- Ruben, amor… Estás acordado? – o
sussurro lucífugo de Inês, foi dissipado na área interior do quarto de solteiro
do seu futuro marido
Claro que Ruben estava acordado. A
questão deveria antes ter sido: “Porque é que ainda não estás a dormir?”.
O relógio da mesinha de cabeceira batera
as duas horas e meia da madrugada há cerca de dez minutos atrás, e desde que se
deitara na sua cama ao lado da noiva, Ruben não tinha conseguido pregar olho
para descansar, uma única vez. As imagens, ideias e preocupações que lhe
afloravam o pensamento conturbado, eram demasiadas, o coração continuava
acelerado desde o seu último encontro com Joana, e voltado de costas para Inês
– de modo a que a ela lhe passasse despercebida a agitação que o dominava –,
entre o escuro do quarto ele deixou o seu olhar hipnotizar-se pelo vazio,
roubando-lhe todas as possibilidades de descanso as quais ele tanto ansiava e
precisava ter.
- Ruben… - a voz dela voltou a soar,
desta feita mais suave e junto do seu ouvido, acompanhada pela mão delicada que
debaixo dos lençóis vou até à sua virilha – Amor, acorda… - a intenção de Ruben
era ignorá-la e continuar a fingir que estava a dormir, mas depois daquele
gesto mais ousado da parte dela, ele teve de agir
- Inês, o que é que estás a fazer? – ele
perguntou no instante em que sentiu a proximidade e afastando-se da mão dela no
mesmo segundo, impedindo-a que o tocasse
- Está-me a apetecer… Tu sabes… - Inês
bateu o seu peito contra as costas dele, continuando a falar-lhe sedutoramente
ao ouvido
- É tarde… Volta a dormir. – por se
aperceber sem esforço ao que ela se referia, Ruben cortou-lhe imediatamente o
pensamento
- Porquê, tu não queres? – apesar de
saber que ele não iria conseguir ver, os seus lábios libertaram um pequeno
sorriso sugestivo – Eu prometo que não faço muito barulho…
- Inês, estamos em casa da minha mãe, os
nossos amigos estão a dormir no outro lado do corredor, e além disso, eu estou
cansado… O que quero agora é dormir. – proferiu calmamente evitando exaltar-se,
enumerando um conjunto de factores que rezou serem convincentes o suficiente
para fazê-la recuar
- Estás cansado? – o seu riso forçado
foi patente à ironia – Se não queres estar comigo, basta dizeres que não queres…
Não precisas de arranjar desculpas!
- Não são desculpas, é a verdade!
- Claro… - proferiu com escárnio,
afastando-se dele e voltando para o seu lado da cama – Hoje é porque estamos em
casa da tua mãe e estão cá os nossos amigos, das vezes anteriores era o teu
joelho que doía e não podias fazer esforços… Que desculpa vais arranjar da
próxima vez?
- Não sejas assim… Estás a dramatizar. –
Ruben limitava-se a dar-lhe respostas curtas e rápidas, que mantivessem o seu
temperamento longe de uma mudança erosiva
- Estou a dramatizar? Achas mesmo que
estou a dramatizar?! – mantendo o corpo imóvel e cingindo ao seu lado da cama,
as orbitas dos seus olhos reviraram automaticamente, adivinhando-lhe pelo tom
de voz que ela elevou, uma discussão a aproximar-se – Por acaso tens ideia de
há quanto tempo não fazemos amor? – Inês perguntou meio retoricamente – Há
meses, Ruben! Meses! Meses que não me tocas nem me deixas tocar-te…
- Queres mesmo começar a discutir isso?
– um suspiro pesado foi soprado para fora dos lábios
- Não, é claro que eu não quero
discutir, mas tu não me dás outra escolha.
- O quê? – descrente com aquela
acusação, ele rodou ligeiramente a cabeça para trás, procurando encará-la, ainda que por entre a
escuridão que amainava o quarto – Só podes estar a brincar…
- Porque é que não queres fazer amor
comigo?
- Inês, por favor, não comeces! –
advertiu num jeito áspero – Podemos falar amanhã? Estou mesmo cansado. – Ruben
virou-se novamente para a sua cabeceira, desta vez fazendo um esforço
suplementar para tentar adormecer rapidamente e por fim àquela discussão
patética, mas ela não o deixou sair ileso com aquela facilidade toda
- Não, nós vamos falar hoje! Enquanto
não me disseres o porquê, eu não te vou deixar voltar a dormir… Eu quero saber
porque é que continuas a rejeitar-me! – Inês parecia firme nas suas exigências,
e faria o que fosse preciso para conseguir arrancar uma resposta verdadeira e
sincera do seu noivo – O teu comportamento não é normal…
- O meu comportamento não é normal? Que
raio queres dizer com isso? – apercebendo-se que não teria outro remédio do que
levar aquela troca de palavras até ao fim, Ruben acendeu a luz do candeeiro, e
copiando-lhe o gesto, puxou o corpo para trás para se sentar à cabeceira da
cama, tal como ela já o tinha feito
- Eu sou a tua noiva, nós vamos casar
dentro de dois dias, caramba! Acho que não é normal para um casal nesta fase da
relação, não ter qualquer tipo de intimidade por meses a fio… - Ruben não sabia
o que lhe dizer, como contornar as evidências constatadas, e por isso debruçou
ligeiramente a cabeça e esperou que fosse ela a voltar a falar após alguns
momentos em silêncio – É por causa dela?
- Desculpa? – o seu olhar procurou-a
numa rajada imediata após lhe ter sido colocada a questão, expondo-lhe a testa
enrugada enquanto franzia as sobrancelhas hipoteticamente
- É por causa da Joana, não é? É ela
quem tu vez quando me tens debaixo de ti, é nela que pensas quando estás dentro
de mim… Tenho razão, não tenho? – o queixo dele descaiu pela escolha de
palavras e tamanha frontalidade que nunca imaginou ver-lhe
- Tu estás a ser elitista e repugnante,
Inês! – repreendeu-a com um olhar imensamente severo – Sinceramente eu não sei
o que queres que te diga…
- Diz-me porque razão não fazes mais
sexo comigo! – insistiu, elevando consideravelmente a voz, contudo e felizmente,
não elevada o suficiente para que fosse perceptível do lado de fora do quarto –
Tens medo de voltar a dizer o nome dela? É isso? Tens medo de voltares a chamar
por ela como aconteceu… - Ruben cortou-lhe a palavra, impedindo-a de terminar o
raciocínio
- Eu já te pedi desculpa por isso,
inúmeras vezes! – referiu, começando a ficar irritado… porém não sabia ao certo
de onde vinha aquela raiva, se por Inês voltar a suscitar o mesmo assunto pela
milionésima vez, ou pela verdade absoluta embutida nas palavras dela
Acontecera durante a reconciliação com a
sua actual noiva. Ainda era tudo muito recente, e pelo fracasso da sua relação
com Joana – que havia terminado da forma mais abrupta e sem jeito possível –,
as emoções de Ruben acabaram por levar a melhor de si, ascendendo-o ao limite.
Foi quando se forçou a si mesmo a
esquecê-la definitivamente e usar o sexo com Inês para descarregar toda a sua
frustração, que os seus sentimentos entraram em erupção, fazendo-o cometer um
erro colossal. A sua mente começou a pregar-lhe partidas e em vez de Inês tudo
o que ele conseguia ver e sentir era Joana… O seu cheiro, o seu sorriso, o seu
toque. Daí, e no momento em que o seu delírio atingira o auge, ter chamado por
ela mais do que uma vez quando o seu corpo exalou do clímax.
- E eu desculpei-te, mas isso não quer
dizer que me tenha esquecido!
- E vais continuar a atirar-me isso à
cara por mais quanto tempo? De cada vez que decidires discutir comigo?!
- O tempo que for preciso até me
provares que é a mim quem tu realmente queres, até me provares que a Joana está
definitivamente fora das nossas vidas e mais importante que isso… Está longe do
teu coração.
- Eu vou casar-me contigo, não vou?!
Queres maior prova que essa? – a sua mandíbula apertou, contraindo-lhe os
músculos tensos da face
- Vais casar-te comigo mas não pareces
muito entusiasmado com a ideia… Até te recusas a ter uma despedida de solteiro!
