quarta-feira, 25 de julho de 2012

Capítulo 9 - Doce tentação (Parte II)















Na manhã seguinte, promulgada pelas horas matutinas, Joana ainda dormia tranquila, de sonhos completamente distantes e divergentes à sua vida real, que subitamente e quase sem ter dado conta, se havia tornado numa autêntica montanha russa, onde os pontos baixos e reviralhos, eram sem dúvida, os mais abundantes.
Porém, foi só à segunda tentativa de chamada, que o seu telemóvel anunciou sobre a mesinha de cabeceira, que ela se mostrou disposta a atender, obrigando a abjurar-se do seu estado estranhamente repousante de calma dormência, que levava há horas. No visor do Blackberry preto, podia-se ler “Sara a chamar…”, mas tal era a preguiça e sonolência a que estava fatalmente remetida, que atendeu a chamada sem ter a preocupação de olhar o destinatário da mesma.

- Sim? – atendeu de clamor sumido e rouco, deixando-se permanecer exactamente na mesma posição que havia despertado

- Bom dia, bom dia, boneca! – numa clara disposição leviana, a voz de Sara deixou trespassar todo o seu alento que se encontrava leve e cadenciado

- Ah, Sara, és tu! Bom dia… - de telemóvel junto ao ouvido e ainda de olhos fechados, impulsionou-se para trás, esforçando-se a pôr de parte a preguiça que tinha, para se sentar à cabeceira da cama     

- Isso é que é animação! Por esse entusiasmo todo, estou a ver que preferias que não fosse eu…

- Oh, não sejas tonta… Quando atendi a chamada não vi quem era! – um pequeno sorriso formou-se nos lábios mas assim que abriu apenas um olho para, pela primeira vez naquele dia, ter a visão matinal do mundo, uma pequena careta de incomodo formou-se no seu fáceis, assim que a luz forte do sol já pregoado no céu, reflectiu raios ténues por entre as brechas do cortinado rastejado no chão, da ampla janela que se estendia à sua frontaria 

- Desculpa se te acordei… - ressentiu-se a pobre Sara, deixando que o arrependimento por ter feito aquela chamada precoce, lhe abatesse a alacridade madrugadora  

- Não, não faz mal, amor… - comprimiu os ombros despoticamente, não abonando qualquer gravidade ao caso – De qualquer das maneiras também te queria ligar por causa daquela situação de ontem… Acho que te devo uma explicação! – em desistência perante a fadiga física e emocional que lhe trespassava o corpo, deslizou novamente para baixo dos lençóis e encaixou de novo a cabeça sobre a almofada

- Pois, eu também queria falar contigo… - o tom uniformemente hesitante que usou, foi o suficiente para despoletar em Joana, uma tirada de curiosidade e preocupação 

- Queres falar comigo…? Aconteceu alguma coisa?

- Não! – disse de imediato, para logo após um curto momento de reflexão reconsiderar uma resposta mais assertiva – Quer dizer… aconteceu, mas não é nada com que te devas preocupar… acho! – ditou numa afirmação não muito segura, deixando que a última palavra lhe saísse pela abertura dos lábios já num murmúrio, que deu graças a Deus por ter passado despercebido à amiga

- Hum, está bem… - embora não totalmente convicta da resposta um tanto ou quanto forçada de Sara, Joana conseguiu fazer com que o seu estado súbito de preocupação repousasse e o coração abrandasse a sua batida – Mas queres combinar alguma coisa para agora?

- Sim, estava a pensar em irmos até lá em baixo tomar o pequeno-almoço… O restaurante parece-me ser um sítio calmo onde vamos poder falar à vontade, por isso, se também te parecer bem… 

- Sim, parece-me bem… Parece-me muito bem! – falou com um rasgo nos lábios, pela concordância imediata de planos – Podemo-nos encontrar então no átrio junto ao restaurante?

- Sim, para mim está óptimo aí! Consegues estar pronta por volta das oito e meia?

- Ah… - esticando o braço de modo a chegar ao relógio de pulso que tinha em cima da mesinha de cabeceira, na expectativa de ainda lhe sobrar um tempo recheado para se preparar antes de sair – Sim… Vinte minutinhos chegam-me! É só tomar um duche rápido, vestir qualquer coisa e desço!

- Pronto… Então está feito, encontramo-nos lá!

- Sim, encontramo-nos lá! – anunciou em contundência, afastando os lençóis e erguendo-se da cama – Vou então arranjar-me!

- Está bem, meu amor… À hora combinada, lá estarei!

- Sim, princesa! Até já… Um beijo!

- Outro também para ti, pequenina! Até já! – pouco depois, o ruído do outro lado da ligação reduziu, e a chamada foi terminada



***



Instalada no piso inferior, encontrava-se Sara, que depois do telefonema que fizera no alpendre do quarto, regressara e voltara a deitar-se na sua cama. Não conseguira ter uma noite tão tranquila assim, tal como queria e tinha esperado… Aquilo que tinha visto e ouvido na noite anterior, aquando, depois de um jantar tardio e de um passeio feito pelo jardim do hotel, regressara ao seu quarto, trouxera-lhe a desordem aos pensamentos e ideias, que até à altura não se encontravam tão compostos e integrais como deveriam, para tirar as conclusões mais asseveradas.
Por um lado sentia o peso da culpa por ter ouvido provavelmente, uma conversa da qual mais ninguém poderia ter dado conta, uma conversa de total foro pessoal, mas por outro também se sentiu na curiosidade e necessidade de o fazer, visto que uma das pessoas envolvidas lhe eram bem mais próxima, do que alguma vez poderia ter imaginado.


*****
- I’m sorry… - desculpou-se de imediato o rapaz, que acidentalmente tinha chocado consigo num mero toque de raspão no ombro, por componente das suas longas e rápidas passadas, impostas na direcção oposta à sua

- It’s okay! – respondeu-lhe com um sorriso, que não teve tempo de ser retribuído, devido ao imponente percurso que ele persistia em percorrer no menor tempo possível, com vista a um dos elevadores

Contudo, Sara não deu importância, continuou a percorrer o corredor e só parou quando chegou junto da porta do seu quarto, pronta para vestir o pijama, deitar na cama e entregar-se totalmente a mais uma noite de sono que pretendia passar de fiada e sem quaisquer interrupções, mas uma voz, uma voz que lhe era um tanto familiar e que se arrastou por quase todo o corredor, obrigou-a a adiar essa vontade apenas por mais uns minutos.

