estás bem? – inquiriu retirando os óculos, pousando os mesmos juntamente com a revista no tabuleiro branco ao lado da cama

Joana exibiu um sorriso, ficou feliz por ela a ter reconhecido. Aproximou-se e deu-lhe um beijo na testa.

- Olá mãe! Tome, são para si! – mostrou-lhe o ramo de flores

- Obrigada meu amor, são lindas! – aceito-as nos braços

Embora já tivesse o quarto repleto de flores que Joana lhe oferecia semanalmente, cada uma delas devidamente mergulhadas em jarros de água, Débora recebia cada ramo como se fosse o primeiro. Costumava dizer-lhe que as flores indumentavam vários significados, para além da vida e da morte claro, para ela nada a fazia mais feliz que meia dúzia de flores campestres.
Joana sentou-se numa cadeira.

- Como correu o seu dia? – perguntou-lhe. Tinha a perfeita noção que era bem escusado ter feito aquela pergunta, mas era sempre desta maneira que iniciavam o diálogo

Suspirou. Com a voz mais rouca que o costume, iniciou o discurso de lamúrias.

- Oh… foi igual a todos os outros dias do ano… fui submetida a uma data de exames, perguntas descabidas e ridículas, como: “Sabe em que anos estamos?”, “Ainda se lembra do nome da rua onde mora?” ou então “Pode dizer-me como se chama o seu filho mais novo?” “Vou-lhe dizer três simples palavras, e depois vai ter que as repetir: autocarro, cidade e colher”. – bufou - Sinceramente nem sei porque é que ainda se dão ao trabalho de me fazer este interrogatório todo! Sabem perfeitamente que estou doente, não adianta de nada estes exames, os médicos acham-se muito sabichões e detentores de toda a verdade, mas ainda não encontraram a cura para o Alzheimer… mais dia ou menos dia vou morrer e eles melhor que ninguém, sabem disso!

Joana estremeceu por dentro ao rever essa certa possibilidade… a partida da sua mãe! Por mais que recusasse aceitar essa triste realidade, tinha consciência que era algo inevitável, apesar dos seus bem constituídos 43 anos, a doença foi diagnosticada tarde e como consequente, agora, já vai bastante avançada e o tratamento só trás mais dias de sofrimento.
Débora voltou a suspirar. Prosseguiu.

- E cá estou eu, aprisionada a uma cama de hospital sem saber se o dia de amanhã me espera… - lamentou-se – e com estas lamúrias e futilidades todas nem te perguntei… como andas? Que tens feito? – olhou-a nos olhos pela primeira vez desde que Joana entrara no quarto

A jovem encolheu os ombros.

- Estou bem… não tenho feito nada de por aí além, não variei na minha pacata rotina se é isso que quer saber… Tenho tomado conta do Iokane, cuidado da casa e estudado para os exames.

- E divertido? – pausou – Tens saído com os teus amigos?

- Sim, tenho saído por aí com o Will e com a Sarah. – mentiu

- Joana, Joana… - advertiu-a – caso te tenhas esquecido eu ainda continuo a ser a tua mãe, conheço-te melhor que a palma da minha mão, és demasiado transparente para te deixares induzir por mentiras…

Mudou de assunto.

- E a mãe, como se sente?

- Sinto-me bem, na verdade estou melhor que nunca! – indagou enquanto recompunha a almofada junto das suas costas

- Ora… fala de mim, mas mentir com certeza que também não é o seu forte! – ironizou – Sabe que não tem precisão de me esconder seja o que for…

Débora ressentiu-se, não argumentou em sua defesa ao invés, remeteu-se ao silêncio.

Foi nesse curtíssimo intervalo de tempo que pela primeira vez, Joana vislumbrou um saquinho de morfina pendurado ao lado da cama deixando cair gotas por acção da gravidade, injectando directamente o líquido com duas agulhas soterradas no antebraço esquerdo da sua mãe. Aparentemente apareceu-lhe ser esse o “elixir” que lhe dava os momentos intermitentes de lucidez, e felizmente, este é um desses momentos… apesar de nunca saber quando a doença se sobrepõe, e a memória ou a falta dela, a volta a asfixiar levando-a de novo ao estado deprimentemente insano.

Levantou-se e dirigiu-se até à janela que permitia que a inebriante radiação solar iluminasse as quatro paredes do quarto, pousou os cotovelos no parapeito e ficou a contemplar a cidade numa outra perspectiva.

- O padrinho ligou-me ontem à noite… - retomou em conversa enquanto fixava a vida que preenchia o mundo do lado de fora

- Ai sim? E então? – o seu tom de voz surgiu entusiástico

Rodou a cabeça a 180º e olhou-a.

- Incentivou-me a ir passar uns tempos nas férias de Verão, lá a Portugal.     