- E o que é que uma coisa tem a ver com
a outra? Por não querer ter uma festa ridícula que para mim não faz qualquer
sentido, já quer dizer que eu não estou comprometido a cem por cento neste
casamento? – Ruben deu-lhe um olhar de reprovação e terminou, antes que ela
tivesse tempo de responder à sua sátira – Poupa-me, Inês…
- A tua boca pode dizer uma coisa, mas
os teus olhos e as tuas atitudes dizem outra completamente diferente. –
murmurou assertivamente, no entanto não escondendo a fúria e desilusão que lhe
domava o corpo
- Como queiras… - para evitar que aquela
discussão ridícula tomasse proporções mais exageradas, Ruben afastou as
cobertas e levantou-se, segurando a sua almofada contra o peito quando começou
a caminhar na direcção da saída
- Onde vais? – a sua voz escapou
trémula, aquando do afastamento dele
- Enquanto não largares essa atitude,
não vamos voltar a dormir no mesmo quarto. – ele disse-lhe seriamente, não
deixando vacilar a sua postura determina por um segundo que fosse
Inês ainda tentou impedi-lo com um
pedido de desculpas apressado que soava demasiado fingido e implorativo para
fazê-lo mudar de ideias e regressar à cama. Sem mais nada dizer e encerrando
definitivamente o assunto por aquela noite, Ruben fechou a porta atrás de si e
enveredou pelo corredor que descendia ao andar debaixo. Como os dois quartos de
hóspedes haviam sido preenchidos pelos seus amigos, nenhuma outra hipótese lhe
restou sem ser a de pernoitar no sofá da sala de estar, que felizmente era
grande o suficiente para que conseguisse dormir minimamente confortável.
Assim que afundou pesadamente o corpo
nas acolchoas e a nuca decaiu sobre a almofada, a sua cabeça começou a girar de
uma tal maneira que ele julgou que iria acabar tonto. Para além do cansaço,
tinha os milhares de pensamentos debaterem-se vorazes e implacavelmente, e as
dúvidas, os receios e preocupações torturavam-no de um jeito quase insuportável
de sentir.
- Ruben? – ele não sabia quanto tempo
tinha passado, mas foi inevitável aperceber-se da voz que o chamou assim que as
luzes do corredor se acenderam e iluminaram um terço da sala – O que é que
estás aqui a fazer?
Era Mauro. Numa das suas visitas
nocturnas à cozinha, apercebeu-se da presença inesperada do irmão deitado no
sofá, de corpo presente mas de alma e pensamento longe, muito longe dali.
- Ei… - ele deu-lhe um toque no ombro
assim que se aproximou, tentando trazê-lo de volta e procurar-lhe então por um
esclarecimento – Então, puto?
Ruben finalmente olhou-o com uma
expressão vazia que Mauro ao primeiro instante não conseguiu descodificar. Deu
um ligeiro impulso ao corpo e sentou-se ao cabeçal do sofá, esfregando os olhos
cansados e acabando por deixar a cabeça ficar apoiada nas palmas mãos, seguras
pelos cotovelos pregos nas coxas.
- Sabes que horas são? Porque é que não
estás na cama? – o timbre de Mauro evidenciou a leve preocupação por ver o
irmão desamparado no meio da sala no início da madrugada
- Eu e a Inês, nós… tivemos uma
discussão. – ele acabou por dizer, num tom de voz indiferente e sem olhá-lo
- Outra vez? Vocês ultimamente não têm
feito outra coisa que não seja discutir…
- Desta vez foi pior…
- Pois, eu imagino… Para vires dormir
para aqui! – não era novidade para Mauro nem para ninguém naquela casa, dos
arrufos entre Ruben e Inês durante o decorrer daquela semana, a princípio não os estranhou e pensou que fosse de
todo o nervosismo e stress que o casamento impunha sobre eles, mas agora a
frequência com que discutiam estava a tornar-se alarmante e por isso ele achou
que o irmão estava a precisar de algum apoio – Queres falar?
- Não, deixa estar… Está tudo bem. –
havia demasiadas preocupações na sua vida às quais Ruben tinha de dar
prioridade, e a última discussão que tivera com a sua alegada noiva, não era
uma delas
- Tu é que sabes, mas se precisares de
alguma coisa sabes onde me encontrar. – com o papel de irmão mais velho, Mauro
procurava desempenhá-lo sempre da melhor forma possível, embora por vezes se
tornasse difícil devido às pequenas divergências entre eles, mas perante alguma
dificuldade, os dois, unidos, arranjavam forma de superá-la
- Eu sei, mano… Obrigado. – Ruben voltou
a erguer a cabeça para olhá-lo, aproveitando para lhe mostrar um sorriso
simples mas vazio
- Então eu vou até à cozinha petiscar
alguma coisa… Queres vir?
- Hum, não… Não tenho fome. – as
sobrancelhas de Mauro arquearam imediatamente ao ouvi-lo, não era normal Ruben
recusar qualquer oportunidade que tinha de se alimentar, devido ao seu apetite insaciável,
mas hoje, pelas situações que se haviam sucedido, mal tocara na comida
devidamente – Mauro, espera… - quando o irmão já se preparava para deixar a
sala e caminhar até à outra divisão da casa, Ruben arriscou iniciar uma
conversa com ele que esperava ser capaz de levar todos os seus fantasmas
- Mudaste de ideias? – ele olhou acima
do ombro com um sorriso torto, para vê-lo ainda sentado no sofá – Eu sabia que
tu…
- Não é isso. – alegou rapidamente,
deixando-o confuso, mas ao fim de alguns segundos após uma ponderação interior,
esclareceu – Eu queria falar contigo…
Mauro pareceu intrigado ao ouvi-lo, e
pelo tom de voz empregue nas palavras, fosse qual fosse o assunto que ele
queria falar consigo, parecia ser sério. Caminhou de volta até à zona dos
sofás, e vendo o pedido gestual que Ruben fez ao apontar para a poltrona do
lado esquerdo, ele sentou-se, posicionando o corpo estrategicamente na direcção
do irmão, que ainda não tinha deixado o seu lugar no sofá grande.
Seguiram-se alguns minutos de silêncio,
Ruben teria de ser o primeiro a falar, mas não sabia exactamente como começar
uma conversa onde o assunto que queria discutir, era tão delicado e apelava à
máxima compreensão. Precisava de algumas respostas, de alguns conselhos, e para
isso não viu ninguém melhor que Mauro, que por experiência própria e por ser
uma das poucas pessoas em quem mais confiava, podia ter alguma coisa a dizer.
- Como é que tu… - ele procurou pelas
palavras certas para iniciar cuidadosamente o discurso que tanto havia dado
voltas à sua cabeça desde aquela tarde – Como foi quando soubeste que o Gabriel
vinha a caminho?
- Ãh? – os seus olhos estreitaram-se,
assim como o seu nariz que franziu e a testa se enrugou… aquela pergunta relativa ao
seu filho, não tinha feito muito sentido, Ruben não tinha sido suficientemente
claro – Porque é que queres saber isso?
- Queres ajudar-me ou não? – inquiriu nervosamente, recebendo
somente um aceno de cabeça positivo do seu irmão – Então responde-me…
- Eu não sei bem o que queres que te diga…
- Como é que ficaste quando a Paula te disse que estava
grávida? – esclareceu, tentando abordar o tema delicada e solenemente antes de
entrar em pormenores, e recorrendo a paralelismos entre a sua vida e a do irmão
– Quer dizer, vocês não eram casados na altura, nem estavam a morar juntos…
- Ah… Eu quando soube… - Mauro fez uma breve pausa somente
para ajustar o raciocínio e poder dar uma resposta – Não estávamos à espera, é
verdade… O Gabriel foi um imprevisto, mas foi um bom imprevisto! Nós já
tínhamos falado imensas vezes em construir uma família, e se não fosse agora,
também não íamos esperar muito mais tempo…
- Mas… Como é que tu reagiste quando a Paula te disse? Não
ficaste assustado com a ideia de ser pai?
- É claro que fiquei assustado, mas quem não fica? Se bem que
dizer que fiquei assustado é um eufemismo… Eu fiquei completamente
aterrorizado! – ele riu ao recordar o momento, e Ruben acompanhou-o com um
sorriso leve – A ideia de vir a ser responsável pela vida de uma criança simplesmente…
mudou-me!
Ruben deixou-se permanecer atento a toda e qualquer palavra do
irmão. Sabia que durante aquele período, com a descoberta da gravidez não
planeada de Paula, Mauro tinha enfrentado as mesmas dúvidas e as mesmas
preocupações que agora ele próprio estava a sentir, e os conselhos do irmão
podiam ser uma ajuda fundamental… era tudo o que precisava ouvir.