- Ruben? – ouviu em proclamação grave, nitidamente um tom de homem, mas não se atreveu a olhar…  continuou antes a procurar o cartão do seu quarto, perdido algures dentro da mala – Ruben! – deferiu a insistência, e foi somente num olhar fugidio, que se poderá dizer ter sido lançado quase sem intenção, que percebeu que aquela interjeição era dirigida ao rapaz que tinha ido contra si – que ela ainda não conhecia, mas que era ou melhor, fora muito próximo à sua melhor amiga.

- Rui… - finalmente Ruben abrandou a passada, acabando por findar com o percurso que já se encontrava tão curto, para se ver obrigado a parar daquela maneira

Sara conhecia aquele nome, aquela voz, aquele semblante, mas de onde? Rui (!) Felizmente que não levou muito tempo até que a sua memória a conduzisse ao momento em que o vira pela primeira vez. É claro! Era o mesmo homem que estivera há algumas horas atrás com Joana, no átrio de entrada, e a quem ela chamara de padrinho, era o mesmo homem com quem se cruzara em Nova Iorque inúmeras vezes, nas suas visitas à amiga íntima! Claro, claro… só poderia ser ele, e mais uma vez ao olhá-los discretamente, pôde certificar-se disso mesmo! Sara era perita em fixar caras novas, e aquela cara e aquela voz, não saíram tão rapidamente da sua cabeça assim como entraram. E o tal de Ruben… Desse estava certa de que nunca o vira antes, mas conhecendo ele Rui, o Dirigente Desportivo da equipa encarnada, ele não poderia ser só um hóspede vulgar do hotel, como lhe ocorreu primeiramente, mas também um dos jogadores de futebol ali instalados… Mas tudo isto, claro, em suposição, pois vivendo e estudando em Nova Iorque, estando assim demasiado tempo fora de Portugal e não sendo uma seguidora nem tão pouco amante de futebol, era natural que não o conhecesse, mas, talvez, isso tivesse prestes a mudar…

- Pensava que já estavas no teu quarto… - disse, passando exactamente ao mesmo tempo nas costas de Sara

- E estava, mas… Vim cá fora um pouco, esticar as pernas! – ela sorriu para si mesma ao ouvir a resposta dele, ainda nem o conhecia e o que dissera soara-lhe de imediato a desculpa esfarrapada

- Sabes que já é tarde, e acredito que o mister não iria achar piada ver-te acordado a uma hora destas, e a vaguear pelos corredores…

- Eu sei, Rui, mas precisava mesmo!

- E é só isso ou precisas de mais alguma coisa? – Rui já o conhecia bem demais, pelo menos conhecia-o o suficiente para que facilmente lhe conseguisse desvendar alguma manha, como era o caso, e Ruben sabia disso, e como tal, sabia também que não valeria a pena começar a construir uma teia em redor do assunto, que de uma maneira ou de outra, mais cedo ou mais tarde, iria ser descoberta

- Preciso… Preciso de ver uma pessoa! - desabafou, levando voluntariamente as suas mãos ao encontro dos bolsos dos jeans, e o seu olhar a estacar sobre a alcatifa bege que revestia todo o corredor

- Merda…! Onde raio meti a porcaria do cartão? – proferiu Sara, num sussurro de puro fatídico quase inaudível, pela busca que até então não tivera cessado pelo cartão electrónico do quarto

- Acho que nem me vou dar ao trabalho de tentar adivinhar quem seja essa pessoa… - asseverou, sabendo ser ele a única pessoa que da família de Joana,  havia testemunhado o que há tempos passados havia sido um grande amor na vida da sua querida afilhada e daquele homem novamente apaixonado, que permanecia na sua frente

- Eu preciso vê-la, Rui… Preciso de falar com ela! – indagou numa súplica, acercando-se de Rui e começando a abrir o jogo com ele, jogo esse que ainda há pouco havia começado, mas que já se adivinhava bastante perigoso

- Finalmente… - ela suspirou de alívio quando, no bolso interior da sua mala, deu com o tão procurado cartão, que logo posicionado entre o polegar e indicador, se encaixara perfeitamente na pequena entrada rectangular junto à maçaneta, destrancando assim a porta

- Não sei se isso será o melhor para ti e para a Joana, Ruben… - preveniu, sabendo que desse encontro e dessa conversa que Ruben queria ter com a sua afilhada, pudessem surgir dissabores que viessem a abater-se e a magoar ambos os lados   

No instante em que Sara ouviu aquele nome, estacou. Apercebeu-se então de que a razão daquela conversa, que por obra do acaso começara a ouvir, era a sua grande amiga, a sua maior confidente… É certo que não poderia ter certezas, mas tudo indicava para que dessa maneira fosse. Entrou no quarto e encostou a porta, deixando-a apenas aberta por uma brechazinha da qual ela pudesse assistir a todo o decorrer da situação. Agora conseguia ver tudo predisposto num novo plano… Viu que Ruben e Rui conversavam num frente a frente, distinguindo cada gesto que cada um incorporava, bem como cada palavrinha prenunciada por eles, visto que a porta do seu quarto se distanciava a uns meros cinco metros.

- É o melhor, Rui… é! Eu já esperei demasiado tempo por isto, não posso nem aguento esperar mais! – por aquela postura, por aquela franqueza na voz, por aquele olhar brando e suplicante, ele percebeu o quanto aquilo era importante para Ruben, para a sua vida, para o seu bem-estar com os outros, mas principalmente, para o seu bem-estar consigo mesmo – Eu preciso de pôr os pontos nos i’s… Preciso de esclarecer tudo de uma vez!

- Eu pensava que vocês já tinham esclarecido tudo, quando…

- Eu sei, eu pensava o mesmo, mas… - Ruben antecipou-se a interrompê-lo, antes que ouvisse o que não queria e no qual se martirizara durante tanto tempo, sem saber o verdadeiro porquê de tudo - … mas ela voltou, e isso… Isso veio mudar tudo!