- E tu? Aceitas-te? – perguntou-lhe num laivo notório de curiosidade

- Sim e não… - disse com uma expressividade incerta – na verdade nem lhe dei uma resposta concreta… claro que tenho saudades da família, mas sair de Nova Iorque e ir para Portugal, não faz grande sentido neste momento.

- Porque não? – insistiu

Queria dizer-lhe que não podia ir para fora porque não a queria deixar, muito menos agora nesta fase tão complicada em que precisa mais de si… não seria considerada uma verdadeira filha se deixa-se a sua mãe sozinha num quarto de hospital, onde a sua esperança de vida era totalmente incerta.
Não iria desperdiçar todos os momentos que podia desfrutar com ela, não era esse tipo filha, nem iria de modo algum sê-lo. Queria dizer-lhe, mas também era pelo facto de conhecer demasiadamente bem os pensamentos da sua mãe, que embora não se expressa-se, sabia que ela iria ficar ressentida consigo mesma por se achar a responsável que levasse Joana a abdicar daquilo quer e que mais gosta de fazer, ir-se-ia sentir responsável pela infelicidade da filha… e por isso mesmo a jovem optou por adverti-la.

- Apenas não estou com disposição para viajar, só isso. – ela voltou a espreitar pela janela

- E o teu pai… tens falado com ele?

Numa fracção de milésimas de segundo, a sua expressão facial modificou-se e o tom da sua voz tornou-se mais taciturno.

- Não. – limitou-se a dar-lhe uma resposta curta e directa

- Filha, sabes que não podes andar o resto da vida a culpar o teu pai pela nossa separação! Sabes que para além de não estares a ser correcta, também estás a ser injusta para com ele. – molestou

Joana tinha umas quantas para lhe dizer entaladas na garganta, desde o momento em que o seu pai resolveu mudar de ares e ir viver com o irmão para outra cidade, mas não se queria alargar muito mais na conversa, que por razões obvias, não as levaria a lado nenhum.

- Como queira. – finalizou

- Querida? – clamou-a – Vem cá, senta-te aqui! – gesticulou com a mão, dando leves palmadinhas no colchão indicando-lhe a zona onde queria que ela se sentasse e Joana fez o que lhe pediu. 

Fitou-a. Débora abriu a primeira gaveta da mesa-de-cabeceira e retirou do pequeno compartimento uma caixinha bastante avolumada, enfeitada delicadamente por um pomposo laço vermelho. Segurou-a na mão trémula, estendendo o braço para que a filha a tomasse.

- Feliz aniversário meu amor!

Ao ouvir as palavras felicitarias proferidas pela boca da mãe, os seus lábios rapidamente aperaltarem um largo sorriso.

- Eu sei que podes pensar que agora não passo de uma velha caquéctica que por vezes nem do seu próprio nome se lembra, mas já mais me esqueceria de um dia tão importante como é o de hoje! – exibiu um sorriso igual ao de uma criança de 5 anos

- Obrigada mãe! – aceitou-lhe a caixa abraçando-a com todas as forças que existiam em si, como há muito tempo não o fazia e de maneira nenhuma queria que aquele momento terminasse

Quebraram o abraço. Olhou de realce para a caixinha de chocolates que lhe acabara de oferecer, eram os seus preferidos.

- Desculpa, sei que não é nada de especial para um presente de aniversário, mas realmente não tive grandes hipóteses para te comprar algo mais… elaborado, visto que estou prisioneira neste hospital.

- Não poderia ter melhor presente de aniversário, do que aquele de estar aqui consigo! – a mãe aproximou-se e beijou-lhe a testa

- Filha, sei que estou a ser chata, mas podes dar-me um copo de água? A garrafa está aí nessa prateleira do fundo – apontou com o indicador

Ela levantou-se de imediato e começou a encher o copo branco de plástico, com água natural. Voltou-se para a mãe e estendeu-lhe com o braço o que lhe havia pedido. Estranhou tanta hesitação da sua parte, visto que não lhe aceitou o copo, em vez disso Débora limitou-se a observa-la, olhava-a sem pestanejar uma única vez. Joana ficou com bastante receio do que pudesse vir a acontecer… a sua mãe não desgrudava os olhos de seus, mirou-lhe o rosto e desvendou-lhe um olhar enigmático, uma expressão amedrontada e a cada segundo que passava, sentia-se a vacilar.

- Mãe… a água… - relembrou-a ainda de braço estendido

Voltou a perscruta-la. O seu semblante estava apavorado, tinha os olhos arregalados e incididos nos seus, as suas mãos e as suas pernas tremelicavam freneticamente.
- O que é que se passa, mãe? Fale comigo! – caminhou na sua direcção

- Não, não… não se aproxime de mim! Mantenha-se afastada! – disse protegendo o seu próprio corpo num canto da cama

Joana voltou a abeirar-se.