- Claro que no início, e ainda para mais com o facto de não
estarmos à espera, a ideia de virmos ter um filho assustou-nos, deixou-nos
confusos, mas depois… - um brilho inconfundível apoderou-se do seu olhar,
acompanhado de um sorriso babado que demarcou as alíneas do seu rosto – Depois
tivemos a certeza que a nossa felicidade estava só a começar.
- Mas e o facto de serem inexperientes, e os vossos
trabalhos, as vossas carreiras… - revelando-lhe alguns dos seus medos
indirectamente, Ruben expôs a sua questão – Onde ficam no meio disso tudo? É
preciso ter-se estabilidade para se criar um filho…
- Ruben, há sempre uma primeira vez para
tudo… No início eu nem sabia mudar uma fralda, e olha agora! Sou um expert! –
ele brincou levemente – E é evidente que é preciso ter-se estabilidade para se criar
um filho, e é por isso que eu tenho a mulher que eu amo do meu lado, para me
ajudar sempre que preciso… Também te tenho a ti e tenho a mãe. E tu és um
óptimo tio, o Gabriel adora-te! – concluiu calmamente, certo de que a sua
família era o seu mais forte pilar que jamais o deixaria cair em momentos de
fraqueza
- E quando é que soubeste que estavas
totalmente preparado para ser pai? – com aquela pergunta Mauro teve de rir, vendo
a ingenuidade do irmão quanto ao assunto
- As coisas não são assim tão simples,
puto… Não é tudo preto no branco. Acho que nesta situação, nunca ninguém está
realmente preparado. É algo que tens de deixar ir, algo que vais aprendendo a
aperfeiçoar com o tempo, que aprendes a ser melhor consoante as circunstâncias
que te são impostas e que vais superando. – ele explicou, apercebendo-se que
Ruben estava a fazer algumas notas mentais enquanto o ouvia – É evidente que a
entrada de um filho na tua vida altera praticamente tudo o que tens nela… Alguns dos teus hábitos mudam, a tua rotina
muda, as tuas prioridades mudam… Mas acredita que o teu amor só vai crescer! –
os seus lábios voltaram a iluminar-se no mais belo sorriso, saboreando todas as
alegrias que o pequeno Gabriel tinha trazido à sua vida
- Parece ser tão difícil… Tão
complicado… - o corpo de Ruben recostou-se no sofá, soltando um suspiro longo e
inseguro, enquanto tentava absorver toda aquela informação
- E é. Nem sempre é fácil cuidar de uma
criança, e há momentos em que questiono tudo… Se estou a fazer bem ou não, se o
que estou a fazer é o melhor para o Gabriel ou não… Às vezes até duvido do quão bom
pai eu sou. Mas ser pai está a ser a melhor experiência da minha vida, e não a
trocava por nada deste mundo. – ouvir aquelas palavras, de uma maneira ou de
outra, deram a Ruben algum alento e confiança que precisava – Para não dizer
que acompanhar a Paula durante a
gravidez foi das melhores fazes que já vivemos na nossa relação.
- Como foi? – perguntou curioso, e
retomando a sua posição inicial no sofá, sedento por ficar a par da máxima informação
que fosse possível e necessária a ajudá-lo com tudo o que ele ainda estaria por
lidar juntamente com Joana
- Sei lá… Ver a barriguinha dela crescer
todos os dias, acompanhá-la nas idas ao médico e assistir às ecografias, sentir
os pontapés dele… Até quando ela acordava a meio da noite por causa dos
desejos! Foi tudo… fantástico.
- E como foi o parto? – voltou a
questionar, sabendo que o irmão tinha assistido ao nascimento do filho
- O parto? Assustador! Todo nervosismo,
os gritos, o sangue(!) – Mauro deu enfâse ao último aspecto, recordando que
quase desmaiara na sala de partos ao ver a quantidade de sangue entre as pernas
da sua esposa, enquanto o médico a incentivava a continuar a empurrar o bebé –
Mas quando segurei o Gabriel nos meus braços… Acho que pela primeira vez a
minha vida fez sentido.
Neste instante da conversa, e sem se
aperceber, os olhos de Ruben já haviam sido cobertos pelas lágrimas prontas a
correrem o seu rosto a qualquer momento.
Perguntava-se se poderia viver tudo
aquilo com Joana, partilhar todos aqueles momentos com ela, porque não havia
outra coisa neste mundo que ele quisesse mais do que ser um pai para o seu
bebé, ser o homem de família que ele sempre sonhou construir… ao lado de Joana.
Foi inevitável invejar a sorte do irmão
e a facilidade da vida dele em comparação ao descalabro que era a sua.
- Mas porque é que queres saber,
afinal?
- Por nada, curiosidade só… - ele mentiu,
ainda não se sentindo totalmente capaz de partilhar a verdade, mas Mauro ficou
intrigado e não se contentou com aquela resposta
- Não me digas que… - começou, batendo
ritmadamente o indicador no queixo enquanto procurava pela questão certa – A
Inês está grávida? – sugeriu então, logo que a mais viável ideia lhe veio à
cabeça
Extenuado, Ruben suspirou. Reflectiu
por alguns segundos a melhor abordagem para dar a notícia ao seu irmão e
esperar ansiosamente para não ser julgado.
Endireitou o corpo no sofá, puxando-o
ligeiramente à frente de modo a encontrar uma postura mais confortável e
finalmente, num sopro alentado, falou.
- Não, mano… - ele negou ao ter reunido
toda a coragem que precisava para se confessar, no entanto deixando o olhar
permanecer amarrado às suas mãos entrelaçadas que tinha reunidas no colo – Não
é a Inês…
O corpo de Mauro enrijeceu e depois
disparou para fora da poltrona onde permanecia sentado. Literalmente disparou.
Não foi preciso fazer um grande esforço para que todas as peças do puzzle se
fossem deslocando por vontade própria e formassem o quadro completo daquela
história.
O estado choque abalou-o nos primeiros
instantes em que deliberadamente raciocinara a insinuação de Ruben, e perante a
problemática de toda a situação, os seus sentimentos surgiram
compreensivelmente confusos e baralhados.
- O bebé da Joana…
- É meu. – Ruben completou calmamente
ao fim de alguns segundos, não deixando espaço para que se criassem mais
dúvidas
- Espera… Mas como?
- É mesmo preciso que eu te explique como aconteceu? –
ironizou numa pequena brincadeira que se sentiu capaz de iniciar
- Oh, tu sabes que não é isso que quero dizer… Quando foi?
- Lembraste daquela noite que te falei?
- Foi aí? – Ruben assentiu, dada que foi a última fez que
tinham estado juntos e a tinha dado a conhecer ao irmão num desabafo – Então
isso quer dizer que… eu vou ser tio? – embora ainda a sentir-se deslocado,
Mauro queria libertar a pressão dos seus lábios para um sorriso leve, mas não
sabia se era apropriado – Eu vou ter um sobrinho?
- Ou uma sobrinha… -
Ruben exalou finalmente sentindo uma carga menos pesada nos ombros, e
permitindo às lágrimas de felicidade libertarem-se livremente pelas faces
- Puto, eu… Eu nem sei o que dizer! Isto é tudo tão… Eu não
sei…
- Eu vou ser pai, Mauro… - um pequeno sorriso estimulante
iluminou o seu rosto pela primeira vez naquele dia, e silenciosamente ordenou
ao seu corpo a levantar-se e colocar-se na frente do irmão – Podes sempre
dar-me os parabéns…
- Claro… Claro que sim. – Mauro sorriu também, embora que o
tenha feito de um jeito mais inseguro e acanhado, mas feliz pelo seu mano mais
novo – Parabéns, mano. Parabéns! – ele puxou-o para um abraço, afagando-lhe as
costas com palmadas leves – Mas então e o casamento, a Inês… O que vais fazer
no meio desta história toda? – perguntou logo que se voltaram a separar,
nomeando os obstáculos evidentes que se encruzilhavam no caminho do irmão, rumo
a uma felicidade que ele procurava ao lado de uma mulher que não era a sua
noiva
- O que é que eu vou fazer?
Ruben não precisou de ponderar mais sobre os seus pensamentos
aquando confrontado por aquela simples, e ao mesmo tempo tão complexa pergunta.