- Tudo, o quê? – embora tivesse feito a pergunta, Rui já fazia uma ideia da resposta que estaria por trás, mas não quis arriscar demasiado

- Sei lá… Tudo! A minha vida… Tudo! – teve que sintetizar pois sem saber o que de concreto podia dizer, Joana voltara a trazer-lhe algo com uma grandiosidade tão indescritível, que foi impossível poder exprimir… e foi então, que ao revelar-se, um sorriso triste surgiu na puerícia dos seus lábios – E é por isso que eu tenho tanta necessidade de falar com ela!

- Eu entendo-te, a sério que te entendo, mas talvez não seja boa ideia vocês falarem hoje… Talvez amanhã seja melhor! – mostrando ser tão tolerante e compreensivo quanto conseguia, Rui tentou chamá-lo à razão, fazendo-o ver que aquela não era a altura certa para resolver o que fosse, por muito que também ele o desejasse

- Porque não hoje? Quanto mais rápido resolvermos isto, melhor!

- A rapidez só vai atrapalhar, Ruben… Espera que o destino traga até a ti o momento mais oportuno para vocês falarem, para acertarem o que tiverem que acertar!

- Eu já deixei de acreditar no destino… - o seu tom de voz diminuiu drasticamente e foi notória, a mágoa que o levou a adoptar uma pose altamente derrotada

- Quem sabe se não foi o destino que te trouxe a Joana de volta…?

- Quem sabe se não foi o destino que a roubou de mim?! – contradisse prontamente, deixando que o seu olhar assoberbado por uma culpa grotesca que sentia, mas que no entanto não era sua, recaísse ao olhar directo do segundo pai de Joana

- Tenta ao menos ser razoável… Já é tardíssimo, e mesmo que quisesses procurá-la, tenho a certeza que na recepção não te diriam o número do quarto dela, nem qualquer outra pessoa! – elucidou-o, tentando levá-lo a ponderar melhor a situação que tinha em mãos

- Sim, nisso tens razão…

- Vês? Ouve então o que eu te digo: Volta para o teu quarto e descansa… É o melhor que tens a fazer neste momento! Depois falas com ela… Amanhã é outro dia! – mais uma vez a sua complacência em prol de uma situação tão delicada como era a de Ruben e Joana, veio ao de cima, zelando pelos sentimentos de ambos, pois foi o único que provou dos dois lados da moeda, e melhor do que ninguém sabia o quanto eles haviam sofrido com o fim tão ingrato daquela relação

- Está bem… - cedeu, seguindo o conselho sincero que lhe tinha sido oferecido pelo colega de profissão e também por um grande amigo, que Rui não só já havia mostrado, como também já havia provado ser – Mas amanhã falo com ela sem falta! Sem mais rodeios ou contratempos!

- Tenho a certeza que sim! E, Ruben, quero que saibas uma coisa… Além de seres um bom profissional, és também um bom homem e tens todo o meu respeito! – com a mão esquerda fisgada no bolso das calças, Rui elevou a direita e sobrepô-la ao ombro de Ruben, apertando-o ligeiramente – Por isso, seja qual for o ponto da situação que fique assente entre ti e a minha afilhada, eu vou apoiar-te, tanto a ti como a ela, como sempre fiz…

Do outro lado da porta, Sara continuara atenta a ouvir a conversa, até ao que julgara ser o bastante. Fechou a porta com muito cuidado para não fazer surtir qualquer ruído que a denunciasse, e assim que tombou de costas na mesma, um perfeito “o” formou-se na sua boca, cobrindo-o depois com a mão. Estava surpreendida, na verdade estava bastante surpreendida com tudo o que ouvira e naquele momento não soube bem o que assibilar, mas se alguma dúvida ainda restava de que ambos haviam conversado sobre Joana, a mesma tinha sido abolida no instante em que escutara aquelas últimas palavras.

*****


Afadigada pelas tantas voltas ter dado à cabeça na procura incessante de respostas, que não tinham como chegar às suas mãos, Sara afastou os lençóis frescos de Verão, que até então ainda lhe cobriam somente as pernas, e ergueu-se da cama, pronta para começar um novo dia. Tomou um duche de dez minutos e vestiu uma roupinha fresca tal como a época mais quente do ano o apelava, ficando desta maneira pronta para sair e descer até ao rés-do-chão.

- Wait! Hold the elevator, please! – gritou com a mão erguida no ar, iniciando uma corrida frenética que só cessou na sua trespassagem pelas portas do elevador, seguras pela mão do rapaz que atendeu o seu pedido – Thanks!

Num gesto a que se já tinha habituado, esticou o indicador no ar para pressionar o número do piso onde pretendia sair, mas este reteve-se no mesmo instante que os seus olhos perceberam que a luzinha já estava acesa, tendo sido o botão premido anteriormente.
Recuou levemente afastando-se das portas, e quedou-se junto a uma parede do cubículo oscilante. Pela primeira vez desde que entrara, conseguiu dar conta das pessoas que seguiam consigo… Cinco, apenas, e todos eles homens, acompanhados cada um por um saco de desporto enorme que seguravam ao ombro. Adivinhou rapidamente que se tratavam de jogadores de futebol, que vira chegar na tarde do dia anterior, e… Sim! No meio dos outros quatro, deslindou Ruben, que acidentalmente conhecera há um par de horas, e que o qual mantinha uma conversa amena e simultaneamente descontraída com um jogador de sotaque espanhol. Os olhares dos dois cruzaram-se numa curtíssima fracção de segundos, e pôde dar graças a Deus por ele não a ter reconhecido. Logo que o elevador terminou o seu percurso, Sara saiu disparada, sem mais olhar para trás e seguiu o seu caminho para o local de encontro, combinado com Joana que para variar, estava atrasada.



***



- Desculpa a demora… Já estás aqui há muito tempo? – finalmente Joana deu um sinal de si, aproximando-se a passo célere e de sorriso perfeitamente implantado no rosto, desconhecedor de tudo aquilo que ainda a esperava

- Olá, amor! Não, não muito… dez minutitos, p’raí! - Sara retribui o mesmo sorriso, partilhando com ela dois beijinhos no rosto

- Vamos então entrar?