- Não se aproxime, já disse! – vociferou atirando o copo de água para o chão – Quem é você? O que quer de mim?! – estava cada vez mais assustada

- Sou eu mãe… a Joana! – tentou de jeito desesperado elucida-la

- Pare de me chamar isso! Eu não a conheço! Ponha-se fora do meu quarto, já!

- Por favor, não me volte a fazer isto! Outra vez não! – implorou-lhe já com as lágrimas a formarem-se no cantinho dos olhos, enquanto tentava agarrar os braços da mãe

- Não, largue-me! – tentava soltar-se, esbracejando – Socorro! Socorro! – bradava numa  tentativa louca de procurar ajuda

- Acalme-se mãe, não lhe quero fazer mal! Isto já passa, já passa! – repetia-se tentado conformar-se

Num ápice, Débora arranca as duas agulhas que expandem o medicamento nas suas veias, abruptamente, sem se importar de se ferir. Ainda tentou erguer-se da cama para conseguir escapar e consequentemente fugir da sua própria filha, mas antes que isso acontecesse, Joana apressou-se a carregar no botão encaixado ao lado da cama, chamando assim enfermeiras e com muita sorte, algum médico. Sem dar tempo de pestanejar, dois enfermeiros e um médico de cirurgia romperam pela porta do quarto, dirigindo-se até elas praticamente à velocidade da luz. Mandaram Joana afastar-se enquanto os enfermeiros amarravam Débora à cama, injectando-lhe um calmante… ela mexia-se e remexia-se tentando soltar-se mas de nada lhe valia, outro ataque alusivo à sua doença a tinha arrastado e espezinhado novamente, sem qualquer pudor ou misericórdia. 

- Não pode ficar aqui, vai ter que se retirar! – disse o médico à rapariga, dirigindo-se a ela a passadas largas

- Não me peça uma coisa dessas, eu não vou abandonar a minha mãe, não vou! – vociferou, deixando escapulir as lágrimas, denuncia de afronta e agonia

Quando apanhou o médico a fitar outro ponto, aproveitou e esquivou-se indo ao encontro da mãe, numa tentativa desesperante de lhe devolver a memória e amarra-la aos seus braços. Antes que o pudesse fazer, Stephen – era o nome do médico – encurralou-a pela cintura, prendendo-a contra o peito com os seus dois braços fortes, impedindo-a de dar mais um passo.

- Faça o que lhe peço por favor! – aconselhou-a ele

- MÃE! MÃE! – gritava ela, num choro compulsivo deixando as lágrimas escorrerem lhe pela face em catadupa

Stephen apressou-se a retira-la daquele quarto arrastando-a consigo até ao corredor.

- Eu tenho que estar com a minha mãe, não a posso deixar sozinha! – gritava-lhe soltando-se dele

- A sua mãe não vai ficar sozinha! Nós estamos cá para tudo o que ela precisar! – tentou tranquiliza-la

- Você é médico, não percebe nada do que falo! Não vou permitir que lhe façam mal! Ela precisa de mim! – tentava novamente interpolar o quarto

- Oiça, aqui ninguém irá fazer mal à sua mãe, apenas a estamos a tentar ajudar.

- Eu não preciso que vocês se limitem a tentar, eu preciso que consigam! – deixou-se induzir novamente por um choro intransigente

- Vá para casa, aparenta um ar cansado… durma e volte amanhã, de certeza que irá encontrar a sua mãe com um melhor aspecto. – pausou procurando os olhos dela – Eu garanto-lhe! 

Joana ainda sentiu uma necessidade enorme de ripostar, mas tal como das outras vezes que davam estes ataques à sua mãe, já não poderia estar com ela no resto do mesmo dia, e hoje não iria ser de maneira diferente. Sentiu-se vacilar, até se ressentir. Enxugou a face aos punhos do casaco de malha que indumentava, tentando controlar o avassalamento de lágrimas que se avizinhava e começou a afastar-se sem mais nada dizer ao médico. Arrastou-se pelos corredores de olhos esbugalhados, sentia-se que nem uma inútil e naquele momento, a vontade de desaparecer do mapa era bastante superior à de querer permanecer naquele leito de injúrias e sofrimento. Ao fundo da ala conseguiu discernir a silhueta inconfundível da melhor amiga. Apressou-se a correr na sua direcção.

- Sara! Sara! – atirou-se nos braços dela entregando-se a um choro compulsivo

- Joana, o que tens? Que se passou? – afagou-lhe os cabelos

- Leva-me daqui, preciso de sair daqui…



Espero que tenham gostado!
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Beijinhos,
Joana