As ideias que ainda há poucos momentos se encontravam tão nubladas na sua
cabeça, já haviam sido organizadas e agora mostravam-se mais claras que nunca,
acompanhadas pela arrumação do seu coração que tinha encontrado enfim o seu
lugar, e finalmente uma decisão tinha sido tomada.
- Eu vou lutar por aquilo que é meu, Mauro… Vou lutar pela
Joana e pelo meu filho. Eu não os posso perder.
***
Aquele dia de sexta-feira estava a passar incrivelmente rápido. As horas de almoço já iam longe, parecendo querer fazer chegar o fim-de-semana talvez que pouco depressa demais.
(In)felizmente as nuvens maciças haviam-se dissipado no céu e as temperaturas voltaram a subir quase que milagrosamente, levando todos a desfrutar de uma tarde passada no jardim frontal da vivenda. Logo depois do almoço, Inês insistiu para que os participantes da cerimónia, para além dos noivos, os padrinhos e também a menina das alianças, a pequena Sofia, fizessem um pequeno ensaio da liturgia apenas para relembrar o papel de cada um, para que nada falhasse no grande dia.
Para Joana este estava a ser um dos piores dias que se lembrava de passar na sua gravidez. Os enjoos haviam permanecido durante toda a manhã, e para além da sonolência habitual, sentia uma dor desconfortável nos seios, cada vez mais inchados e sensíveis. Apetecia-lhe subir ao quarto e descansar por uma ou duas horas, mas não queria fazê-lo antes da saída das meninas que rumariam a Lisboa no final daquela tarde.
- Podes segurar-me o Gabriel enquanto eu vou lá dentro num instantinho fazer uma chamada? – a voz doce e amiga de Paula soou distante, fazendo-a arrumar de novo as lembranças do passado mas não capaz de a fazer entrar de novo e totalmente na realidade
- Podes segurar-me o Gabriel enquanto eu vou lá dentro num instantinho fazer uma chamada? – a voz doce e amiga de Paula soou distante, fazendo-a arrumar de novo as lembranças do passado mas não capaz de a fazer entrar de novo e totalmente na realidade
*****
“Gaitán cruza para o cabeceamento, vai Luisão, cabeceia e é agora!
Não! A bola vai à trave da baliza de Hélton. Incrível! Olha o ressalto… - o relato
do comentador era atentamente escutado através de um rádio, na zona dos
camarotes encarnados – Gaitán novamente, encontra Ruben Amorim, Ruben Amorim
avança para a bola e vai, vai, vai e é golo! É golo! GOOOOOOOOLO DO BENFICA!
Acho que já é seguro dizer que temos um novo campeão nacional. Que fantástica
finalização de Ruben Amorim!”
Quatro minutos depois ouviu-se o apito final no Estádio da Luz, e
rapidamente a loucura foi vivida e espalhada tanto dentro de campo pelos
jogadores, como pelos adeptos que entraram em delírio nas bancadas.
Era a primeira vez que Joana assistia ao vivo a um jogo decisivo ao
campeonato, e pelas mais diversas razões, nunca imaginara sentir um orgulho e
felicidade tão grande por ter tido a oportunidade de testemunhar e – de forma
passiva – ter feito parte daquele momento.
Depois de fazerem os seus festejos e de terem erguido a taça umas
dezenas de vezes, os jogadores recolheram ao balneário, enquanto as respectivas
famílias seguiram na direcção da sala onde os iriam esperar.
- O Ruben não deve caber em si de tanta alegria! Viste o jeito
louco como ele corria pelo campo? Estou tão feliz por ele. – conversou Anabela
animadamente, aquando caminhava pelo corredor de braço dado com Joana, que
concordou com o seu comentário com um sorriso leve, partilhando do mesmo
orgulho e felicidade
Surpreendentemente a espera não foi longa, e mal as famílias e
amigos deram por isso, já uma enchente de gargalhadas, gritos eufóricos e
sotaques mistos inundavam a sala com uma nova energia, logo da chegada em grupo
dos jogadores.
No instante preciso em que rompeu pela porta, os olhos de Ruben
recaíram amorosamente sob os de Joana, que já ansiava encontrar desde que a
partida havia terminado. Ele preparou-se para se lançar na sua direcção, mas
recuando ligeiramente, ela relembrou-o com um simples aceno de olhar, que
deveria ir abraçar a família em primeiro lugar e depois então poderia ir ao pé
de si.
Ruben compreendeu a posição dela, e reprimindo a enorme vontade
que tinha em levá-la nos seus braços, foi então abraçar a sua mãe e Mauro, que
o bajularam cheios de orgulho pelo mais recente campeão da família.
Quando finalmente o libertaram, ele não perdeu mais tempo e correu
até Joana que se encontrava ligeiramente afastada dos restantes, e levou-a nos
seus braços, fazendo rodopiar no ar.
- Assim vais sufocar-me, Ru… - ela disse entre gargalhadas
estranguladas, apanhada no meio da força inconsciente de braços do seu namorado
- Desculpa, amor, desculpa. – Ruben mostrou-lhe um pequeno sorriso
travesso muito típico dele, enquanto aliviava a pressão que fazia em volta dela
e a colocava de volta ao chão
- Aqui não. – ela desviou ligeiramente o rosto quando se apercebeu
que ele se preparava para beijá-la nos lábios, e Ruben viu-se obrigado a
advertir o beijo para o centro da bochecha
- Anda, vamos sair daqui. – aproveitando que a sala tinha dado
lugar ao caos pela quantidade de pessoas que a encheu, Ruben pegou-lhe na mão
para arrastá-la consigo e levá-la para um lugar onde pudessem ficar sozinhos
Não era segredo para ninguém da forte e íntima amizade que Ruben e
Joana partilhavam, houve até alguns – os mais próximos do grupo de amigos –,
que chegaram a desconfiar de que algo mais se passava entre eles, no entanto
nunca foi confirmado oficialmente pelo casal de que essa amizade tinha tomado
novas proporções e envolvido novos sentimentos.
- Ruben, o que estás a fazer? Eu não posso estar aqui! – de
sorriso embelecido nos lábios, procurou dar seguimento às normas restritivas,
assim que se percebeu que tinha sido levada para o balneário encarnado
- Claro que podes! Este é o meu balneário, tu és a minha namorada,
logo tu podes estar aqui se eu quiser que estejas. E eu quero.
Ela já estava pronta para barafustar quando o viu trancar a porta,
mas Ruben não lhe deu essa oportunidade, e antes de lhe dar mais tempo para
dizer o que quer que fosse, segurou-lhe o rosto entre as mãos e beijo-a da mesma
maneira e com a mesma vontade que tinha assim que a viu pela primeira vez na
sala de jogadores.
- Estava com saudades tuas. – ele gracejou depois do beijo,
desviando-lhe algumas mechas de cabelo para trás do ombro para que tivesse mais
acesso ao pescoço, e começasse um novo ataque lá
Joana voltou a erguer rosto, e por meio de uma pequena chamada de
atenção, ele fê-lo também. Embora não quisesse deixar-se levar pelo sentimento
que os unia, foi-lhe impossível recusar a troca de mimos na periferia de uma
cumplicidade que eles já dominavam melhor que ninguém, e então beijou-lhe os
lábios primeiro uma, depois outra e mais outra vez.
Ruben retirou-lhe a mala do ombro e sem desviar o olhar do dela,
levou-a a sentar-se no seu colo no banco corrido do balneário.
- Viste o golo que marquei? Foi para ti… Esta noite foi tudo para
ti… Queria que ficasses orgulhosa de mim.
- E eu estou, amor… Estou muito orgulhosa de ti. Muito! És o meu
campeão.
Com um sorriso babado e completamente apaixonado, Ruben
arrepanhou-lhe um punhal de cabelos e puxou-a para mais uma maratona de beijos
intensos que depressa começaram a fugir do controlo.
- Tira! – exigiu ao separar as bocas, referindo-se à camisola dela
que o impedia de tocá-la em todos os lugares que queria
- Não.
- Tira. - repetiu contra os lábios da namorada, num timbre suave,
no entanto mais urgente e ansioso que da primeira vez
- Nós não vamos fazer nada aqui, Ruben. – o tom de voz de Joana foi o
suficiente para recordá-los onde estavam
- Eu preciso de fazer amor contigo… Agora!
- Controla-te, Romeu.