- Hum, hum! – acedeu uma resposta positiva, reforçada pelo oscilar da cabeça – Vamos!

- Onde queres ficar? – questionou, logo que enveredaram em simultâneo pelas portas franqueadas do restaurante, procurando por uma opinião que também fosse do seu agrado

- Pode ser naquela ali, junto da janela? – sugeriu Sara, com o seu indicador bem arrebitado no ar, apontando para uma mesa de quatro lugares bem apelativa junto às airosas ventanas, que também ascendiam caminho à esplanada

- Sim, claro! – os seus lábios retalharam um sorriso puramente afável, que nem mesmo ela percebia como tão bem o conseguia forçar e manter tão naturalmente, face aos dilemas que iam ressurgindo na sua vida a uma velocidade furiosa, bofeteando-a sem pungir dó ou piedade

Com a mala segura entre a palma das duas mãos, e antes de se apressar a dar um passo na direcção do lugar pré-seleccionado, num gesto desprovido de qualquer intenção maliciosa, vagarosamente o seu olhar varreu todo a zona, que àquelas horas da manhã, não estava a ser tão frequentada como estaria provavelmente nas duas horas seguintes. Mas, inesperadamente, as suas órbitas cruzaram e acabaram por se fixar num único ponto daquele amplo espaço… Instalada na outra ponta do buffet, encontrava-se toda a comitiva encarnada, distribuída maioritariamente em grupinhos de seis pelas mesas aglomeradas a uma das extremidades. Até ao seu olhar reconhecer o único homem que mexia consigo de uma maneira completamente desproporcional, pelas mais diversas e melhores razões, foi uma questão de instinto e místicos segundos. Na extrema lateral de uma mesa, frente a Javi e ladeado por David, lá estava Ruben, que por entre uma conversa que à primeira vista julgara bastante agradável visada pelos risos que se iam escutando de parte a parte, desfrutava da primeira e mais reforçada refeição do dia, antes do treino que já se adivinhava puxado e rigoroso para os rapazes. Foi então a vez do seu interior se manifestar, por ver aquele quadro exposto na sua frente… em grau ascendente, conseguiu sentir a sua pulsação por vergência do coração que começou a bater mais forte e mais depressa, que nem um autêntico louco atrevido, por talvez, ter reencontrado aquele que fora desde sempre o seu único porto de conforto, amor e paz.

- Ou então também podemos ir para a esplanada, se preferires… - apercebendo-se de todas as atenções da melhor amiga, centralizadas somente num ponto que ela enxergara no mesmo instante, ela voltara a opinar, de maneira a ver Joana vitimada ao menor desconforto possível

- Não, nós ficamos aqui! – finalmente os seus olhos fugiram do panorama onde, principalmente focara aquele que fizera o seu pequeno mundo voltar a girar, para assentarem nos Sara, acompanhados por uma resposta segura e irreversível

Foi ela a tomar ordem de direcção até à mesa, repuxando a cadeira posicionada estrategicamente no lado em que não pudesse vê-lo de frente… Não iria conseguir aguentar todo o tempo da refeição sem pelo menos olhá-lo de realce umas quantas vezes, para matar as saudades… para matar as saudades do rosto dele, da sua simplicidade, dos seus sorrisos e da alegria, alegria essa, da qual ela não fazia parte, não mais. Entalhou as alças da mala na cadeira que elegeu para sua e sentou-se, já não ia voltar atrás na decisão que tomara voluntariamente.

- O que é que queres comer, amor? – perguntou-lhe num tom afável, muito próprio de Sara, sentada na sua frente e estendendo o guardanapo de pano no colo

- Não sei, qualquer coisa… - parece que as ideias, bem como os apetites de Joana, se tinham dispersado numa rápida fracção que lhe roubou a capacidade de pensar direito, levando-a a encolher subtilmente os ombros de forma desprendida – O que tu escolheres, para mim está bem!  

Dez minutos foram o tempo suficiente para fazer a escolha, solicitá-la ao empregado e serem servidas pelo mesmo, guarnecendo este a mesa com as peças mais variadas da fruta da época, um pratinho de croissants, uma jarra de sumo natural e um bule de café bem forte.
Começaram a comer sem um tema de conversa, que pudessem discutir. Não que não tivessem nenhum ou que não soubessem o que falar, mas sim por não saberem como começar a fazê-lo. Foi então que, depois de lançar um olhar à mesa do fundo pertencente aos jogadores, e que passou completamente absorto da atenção prestada por Joana, que Sara se armou de coragem em findar com o silêncio, talvez, na pior das maneiras que o podia ter feito.

- Ontem conheci o teu ex-namorado… - quebrou a camada de gelo que até à altura envolvia o silêncio, lançado um comentário das conclusões que ela própria tinha retirado depois da noite anterior, balbuciando-o com uma naturalidade peculiar enquanto barrava uma pequena porção de compota frutada no seu croissant 

- Tu o quê? – as palavras saíram-lhe mais estranguladas do que esperava e o tom elevou-se por si só, deixando que uma pequena dose do café que vertia sobre a sua chávena, se declinasse inconsequentemente sobre a toalha imaculadamente branca que revestia toda a mesa de pequeno-almoço – Bolas! – praguejou irritada consigo própria, pelo descuido que não conseguiu evitar e tentando ensopar depois, os sobejos da bebida com os guardanapos de papel oferecidos pelo empregado

- Quer dizer, não o conheci conheci…! Cruzámo-nos… - corrigiu-se, mostrando nos lábios um sorriso desafiante e continuando a dar enredo a um tema, que iria ser debatido entre ambas nos minutos seguintes

- Do que é que estás a falar?

- Daquele borracho ali ao fundo… - sujeitando-se a um simples acenar de cabeça que foi rapidamente direcionado a Ruben, e fez com que o olhar de Joana o acompanhasse, para se arrastar até ao fácies que lhe parecia mais perfeito do que nunca, do homem que foi capaz de conquistar novamente o seu coração

- O Ruben… - proferiu o nome dele num sussurro esvoaçante, enquanto ainda o mantinha focado bem no ponto fulcral de um mundo que voltara a querer chamar de seu

- Já sei quem ele é… Agora sei (!) E sim, já me tinhas contado as razões pelas quais que te mudaste para Nova Iorque, e que tinhas deixado o teu namorado pelas razões que também já sei! – enumerou calmamente, testemunhando todos os pontos mais relevantes, sucintos na vida da sua melhor amiga, que desde o início estivera a par – Mas não fazia ideia que ele era um futebolista famoso e ainda por cima, é próximo da tua família… Porque não me contaste nada antes?

- Eu ia contar-te… - ela voltou a rodar levemente o rosto, mas desta vez para expô-lo na frente do de Sara – Era sobre esse assunto que queria falar contigo!

- Então, então espera… Foi por causa dele que ontem ficaste daquela maneira? Que reagiste daquela forma? – uma nova expressão tomou conta dos reflexos traduzidos no rosto dela, por duas finas linhas traçadas na testa e o vergar das sobrancelhas, que lhe revelaram o seu novo estado de estranheza e curiosidade – Não querias que ele te visse, foi isso?

- Não foi bem isso, quer dizer, talvez até tenha sido… Ai, já não sei! – na ordem de palavras contraditas, Joana deixou-se emaranhar na confusão de pensamentos e ideias que até altura tinha dado como lúcidos na sua cabeça, mas que agora não passavam de simples controvérsias – As coisas tinham mudado muito quando regressei a Portugal e o voltei a encontrar… Já nada era como dantes, algo que eu não tivesse já à espera claro, mas até mesmo ele estava mudado… muito! – ela suspirou pesadamente, sabia que ia voltar a tocar na ferida, que em nome do destino fora reaberta – É uma história longa e complicada, Sara!

- Eu não vou a lado nenhum… – disposta a ouvir tudo o que nos últimos meses lhe tinha sido ocultado, Sara predispôs o seu croissant sobre um pratinho, interrompendo por instantes a sua refeição – Tenho todo o tempo do mundo para ouvi-la!

- Eu não sei se… - redutível a adiar aquela conversa por mais algum tempo, Joana mostrou-se hesitante em começa-la, algo que Sara se apressou a contrariar

- Joana, conta-me… Por favor! – quase que suplicou, convicta a ouvir a sua história, de maneira a ajuda-la a pelo menos amenizar todas as dores e mágoas dissipadas no coração, deixadas pelos destroços insustentáveis de um passado

- Então foi assim… - uma respiração temorizada soltou-se dos seus pulmões, para dar então início a uma narrativa que se mostrava difícil de ser ditada

Embora houvesse alturas em que as palavras lhe custassem mais a sair, devido às várias situações e conflitos que debatera com ele, Joana acabou por lhe contar tudo o que havia para saber. Desde o desprezo, facultado por todo o desgosto com que Ruben a tinha recebido quando a voltara a reencontrar pela primeira vez no Caixa, no fim de mais um dia de treino, até às últimas palavras por ele preferidas, nas garagens do Colombo daquela tarde.
Do princípio até ao fim, Sara manteve-se o mais atenta possível a ouvi-la, mas não evitando interrompê-la algumas vezes, de maneira a esclarecer-se o mais que pudesse e conseguisse, e mostrando uma nova expressividade a cada nova vírgula e parágrafo acrescentado ao relato prescrito de um coração perdido.

- Então e agora, o que está a pensar fazer? – não se demorou a perguntar, logo que os largos minutos que Joana disponibilizara a falar, cessaram

- É essa mesma pergunta que eu faço a mim mesma, todos os dias quando acordo! – um leve sorriso demarcado por toda a falta de alento que sentia, pungiu-se no berço da sua boca, não deslocando por um segundo, o olhar das mãos que tinha pousadas no seu colo – Talvez não tenha que fazer nada… Prefiro deixar tudo exactamente como está, do que levantar ainda mais véus que não quer ser desfechados!

- Mas o que é que sentes realmente? Voltaste-te a apaixonar por ele? É isso que estás a querer dizer?

- Eu não estou a querer dizer nada, Sara… E se não te importares, eu vou saltar essa pergunta! – não que não soubesse já a resposta, como é evidente e está bem claro para todos, mas prenunciá-la com todas as letrinhas para uma outra pessoa, tornaria esse sentimento mais real, mais verdadeiro, e isso Joana ainda não estava disposta a fazer… assim como não estava disposta a magoar-se de novo

- Tu vê lá o que arranjas para a tua vida, amor! O tipo até pode ser bem giro e interessante, mas vai casar! – era este o outro lado de Sara… embora fosse uma mulher também apaixonada, bem como um porto seguro de carinho e paz que Joana poderia sempre encontrar nela, o seu forte racionalismo fazia-se vencer pela maioria das vezes, na batalha mais difícil de travar: a do amor

- Não ouviste o que eu disse? O Ruben deu um tempo ao noivado… Pode muito bem não chegar a casar! – ripostou, não preparada o suficiente para crer e se consciencializar, da verdade que mais lhe custava ouvir, mas que de qualquer das maneiras ela teria de saber respeitar

- E tu acreditas nisso? Se ele não quisesse casar, acabava logo com tudo de uma vez e pronto!

- Talvez esteja só confuso… - disse sucintamente, tentando dar justificação àquilo que não conseguia aceitar, mas que Sara fez questão de deixar bem claro

- Confuso? Confuso com o quê, Joana? – um risinho de incerto sarcasmo foi solto entre a abertura dos seus lábios naquele instante, provocando ainda mais incertezas em destorço da pobre amiga

- Ouve, eu não quero continuar a ter esta conversa, está bem? Com tudo isto já tenho a cabeça às voltas, e tu não estás a ajudar! – ultimou, numa convicção forte, porém triste, que não dava espaço a perguntas às quais ela não tinha como, nem se sentia capaz a responder

- Pronto, desculpa… - num tom de voz culposo, Sara reconheceu que não deveria ter dito tudo aquilo à queima-roupa, quando a amiga ainda se mostrava tão frágil e insegura perante toda aquela situação – Mas tu já sabes como eu sou! Fico sempre de pé atrás quando ainda não conheço bem uma pessoa o suficiente para poder confiar nela! E sou frontal… bem, às vezes até frontal de mais, mas quando o tenho dizer digo e pronto!