- Mas eu preciso, amor… Eu preciso tocar e sentir cada centímetro
teu. – confessou deliberadamente, apertando os glúteos de Joana nas suas mãos,
puxando-a ainda mais para si
- Se te portares bem, e depois de festejares com a equipa, talvez
festejemos só nós dois quando chegares a casa. – a voz dela desceu algumas
oitavas, tornando-a perigosamente mais quente
- Isso quer dizer que vais lá estar à minha espera? – as suas
sobrancelhas vibraram de um jeito cómico, devolvendo-lhe o brilho ao olhar
Ela assentiu e mordeu o lábio inferior. Joana sabia o que esse
gesto provocava em Ruben, e ele aproveitou o rumo que a conversa estava a levar
para se aproximar e sussurrar-lhe ao ouvido com uma voz grave carregada de
desejo.
- Quando chegar ao quarto quero-te nua na minha cama.
Ela corou imediatamente com a escolha de palavras dele. Embora ainda
ficasse tímida por vezes quando ambos entravam no campo da sua vida sexual, o
nível de intimidade entre eles crescia a cada dia, levando-a a gostar de quando
Ruben falava assim para ela. De uma maneira invulgar e que só agora começava a
descobrir em si, fazia-a sentir-se mais viva, mais amada e desejada,
especialmente por saber que ele não falava daquela maneira para nenhuma outra
mulher. Ruben queria-a só a ela, amava-a só a ela. E ele tinha-a… completa e
totalmente.
- Aconteça o que acontecer, tu és o meu amor. Sabes disso, não
sabes? – ele falou no fim de uma troca silenciosa de olhares e enquanto lhe
acariciava a face, terminando com um delicado beijo nos lábios
- Sei. – Joana respondeu de coração cheio – Tu és o meu.
*****
- Joana? – a esposa de Mauro voltou a chamá-la, mas a falta
de reacção de Joana, que parecia estar tão longe em pensamento, começou a
deixá-la ligeiramente preocupada
Enquanto os rapazes se divertiam entre uma peladinha no
jardim, as meninas juntaram-se no alpendre entre típicas conversas de mulheres
enquanto bebericavam um chá quente e os viam jogar.
Por estar lesionado e evitando fazer esforços desnecessários,
Ruben foi forçado a ficar à baliza, recusando a sugestão de Mauro que o
aconselhou a ficar fora do jogo antes que pudesse agravar a lesão no joelho.
Contudo, estar a jogar ou não, para Ruben estava a ser exactamente a mesma
coisa. Estava mais concentrado nas “bancadas” do que na bola e nos seus
colegas, e de vez em quando lá se ouvia Luisão e David resmungar por estar a
dar pontos à equipa adversária. E tudo isto acontecia por uma simples razão:
Ruben não conseguia tirar os olhos de Joana.
Quando pela primeira vez a viu entrar no alpendre e juntar-se
às meninas, ainda se esforçava por ser discreto e procurá-la somente quando a
deparasse suficientemente distraída para fazê-lo, mas agora isso pouco
lhe importava e muito menos se alguém viesse a reparar, e quando uma vez por outra, Ruben reparava que também Joana o
olhava, sentia-se mais encorajado em continuar a procurá-la e trocar com ela breves sorrisos.
- Querida, estás bem? – o apelo de Paula voltou a surgir num
tom preocupado, obrigando-a enfim a desviar o olhar do de Ruben e concentrar-se
na amiga que chamava pela a sua atenção há já alguns minutos
- Sim, desculpa. – ela clareou a garganta e forçou um sorriso
leve – Claro, eu fico com o Gabriel.
Paula agradeceu-lhe e entregou-lhe o bebé para os braços,
recolhendo-se ao interior da casa para fazer um telefonema de trabalho.
Joana olhou para o pequenito que mantinha seguro em pé nas
suas coxas, enquanto ele balbuciava animadamente e sorria para si. O seu
coração acalentou-se, na ânsia de dentro de alguns meses segurar nos braços o seu
bebé e esse pensamento levou-a a arrastar novamente o olhar até uma só pessoa,
que já a observava há alguns minutos e foi impossível conseguir disfarçar os
sorrisos tímidos que surgiram em ambos os rostos… mesmo sem saberem, eles
estavam definitivamente a partilhar do mesmo pensamento.
***
- Tens a certeza que ficas bem, amor? – voltou a perguntar a
Joana, aquando já estavam todas as meninas reunidas no hall de entrada, prontas
a seguir viagem até Lisboa para a festa de despedida de solteira de Inês
- Tenho, Adriana. Vou aproveitar para subir e descansar um
pouco antes do jantar… Amanhã vai ser um longo dia.
- Pronto, mas então se precisares de alguma coisa não hesites
em ligar-me, eu faço-me à estrada e venho logo logo para aqui! – Joana sorriu
pela dedicação da amiga
- Não te preocupes comigo, eu vou ficar bem, e se precisar de
alguma não vou estar sozinha, os rapazes estão cá.
- Eu sei. – ela sorriu – Vemo-nos amanhã.
- Sim, vemo-nos amanhã. – elas partilharam um abraço e Joana
dirigiu-se às outras meninas antes de se retirar ao andar superior – Façam boa
viagem.
- Joana, cê vai subir, meu anjo? – perguntou Brenda, assim
que a viu dirigir-se à escadaria
- Sim… Precisas de alguma coisa?
- Pode dar uma olhada na Sofia? Deixei ela dormindo no quarto
do Ruben… Já fui me despedir mas ela pegou direitinho, não queria que quando
acordasse se achasse sozinha….
- Claro, eu fico com ela, não te preocupes. – Brenda
agradeceu, elas despediram-se e Joana seguiu rumo pelo corredor na direcção do
quarto de Ruben
Suavemente para não sobressaltar a pequenina, empurrou
a porta e viu a sua afilhada serena sob as cobertas, com o corpo relaxado em
forma de conchinha resguardado por uma manta. Ela aproximou-se da cama e
sorriu, vislumbrando a boquinha de Sofia ligeiramente aberta deixando um rasto
de saliva molhar a almofada e Joana decidiu que naquele momento aquela era a
imagem mais ternurosa que tinha da sua menina.
Livrando-se dos ténis que trazia calçados, subiu à cama e
deitou-se junto a Sofia. Inconscientemente o corpinho dela atuou durante o sono
e procurou o da sua madrinha ao deixar para trás a almofada e aconchegar
imediatamente a cabeça na dobra perfumada do pescoço de Joana ao mesmo tempo
que esticou as pernitas sobre as dela.
- Mad’inha? – ao fim de alguns minutos que os seus dedos
meigos passaram a fazer leves círculos nas costas da pequena, como Joana sabia
ela gostar enquanto dormia, a vozinha sonolenta dela surgiu por entre a paz
mergulhada naquele quarto
- Olá, meu amor pequenino. – os seus lábios rasgaram-se
imediatamente num sorriso, ao procurar os olhinhos ainda semicerrados de Sofia
– Já dormiste tudo?
- Acho que shim. – ela respondeu ao mesmo tempo que
desentorpecia o corpo ao espreguiçar-se, e conduzia a boca a um pequeno bocejo
– A mamã já foi embora?
- Já, princesa, foi embora mesmo há pouquinho.
Sofia apenas assentiu com a cabeça e não disse mais nada.
- Tens fome? Queres que a madrinha te prepare alguma coisa
para comer? Ainda falta um tempinho para o jantar estar pronto…
- Não mad’inha, agolha ainda não tenho fome.
Apesar de Sofia não ter mais sono para
voltar a dormir, nenhuma mostrou intenção em querer sair da cama. Deixaram-se
permanecer abraçadas ali, aproveitando o tempo a sós que tinham, para desfrutar da presença uma da outra.
- Mami? – a sua vozinha frágil e
inocente voltou a surgir num murmúrio, alguns pares de minutos após
Os dedos de Joana continuaram a
acariciá-la, desta vez enrolando-se entre os cachos rebeldes do cabelo,
incentivando-a silenciosamente a falar.
- Posso voltar a ver a tua barriguinha?
– um sorriso tímido surgiu-lhe nos lábios, que Joana não resistiu em beijar num
pequeno selinho, depois de soltar uma pequena gargalhada
- Claro que podes, princesa, não
precisas de pedir.
As mãozinhas curiosas de Sofia
agarraram-se rapidamente, porém com todo o cuidado do mundo, à bainha da
camisola de lã da sua madrinha, distendendo-a para cima até ao nível do busto.
Os seus olhos depressa se iluminaram ao ver a forma perfeita e arredondada da
barriguinha de quase 14 semanas de gestação.