- Tudo bem, Sara… Já percebi!

- Eu só estou a tentar zelar pelo teu bem … Não quero que te magoes! – a sua mão deslizou sobre a mesa e só travou quando apertou a de Joana, tentando transmitir-lhe o máximo de ânimo possível, gesto ao qual ela respondeu com um suave e discreto sorriso, amostra de desculpas aceites

Sem mais tocarem no assunto, deram finalmente continuação à mais importante refeição de todo o dia, mas foi algo que ainda não tinha sido esclarecido, que obrigou Joana a decair e voltar a página já virada, procurando uma explicação em Sara, que com certeza não seria difícil de ser dada.

- É verdade… Ainda não me disseste com descobriste o… Ruben... – inquiriu, tentando trespassar a maior normalidade, que no fundo não detinha, estendendo o corpo sobre a mesa de forma a alcançar uma peça de fruta

- Acho que foi mais ele que me descobriu a mim…

- Como assim?

- Então, parece que os jogadores estão instalados no mesmo andar que eu, e ontem à noite quando ia para o meu quarto, não sei bem de onde é que ele apareceu, mas a verdade é que chocou contra mim! Entretanto apareceu o teu padrinho, eles ficaram a falar e pelo que os meus ouvidos perceberam, o tema da conversa eras tu… - explicou calmamente, pousando seu o copo de sumo já vazio sobre a mesa, no qual acabara de dar o último trago – E daí até descobrir que era ele o teu ex, foi uma questão de saber encaixar as peças do puzzle.

- Espera, espera… - o seu indicador ergueu-se no ar, em prepotência de um ponto que ficara para trás e não fora devidamente esclarecido – Disseste que o Ruben e o meu padrinho ficaram a falar sobre mim?

- Hum, hum! E pelo que eu também percebi, ele ia a ver de ti, o teu padrinho é que o impediu! – acrescentou, fazendo aumentar em Joana, somente a intriga e admiração – E se ainda não estas disposta a encará-lo, sinceramente, se eu fosse a ti preparava-me, porque quando o Ruben conseguir a oportunidade perfeita, vai procurar-te e vai querer falar contigo!

Ao ouvir tal discurso, um pequeno mas forte aperto no peito, suprimiu os batimentos cardíacos de Joana, que por uma fracção de segundos lhe roubou uma qualquer reacção de resposta. Não foi capaz de verbalizar nada assim como também não perguntou rigorosamente nada. Quedou-se em silêncio e concentrou-se unicamente em si… Pressentia que de alguma maneira, seriam as respostas a virem ter consigo e não o contrário, e isso iria acontecer brevemente… Muito brevemente e muito mais cedo do que todos esperavam.
Sentados à mesa na outra ponta da sala, ainda permaneciam os jogadores, compartilhando durante todo o tempo, conversas ligeiras e sobretudo desanuviadoras, que sempre encontravam como refugio para, por vezes, fugir à fadiga psicológica do trabalho no entanto já antecipando o fim da refeição.

- Já viu quem tá ali? – murmurou num segredo recatado, David, que lançou ao ouvido de Ruben, sem tirar uma única vez os olhos ao corpo da mulher que logo à primeira vista, sabia pertencer a Joana

- Onde? – menos discreta foi a pergunta imediata de Ruben, intencionada por todos os seus sentidos que deram prontamente o alerta

- Tente ser discreto e não dê bandeira pra ninguém topar… - avisou-o primeiramente, antes que os amigos e colegas de profissão que também se encontravam na mesa junto deles, se apercebessem da pequena novidade presente no restaurante – Olha ali naquela mesa do fundo, sentada na frente da moça loira…

Os seus olhos seguiram então o caminho oblíquo traçado pelos de David, e somente findaram aquela procura, quando assentaram no conforto da inesperada mas perfeita imagem que tinha perante si. Até à altura ainda não dera pela presença da mulher de que agora estava certo ser a única possuidora do trinco secreto para a sua felicidade, e foi-lhe inevitável controlar agitação desregulada e contida no lado esquerdo do peito, quando o seu coração que havia decidido por ele cacetear todo o sangue nas veias com toda a força, como um doido desmesurado. Sorriu. Sorriu pela primeira vez naquele dia, com um rasgo de lábios sublime e verdadeiramente esperançoso, de ver cada vez mais perto de si, a oportunidade de voltar a ser feliz.

- É a Joana… - confirmou tanto a si como a David, não se conseguindo livrar daquele sorriso pelo qual era tão bem conhecido entre todos

- É… Parece que é ela me’mo! – gracejou, mastigando a última dentada que dera na maçã polida pelo vermelho da madurez, que segurava entre o indicador e polegar, prosseguindo depois com o seu discurso – Ontem caí na cama e ferrei no sono… nem dei conta de cê voltar no quarto! Consigo falar com ela?

- Não! – respondeu sem meios rodeios, dando depois um sorvo na sua chávena de café

- Não? Como não? – uma lividez de estranheza, apoderou-se do tom de voz de David que se tornou incrivelmente mais agudo, por esperar a consolidação da relação dos dois amigos mais próximos, algo que para sua surpresa, não se veio a suceder

- Puto, passa-me o prato das torradas, se faz favor! – pediu educadamente a Savi, tendo este o pratinho mesmo na sua frente

- ¿Qué? – numa expressão engraçada de uma ignorância pacífica, Savi naturalmente não havia percebido o pedido de Ruben, que ao contrário do que se esperava, não tardou em ser atendido ainda assim

- Deixa estar, não te incomodes… - ripostou numa clara locução de um gozo teatral, que levou os rapazes que estavam na mesma mesa e que se aperceberam da interjeição, a gargalhar levemente, para depois se levantar ligeiramente e esticar o braço sobre a mesa, para chegar assim às torradas – E não, não falámos porque entretanto o Rui apareceu e já não deu pra ir procura-la! – respondeu serenamente a David, logo assim que teve oportunidade e não se mostrando tão afligido com seria esperado da sua parte, pelo tão desejado encontro, que fora adiado uma vez mais

- Cês não falaram, não se acertaram, e você tá aí assim… Numa boa?