- Se quiseres também podes tocar. –
Joana permitiu suavemente, quase como conseguindo ler os pensamentos da pequena
- Não quero magoar o bebé.
A inocência e ingenuidade da criança
soaram tão fortes e verdadeiras que Joana sentiu o seu coração derreter de
ternura.
- Não magoas, amor. – ela pegou a
pequenina mão e com a sua guiou-a até ao topo da barriga, começando a
acariciá-la tenuemente e então Sofia olhou-a nos olhos completamente encantada
com a sensação
- O bebé ainda está pequenino?
- Está, Sofiazinha, ainda está pequenino.
- Quão pequenino?
- Do tamanho de um pequeno pêssego. –
Joana viu Sofia semicerrar os olhos e portar um ar pensativo, tentando trazer à
memória a imagem de um pêssego e medi-lo mentalmente
- Será que ele vai ficar tão grande
como eu?
- Vai pois, se Deus quiser. Ao início
ele vai ser muito pequeno pequenino, tal como tu quando nasceste e como o
Gabriel, mas depois vai crescer e ficar tão grande e forte como tu.
Sofia pareceu satisfeita com a resposta
de Joana e voltou a aconchegar-se a ela novamente. Com a delicadeza e cuidado
que já lhe eram conhecidos, pousou a cabeça no topo arredondado da barriga
encostado lá o ouvido na esperança de ficar mais próxima ao bebé, e então,
baixinho, começou a cantarolar uma canção de ninar ao mesmo tempo que a polpa
dos seus dedos continuava a afagar-lhe a pele.
Aos poucos, e apesar de lutar para se
manter acordada, a voz doce de Sofia começou a embalar Joana, obrigando-a a
começar a fechar os olhos e entregar-se ao cansaço ao qual a gravidez a
acometia, porém, e antes se deixar ir completamente, uma outra voz, grave e
profunda que contrastava em pleno com a da menina, puxou-a de volta para a vida
no quarto.
- Há espaço para mais um? – perguntou
Ruben, que entrara de mansinho para não as sobressaltar e se deixara ficar
junto da porta
- Pad’inhoooo! – mal ouviu a sua voz,
Sofia saltou disparada da cama e correu ao encontro de uma das suas pessoas
preferidas, atirando-se nos braços dele – Vem… Vem tocalhe na barriguinha da mami
e sentir o bebé. – logo quando voltou ao chão depois de ter sido pegada ao
colo, ela pegou-lhe na mão e começou a puxá-lo na direcção onde Joana
permanecia deitada
Pela primeira vez desde que entrara
naquele quarto, ela parara para pensar e apercebeu-se do enorme erro que era
em estar ali. Entre aquelas paredes. Deitada naquela cama. A respirar aquele
perfume. Assim que viu Ruben ser arrastado por Sofia e ir ao seu encontro, fez força com as mãos e puxou o corpo para cima e para trás, encontrando
rapidamente uma posição confortável para ficar sentada à cabeceira da cama.
- Eu não me vim intrometer, só vim cá a
cima buscar o meu telemóvel que dever estar por aqui algures. – Ruben falou
enquanto varria com o olhar todas as superfícies do quarto onde pudesse estar o
seu aparelho
E ele não estava a mentir. O seu telemóvel era de facto a
razão que o levara ali e nada mais. Até porque, apesar de já ter tido intenções
de procurar Joana e falar com ela antes do final daquela noite, ele julgara que
o seu quarto era com a maior das certezas a última divisão daquela casa onde a
iria encontrar, no entanto ali estava ela e não podia deixar de admitir para si
mesmo que estava deleitado com aquela surpresa, ainda melhor poder vê-la tão
relaxada sobre a sua cama com a sua afilhada. Aquela imagem, estava certo, iria
recordá-la para sempre.
- Depois procuras o telemóvel, papi,
agolha vens comigo sentir o bebé, para ele te conhecer. – o maneirismo quase
autoritário de Sofia assentava-lhe de um jeito adorável, e daquela forma era
impossível negar-lhe o que quer que fosse
- E tu sabes se a madrinha me deixa sentir o bebé? – ele vincou a sobrancelha à afilhada num jeito e tom
brincalhão, e ambos sentaram-se no beiral da cama junto a Joana, com a
pequenita entre os dois
- Claro que deixa. – Sofia respondeu
celeremente, mas acabou por olhar nos olhos de Joana para confirmar a sua
palavra – Num deixas mad’inha?
Por muitas situações desconfortáveis que já tivesse travado
desde a sua chegada àquela casa, aquela era sem sombra de dúvida a mais
desafiante e inconveniente, e o mais hilariante no meio daquilo tudo é que
havia sido criada por uma criança de três anos e meio.
As palavras que Joana procurava expelir pelos lábios haviam
sido estranguladas na garganta e por mais que quisesse tomar uma acção, mesmo
que fosse a de correr para longe dali, o seu corpo não estava a obedecer às
ordens comandadas pelo cérebro.
- O bebé ainda está do tamanho de um pesseguinho mas quando
nascer vai crescer tanto como o primo Gabriel e como eu. – Sofia disse entusiasmada,
resumindo a conversa que havia tido com a madrinha e dá-la a conhecer a Ruben,
tal como se ele não fizesse ideia do processo de crescimento de uma criança
- Desculpa, gente, me dá licença? – com o telemóvel seguro
junto do ouvido, Luisão irrompeu pela porta no mesmo instante em que Sofia
acabou de falar, e Joana nunca se sentiu tão feliz e aliviada em ver o amigo –
Sofia, filha, tenho vovó no telefone, cê quer vir dar um beijo pra ela?
Por obra do destino ou não, essa felicidade foi de pouca
dura, pois assim que ouviu a menção da sua querida avó, Sofia saiu disparada ao
encontro do pai e segundos depois, Ruben e Joana haviam sido deixados a sós.
Não disseram nada, até porque ela simplesmente não conseguia,
e ficaram apenas a olhar um para o outro, inebriando-se no facto de finalmente serem só eles, e foi quando
Joana mostrou a intenção de voltar a deslizar a camisola para baixo e cobrir a
sua barriga, que até então se mantinha exposta, que Ruben fez um pedido
irrecusável.
- Não a tapes, por favor. Deixa-me olhar para ela.
Mais uma vez as acções dele deixaram-na sem qualquer resposta
ou reacção, e foi aproveitando-se da ausência de palavras que Ruben caminhou
até à porta do quarto para fechá-la e rodar a chave até ambos a ouvirem ser
trancada.
- O que é que estás a fazer? – Joana perguntou num
sobressalto, logo que a sua voz conseguiu de novo vibrar nas cordas vocais
- A garantir que não somos interrompidos.
- Abre a porta, Ruben.
- Não. – a respiração dela engatou
- Não?
- Não. – ele sorriu, de postura incrivelmente calma, e voltou
para a cama para junto dela – Desta vez não vamos sair deste quarto sem
revolvermos as coisas.
- Mas o que há para resolver? Entre nós não há nada que tenha
de ser resolvido.
Ruben ignorou-lhe o comentário e subiu à cama, separou os
joelhos de Joana e de barriga para baixo, deitou-se entre as pernas dela até os
seus olhos ficarem ao nível da barriguinha que carregava o bebé de ambos. Ele
então sorriu ao reparar que ela lhe tinha feito a vontade em deixar a camisola
para cima e imediatamente prestou toda a sua atenção ao ventre, como se
conseguisse ver através dele.
A este ponto Joana não queria acreditar no que estava a
acontecer bem diante si. Tinha sido tudo tão rápido que não lhe dera tempo de
reagir. Ruben não lhe dera tempo de
reagir, e quando finalmente ganhou coragem para fazê-lo, tentando
afastar-se, ele agarrou-a na cintura, prendendo-a no lugar.
Como se tivesse habituado a fazê-lo desde sempre, começou a
beijar-lhe cada centímetro da barriga delicadamente, não deixando para trás qualquer
pedaço de pele que os seus lábios não tivessem tocado. Espontaneamente, e
rendida àquele acto de pura ternura, a mão dela procurou os pequenos cachos de Ruben
fazendo-os deslizar pelos dedos, percorrendo as unhas no coro cabeludo e
tirando dele um grunhido prazeroso enquanto ainda lhe acariciava a barriga com
a boca e com as mãos.