- Sim… Porque razão não haveria de estar? – aquela pacificidade toda e a descontracção que chegava até mesmo ser irritante, estavam a deixar David ligeiramente arreliado, face à troca da urgência que Ruben lhe mostrara em querer esclarecer tudo com Joana, na noite anterior, pela calma que o havia apoderado por completo

- Porque é que tenho a sensação que não tá contando tudo? Cê tá escondendo alguma coisa, manz…!

- Oh, lá estás tu com as tuas cenas do sexto sentido… Deixa isso para as gajas, puto! – espicaçou, fazendo vir ao de cima mais um momento facultado pela sua boa disposição, e fazendo embater levemente as costas da sua mão direita no peito de David

- Ah, não… Eu conheço essa sua expressão, velho!

- Qual expressão?

- Essa que tá fazendo agora! – asseverou com toda a certeza que tinha e olhando-o detalhadamente o rosto do melhor amigo, denunciante das suas intenções – Cê tá com cara de quem vai aprontar alguma coisa!

- Oh David, relaxa, está bem? Eu não vou fazer nada… - afirmou, dando a primeira dentada na torrada crocante, barrada com uma fina camada de manteiga

- Não vai fazer nada? Nem tentar falar com a Joana?

- Não te preocupes, hoje é um longo dia e eu vou falar com ela, disso podes ter a certeza! – aquela segurança, aquela firmeza… David sabia que Ruben tinha um trunfo debaixo da manga, e tinha a certeza de ser esse o trunfo que  de uma maneira ou de outra, o levaria até Joana

- No que cê tá pensando, manz?

- Tem calma… A seu tempo saberás! – declarou com convicção, e ergueu o braço no ar de forma a chamar a atenção de um dos empregados que circulava as mesas naquela zona – Escuse me! May you came here just a second, please?


***


- Calaste-te de repente … O que é que se passa? – perguntou Sara num livor de preocupação, na mesa que unicamente estava destinada a si e à sua melhor amiga, onde o pequeno-almoço partilhado por ambas ainda prosseguia, agora estranhamente mais contido e reservado do que antes – Ainda estás a pensar no que o Ruben quererá falar contigo?

- Também… - respondeu simplesmente, de olhar preso e simultaneamente inerte sobre a paisagem imensa, trespassada para lá dos vidros da janela colossal

- Também?! Anda aí mais alguma coisa atormentar essa cabecinha?

- Estava a pensar no meu pai…

- Ui, pensamento oriundo desse senhor, estou mesmo a ver que não deve ser coisa boa! – as palavras fugiram-lhe pela boca, e por mais que quisesse foi impossível contê-las, finalmente a atenção de Joana presa noutro lugar, voltou, e os seus olhos fixaram somente os de Sara – Amor, desculpa… Eu sei apesar de tudo ele é teu pai, e não era bem isso que eu queria dizer, desculpa!

- Ontem conversámos um pouco e ele disse uma coisa que me deixou a pensar…

- E que coisa foi essa?

- Ele disse-me… - pausou, reflectindo sobre o assunto uma última uma vez, e abeirando levemente o seu corpo à mesa, um pouco mais – Ele disse-me e jurou a pés juntos que foi ao funeral da minha mãe… Que esteve lá!

- Oh, isso é impossível! – Sara arremessou o rosto para o lado naquele instante, totalmente irredutível a negar o que ouvira, por todas as razões óbvias – Se realmente ele estivesse lá estado, tinha-se aproximado, deixava que todos o vissem, ia falar contigo... ou não?

- Pois, foi o que eu também pensei no mesmo instante em que ele disse isso, mas depois…

- Depois… - imitou, desta feita numa voz mais arrastada, claramente um sinal de incentivo a continuar

- Tu lembras-te de quando eu saí a meio do enterro? Que até tu e o Will foram à minha procura e me encontraram junto do portão do cemitério… - iniciou, embora pudesse vir a estar errada, o seu intento era apenas o de levar aquela conversa até a uma devida conclusão

- Ah… Sim, lembro… - afirmou, num prenúncio um quanto incerto, mas o qual veio a ser reforçado poucos momentos depois – Que quando chegámos lá, vimos-te a olhar para um homem que disseste ser-te familiar?

- Sim! Exactamente…


****

- Mas o que raio te passou pela cabeça para desapareceres assim? – era William, que domado pela preocupação que por momentos o reprimiu, se deixara levar por um tom mais austero e significativo, que no entanto não era nada seu

Sara vinha ladeada por ele, com quem também partilhava da mesma preocupação, e chegando junto a Joana que continuava subjugada a forças que a obrigavam a manter a sua atenção focada num outro lugar, algures a uns metros de distância do portão forjado do cemitério, onde permanecia.

- Desculpem… - pediu, sem dizer rigorosamente nada, pois continuava entorpecida a tentar adivinhar quem era aquele homem

- Joana, passa-se alguma coisa? – foi agora a vez de Sara interroga-la, pousando as suas mãos nos ombros da amiga

- Aquele homem ali… - indicou, servindo-se de trejeito com a cabeça posicionado na direcção dele

- O que tem?

- Não sei, mas acho que não me é totalmente alheio… parece que o conheço de algum lado. – presumiu, sem nunca se abstrair daquela figura, que embora não soubesse, lhe era bem conhecida e muito, muito próxima

- Estranho, acho que nunca o vi! – indagou Will

- Pois, provavelmente eu também não e só estou pra’qui a divagar… a criar macaquinhos na minha cabeça! – fez uma breve pausa para olhá-los uma primeira vez –  Quero ir para casa…

****


- Então quer dizer que esse homem que vimos, era o teu pai?

- Não sei, eu não sei… Mas o que é certo é que quanto mais penso no assunto, com mais certezas fico de que era mesmo ele! – concluiu num olhar pesado, deixando que um suspiro contundente levasse o seu corpo a extasiar-se na cadeira

- I’m sorry for interrupting you… Miss? – numa pose comedida e extraordinariamente educada, um dos empregado da zona de restauração, aproximou-se delicadamente da mesa delas, solicitando somente a atenção de Joana

- Yeah? – aclamou, logo que o seu olhar singular percorreu de uma só consumada, toda a figura polidamente trajada do jovem empregado

- Ah… Sent me give you this note! - o seu braço tornou-se perpendicular ao corpo, assim que estendido na chefia dela,  segurando entre dois dedos um pequeno papel dobrado a uma só volta

- It’s… for… me? – inquiriu intermitentemente, oscilando o olhar entre o semblante do pobre rapaz, que se servira agora como capacho, e o bilhetinho que ainda não tomara para si – Are you sure?