- Acho que fizemos uma menina. – ele disse com a maior
naturalidade do mundo, ao fim de algum tempo que passara a reflectir, sem
desviar por um segundo os olhos do ventre como se de alguma forma, por algum
motivo, algo pudesse acontecer e ele tinha de estar lá para protegê-lo – O que
é que tu achas?
Joana não disse nada. Não conseguiu. Eram demasiadas emoções
para serem lidadas num tão curto espaço de tempo. Surpreendeu-a o facto de
Ruben não a ter confrontado, não ter suscitado uma discussão entre ambos que no
fundo, e agora, se mostrava ser inútil. Por breves instantes questionou-se a
forma como ele tinha descoberto, “Será
que ouviu alguma conversa?”, “Terá
captado algum comentário entre David e Adriana?”, “Terá sido a Dona Anabela a contar-lhe?” Ele sabia a verdade, sabia sem
sombra de dúvidas que aquele bebé era seu e não havia como negá-lo.
Assoberbada pelas emoções, que com a gravidez se mostravam
mais proeminentes e intensas, Joana recostou-se à cabeceira da cama, ergueu o
queixo e fixou o olhar ao teto, obrigando a recuar as lágrimas que
silenciosamente se haviam formado nos olhos.
- Como é que já posso amar tanto alguém que ainda nem sequer
conheço? – Ruben perguntou, desta vez mais para si do que para ela
- Odeias-me? – Joana perguntou ao fim de algum tempo que
passara a ganhar coragem para voltar a falar
- Porque razão haveria de te odiar? – um pequeno sorriso
rasgou-lhe os lábios, incapaz de esconder a felicidade que sentia em poder
estar perto do seu rebento – Vais dar-me a melhor coisa do mundo.
- A melhor coisa do mundo que estava a esconder de ti.
- E pretendias esconder-me para sempre?
- Não, claro que não. – ela ajustou o corpo a uma posição
mais confortável e Ruben seguiu-lhe o exemplo, afastando-se da barriga que
tinha vindo a adorar e sentar-se na cama de modo a conseguir olhá-la mais
profundamente nos olhos – Eu ia contar-te, nunca foi minha intenção esconder-te, mas… não sei. Acho que estava à espera do momento certo. Nunca
pensei em privar-te de…
- E isso é tudo o que me importa saber agora. – ele não a
deixou terminar – Estou cansado de discussões, Joana, discussões, mal-entendidos
que já nos roubaram tanto tempo. – suspirou – Eu não vou perder nem mais um
minuto. Nem mais um segundo que estou disposto a passar longe de ti.
- Ruben… Do que é que estás a falar? – ela perguntou, confusa
pelo rumo que ele estava a dar à conversa – Não muda nada entre nós.
Aquelas palavras atingiram-no como uma tonelada de tijolos, e
por um segundo sentiu o coração bater-lhe tão forte no peito que o conseguia
ouvir claramente soar aos ouvidos.
- Como assim, não muda nada entre nós? – ela viu-lhe o rosto
transformar-se num sorriso confuso, quase incrédulo – Eu pensava… Tu já não
sentes nada por mim?
- Ruben, por favor, não compliques. – suplicou, erguendo o
corpo que se soltou da cama para tomar uma distância confortável do de Ruben
- Responde à minha pergunta. – ele falou imperativo, seguindo
as passadas dela apenas com o olhar
- Não são os sentimentos que contam aqui, isso não importa
agora.
- É claro que importa! – contrapôs numa só respiração que não
deu espaço para que fossem criadas dúvidas, obrigando o corpo também a
erguer-se no mesmo segundo – São os nossos sentimentos e o que queremos fazer
com eles.
- Tu já deste rumo aos teus. – Joana disse num timbre
impossivelmente baixo, porém não baixo o suficiente que Ruben não lhe
discernisse a intento acusador na voz
- Estás a falar do meu casamento?
- A Inês é a tua noiva. Tens de ser-lhe fiel.
- Eu tenho de ser fiel àquilo que sinto! – Ruben não vacilou
em procurar argumentos que sustivessem a razão de voltarem a ser um do outro,
mesmo que Joana insistisse em refutar cada um deles
- Mesmo que o que sintas seja errado?
- Achas que é?
Tomando lugar junto à ampla janela do quarto, ela exalou,
começando a sentir-se psicologicamente exausta pelo rumo supérfluo e
redundante que aquela conversa estava a tomar.
- Nunca chegaremos a um consenso.
- Desta maneira, não. – ele ripostou, tentando não perder a
calma que aos poucos ameaçava abandonar-lhe o bom senso – Afinal o que queres
que eu seja para ti, Joana? Queres que eu seja apenas o teu afilhado de
casamento? Queres que eu seja um amigo? Um confidente nas horas vagas? – Ruben
silenciou-se por um segundo, olhando-a no fundo dos olhos, antes de continuar –
Queres ao menos que eu seja um pai para o nosso filho?
- É claro que eu quero que sejas um pai para o nosso filho! –
Joana bradou exaltada, estrangulada pelo aperto que lhe feria o peito, novas
lágrimas a arderem na linha de água dos seus olhos
- Então fala, diz-me o que queres, sem rodeios! Eu estou aqui
e não vou a lado nenhum. Não temos ninguém a apressar-nos.
- Tu queres que isto seja fácil, simples. – indagou,
enxugando as faces ao punho da sua camisola de
lã – Mas não é fácil nem simples.
- Eu sei. – ele disse simplesmente
- Então se sabes, não tens o direito de ficar aí, a
olhares-me dessa maneira e pedires-me algo que eu não te posso dar. Como se
nada tivesse acontecido, como se continuássemos a ser as mesmas pessoas… -
Joana parou para respirar, procurando acalmar o fôlego desarvorado ao mesmo
tempo que novas lágrimas, silentes, voltavam a escorrer-lhe livremente pelo rosto – Nós não somos.
- E tu culpas-me por isso? – portando uma postura
surpreendentemente mais branda e contrastada à que portara apenas à segundos atrás, Ruben
caminhou na direcção dela enquanto a questionava, brandamente, temendo que
qualquer gesto ou intenção sua a assustassem e fizesse afastar novamente de si
– Culpas-me pelo que nos aconteceu? Por não ter acreditado em ti e ter seguido
com a minha vida ao lado de outra mulher? Ressentes-me por me ter tornado nesta
pessoa?
- Eu não alimento rancores, Ruben, tu sabes isso muito bem. –
referiu certeiramente, se havia pessoa no mundo que chegara a conhecê-la tão
bem ou ainda melhor que a sua querida e falecida mãe, essa pessoa era Ruben – O
que passou, passou. E se há algo que não devemos fazer, é viver do passado.
- E aqui estamos nós… - quase pateticamente ele quebrou os
lábios num sorriso de ironia ao destino – Tão perto um do outro, e ao mesmo
tempo tão longe. – rematou desalentado, referindo-se ao achegamento de ambos os
corpos, que então se encontravam novamente tão próximos, em oposição da
terrível distância que lhes separava os corações – Se isto tudo não fosse tão
macabro, teria a sua piada. O que é que nos aconteceu, Joana?
- As nossas vidas mudaram. – sussurrou inebriada, recorrendo
com o olhar aos seus pés ainda descalços, temendo encarar os olhos de Ruben, praticamente
em cima dos seus
- Os meus sentimentos por ti não mudaram. – enchendo o peito
de coragem, ele procurou-lhe a mão fria e pequena, e tomou-a na sua, quente e
aconchegante, apertando-a suavemente – És feliz? Só quero que me respondas a
isto. Aqui e agora, neste mesmo momento tu sentes que és uma pessoa feliz?
Realizada?
Joana poderia mentir e afastar-se dele, seria mais fácil. Não
ia correr o risco de perder o seu coração novamente.
- Eu tenho de ir. – advertiu, sentindo-se completamente
derrotada pelas palavras que teimavam em não querer ser proclamas, dos gestos
que temiam em ser tidos… porém e contrapondo o seu intento, ela não se mexeu e
manteve-se no seu lugar
- Faz isso. – ele suspirou ao fim de poucos segundos, inconformado
– Não te posso prender a um lugar no qual tu não queres estar. Vai. – foi Ruben
a quebrar o enlace das mãos e a dar-lhe novamente espaço para respirar, no
fundo sabia que fazê-la falar sobre os pesares que lhe perturbavam alma, seria
o mesmo que remar contra uma maré revoltada – Eu estou disposto a lutar,
Joana, mas eu não posso lutar sozinho.
- Nunca te pedi que o fizesses. – proferiu de espírito
acobardado, aquando já de costas para ele e de corpo direccionado para a porta
de saída
- Não precisavas. Saber que querias o mesmo que eu,
bastava-me. Mas como dizes, as nossas vidas mudaram, e pelos vistos, os
sentimentos também.
Joana estava prestes a abandonar o quarto quando se sentiu
ser atingida pela frialdade e tristeza na acusação dele, e incapaz de o deixar
ficar com a última palavra, enganado pelo que julgava ser verdade, ela largou a
maçaneta da porta, mantendo-a fechada.
- Eu não gosto quando pões em causa os meus sentimentos por
ti.
- Desculpa? – ela falara tão sussurradamente, que Ruben mal a
conseguiu perceber
- Disse que não gosto quando dúvidas do amor que te sinto… –
desabafou profundamente triste, e mais uma vez rodou os calcanhares na direcção
do par de olhos que colectavam o seu mundo, os dele – …Não depois do que já
vivemos, por tudo o que já passámos. Não é justo.
Recolhendo as mãos nos bolsos, Ruben limitou-se a vergar a
cabeça e a consentir.
- Do que é que tens tanto medo, afinal? Eu só quero que fales
comigo… Do que é que tens medo, Joana?
- Eu não quero que outras pessoas saiam magoadas desta
história por nossa causa. – finalmente, e ao fim de tanto debate interior,
Joana foi capaz de partilhar com ele o que durante tanto tempo a tinha vindo a
perturbar, a razão pela qual optara por manter-se afastada – Se voltássemos um
para o outro, se ficássemos juntos, iriamos por muita coisa em risco… A nossa vida
pública… a tua carreira!
Ruben viu-se forçado a soltar uma gargalhada breve e vazia de
sentimento.
- Tu não fazes mesmo
ideia, pois não? – ele abanou a cabeça, surpreendido por tamanha ingenuidade a
dela
- Não faço ideia do quê?
- Eu arriscaria tudo o que fosse preciso, por ti… Por ti e
pelo nosso filho. – Ruben proferiu sem um rasgo de incerteza a deambular-lhe na
voz, deixando-se emocionar pelo impacto da palavra “filho” que cada vez se
tornava mais presente e real em si – Nada é mais importante para mim do que a
minha família, nem mesmo a minha carreira.
Joana aceitou-lhe as palavras e advertiu o olhar a outro
ponto do quarto que não o rosto dele, incapaz de negar a verdade do seu
discurso, incapaz de negar a ternura dos seus olhos quando lhe expostos a sua
vulnerabilidade.
- E as outras pessoas? Como iam elas reagir a isto tudo? Como
ia ser?
- Quando é que vais tirar essa ideia ridícula da cabeça de que
a felicidade dos outros tem de vir acima da tua? Quando é que começas a ser um
bocadinho egoísta e colocares-te em primeiro lugar? Ou tu pensas que as outras
pessoas pensariam duas vezes no que toca à escolha da tua felicidade pela
delas?
- Não te esqueças que é das nossas famílias que estamos aqui
a falar, dos nossos amigos.
- Os nossos amigos querem que sejamos felizes, estando nós
juntos ou com outras pessoas, e quanto às nossas famílias… Tu sabes que elas
nos aceitam.
- Nem toda a gente… - ela disse atemorizada, recordando
rapidamente o motivo que os fizera estar separados durante quase três anos – O
meu pai… O teu pai… Eles nunca nos irão aceitar. A nossa relação é uma
provocação para eles, Ruben…
- Eu já estou habituado a provocar o meu… - ele sorriu,
encolhendo brevemente os ombros no processo e contagiando-a pelo seu jeito
heróico de ser
Aos poucos, uma por uma, Ruben estava a conseguir quebrar as
paredes que contornavam o coração de Joana, deixando-a sem saída, sem mais
desculpas para continuar a fugir e a esconder-se de um amor que nunca iria
morrer.
- Eu já não tenho forças, Ruben. – fatigada, o corpo dela
gravitou serenamente na direcção do dele, procurando por conforto que sabia
vir nele encontrar – Eu não quero voltar a magoar-me, no que toca a nós… Eu não
vou aguentar. – ela voltou a lacrimejar mas desta vez as suas lágrimas foram
amparadas pelas mãos de Ruben que ternamente lhe acolheram o rosto
- Olha para mim… - pediu num murmúrio, quando deixou tombar a
sua testa na dela – Tu não estás sozinha, tens-me a mim. – ele disse, o seu tom
de voz caloroso, apaixonado – Deixa-me cuidar de ti.
Joana não soube o que dizer e optou por não falar nada. De
testas coladas, narizes acostados, Ruben olhava-me profundamente nos olhos,
acaricia-lhe o rosto olhando para ela – através dela. Ele percorreu-lhe os
lábios com a polpa dos dedos, não uma mas duas vezes. Era como se quisesse
gravar aquele momento na sua memória. Para ele, a sensação da pele de Joana a
fundir-se na sua, enviava os seus sentidos em sobrecarga. Ela era tão suave,
tão bonita. E queria lembrar-se daquele momento para sempre, lembrar-se daqueles
olhos redondos e expressivos fixarem os seus.
Apercebendo-se do quão perigosamente perto os seus corpos se
encontravam, Joana deu um passo para longe dele. Sabia que não podia deixar-se
levar daquela maneira, por muito enublada que a sua lógica tivesse naquele
momento, ela sabia que entregar-se a Ruben seria o melhor e o pior que pudesse
acontecer, e ela não podia lidar mais com o pior. Porém, essa decisão não
partiu dela, e antes que tivesse tempo de pensar em voltar a impor
distância entre eles, Ruben não a deixou fugir… não desta vez.
Ele puxou-a de volta para si, mantendo-a na sua alçada com o
braço a contornar-se a cintura pequena e com a palma da mão, suave,
segurando-lhe o rosto firme, no lugar, de maneira a forçá-la a olhá-lo
novamente.
Ainda à beira de lágrimas, a mente de Joana desenhou um
espaço branco à medida que se sentia afogar-se no seu corpo tonificado. Ruben
baixou a cabeça para que os seus lábios se pudessem encontrar. Ela mal
conseguia processar as consequências que aquele acto traria, mas também,
essa era a última coisa com a qual se queria preocupar agora, antes de ele
lentamente, com cuidado, e oh, sempre tão suavemente, empurrar os lábios nos
dela. E no segredo daquele singelo toque, a realidade abateu-se sobre si.
- Ruben… - chamou por ele num tom tão ofegante, que
Ruben não estava certo se ela estava a protestar ou a desejar por mais
Ele afastou-se um pouco para ler a sua expressão. Lentamente,
Joana voltou a abrir os olhos nublosos, carregados por um amor que lhe voltara a
preencher o peito, e apercebeu-se que também Ruben a fitava com a mesma
intensidade e desejo. Continuando a embalar-lhe o rosto, ele conseguiu sentir a
incerteza e o desespero que ainda vibravam dentro dela, e então ofereceu-lhe um
sorriso meigo, capaz de findar tempestades, antes de se inclinar e voltar a
tomar os lábios dela nos seus.
Ruben beijou-a com confiança tal, que rapidamente a mente e o
corpo de Joana se sentiram levitar, libertando de si qualquer culpa ou
ressentimento. Quando se sentiu ser mais envolvida, contornou-lhe o ombro com o
braço, a mão delicada a acariciar-lhe a parte de trás do pescoço para que
pudesse receber o afecto dele por inteiro.
Recordando-se do quão emocionante era beijá-lo, provar-lhe o
delicioso sabor, Joana passou a língua na boca dele, convidando-a a colidir com
a sua.
O beijo não era urgente como eles tinham imaginado vir a ser, em
vez disso era esperançoso, doce e apaixonado. Ela estava tão envolvida na
intensidade do reencontro das suas bocas, que não tinha um único pensamento
coerente, excepto antecipar por mais.
E enquanto os corpos se fundiam num abraço apertado e os
línguas procuravam por dominância no confronto dos lábios, Ruben sabia que
beijá-la só, não iria ser suficiente. Joana sabia-o também.
E como o prometido é devido, aqui fica a
primeira parte deste capítulo.
Desculpem esta imensa demora, não quero
voltar a deixar-vos por tanto tempo.
Espero que a leitura esteja do vosso agradado, e por
favor, deixem-me as vossas opiniões :)
Posso dizer que as surpresas desta história só vão aumentar daqui para a frente.
Um beijinho grande,
Joana