- Yes, miss, it’s  for you… I’m pretty sure!

- Who sent this? – o seu olhar fora agora dirigido a Sara, na expectativa de obter uma resposta para aquela situação que estava com certeza, fora dos seus planeamentos, mas esta muito menos sabia, como já seria de esperar

- Ah… - procurando o responsável pelo pedido que há curtos instantes lhe havia feito, o rapaz observou toda a zona disposta à sua retaguarda – Was that getleman, over there, who is siting in the background! – o seu indicador alteou-se de forma discreta, e apontou sem margem para erros, Ruben, que agora se mostrava alheio ao panorama que ele próprio ministrara

- Thank you! – forçando um sorriso grato, Joana tomou na sua mão o bilhete, no qual estava prescrito um conteúdo, que ela desconhecia na sua totalidade… ainda

- Escuse me! – numa pequena vénia feita com uma mão à frente e outra atrás do tronco, o empregado de mesa acabou por se retirar, deixando no ar uma enchente de incógnitas que bem mais cedo, acabaram por ser desmanteladas assim que ela reuniu o alento necessário, para começar a ler o pequeno manuscrito que já tinha encetado entre as mãos

“Lembras-te daquele nosso final de tarde no Colombo, quando te convidei para irmos comer sushi, mas tu feita teimosa disseste que não? Pois é, se te lembras disso também te deves lembrar que me prometeste que ficava para uma próxima e não sei, digo eu, mas parece-me que essa ‘próxima’ chegou e está na altura de eu cobrá-la… O que te parece?
Vem jantar comigo esta noite, e não vou aceitar um não como resposta... olha que às vezes, mas só mesmo às vezes, consigo ser mais teimoso e persistente do que tu!
Espero por ti às 21h no átrio principal, não te atrases com a escolha do vestido.

R.A.”

- O que é isso? O que está aí escrito? – Sara não se conseguiu evitar, e ao fim de um tempo, volutado ainda sim, que passara a olhar entre o sorriso irrevogavelmente apaixonado de Joana e a pequena folha de papel, deixou que a curiosidade e impaciência falassem por si

- Eu tenho de ir… – declarou numa só respiração, arrumando o bilhetinho dentro da sua mala, e levantando-se do seu lugar logo de seguida

- Espera, onde é que vais? – vergando o sobrolho um arcada imaculável, mostrou-lhe um ar notavelmente confuso, pela segunda saída abrupta e tomada sem grandes explicações, que Joana perfizera em dois únicos dias – E tira esse sorriso tolinho da cara… Não me contas nada e dessa maneira estás a deixar-me ainda mais curiosa!

- Não te preocupes, depois conto-te tudo! – um solene piscar de olho promitente tremeluziu, e Sara automaticamente serenou certa de que mais tarde, quando Joana acha-se ser a melhor altura, ela iria ficar a par – Mas agora vou indo… Acho que vou tirar umas fotografias por aí, depois uma caminhada pelo areal, talvez um mergulho… Preciso de dar uma volta, apanhar ar!

- Até ia contigo, mas já tenho marcada um aula de body combate, mais daqui a pouco no ginásio! Para além de que o dia de hoje não convida muito a saídas… Não tarda e vem aí uma chuvada daquelas!

- Oh já sabes como é este clima… De manhã o céu até pode estar nublado e correr um friozinho, mas à tarde o sol já aparece para ficar!

- Então vai, vai lá… Aproveita e espairece um pouco para meteres essas ideiazinhas todas em ordem… Quero ver-te bem! – encorajou-a num sorriso muito meigo, que Joana soube imediatamente guardar no lado esquerdo do peito

- E eu vou ficar… Preciso do meu espaço e de um pouco de tempo, mas vou ficar bem! – falou como forma de sossegá-la e convencê-la que melhores dias estariam ainda para vir, mas principalmente de forma a convencer-se a si mesma, que ainda havia uma força de esperança em que acreditar – Bem, até logo! – gracejou, mandando-lhe um beijinho pelo ar que foi soprado sob a palma da mão

Um burburinho disperso no fundo da sala, pelo misto de sotaques pronunciantes, denunciador do fim do pequeno-almoço e da a retirada dos jogadores para os campos de treino, fê-la atravessar o corredor até à porta de saída, o mais discreta, mas aceleradamente que conseguiu, para passar assim despercebida, mas no entanto nem isso lhe valeu. Perante toda a agitação Ruben ainda a viu escapulir-se por entre outros hospedes que davam a sua entrada, mas nada fizera em relação a ela… e o que é certo também, é que mesmo se tivesse sido essa a sua vontade, Joana não lhe dera qualquer escape de tempo para que ele reagisse e tomasse assim uma atitude.
Subiu no elevador até ao andar que lhe estava destinado e assim que abriu a porta da sua suíte e a trancou, atirou a mala para cima da cama, tendo sido depois ela, a tomar a mesma acção. Pensou, pensou muito e durante muito tempo, em tudo o que a vida lhe conferia… Pensou na relação de um ano e meio que manteve com o homem da sua vida, pensou no fim da mesma e com isso todos os dissabores que se seguiram… Pensou na separação dos pais, da sua vida em Nova Iorque, na morte da mãe, no seu regresso e no fim o seu pensamento centralizou e despendeu-se unicamente numa pessoa: Ruben. Nem poderia ser de outra maneira. Com isso os ponteiros do relógio anteciparam-se de uma maneira descomunal, que não esteve a seu ver. O tempo deixou-se passar então, trazendo com ele um destino traçado, a que dois corações não poderiam fugir…



***


Acordou já poucos minutos faltavam para o meio-dia, adormecera embrenhada à leitura dos quatro capítulos seguintes, do terceiro livro da saga de Philippa Gregory, uma das suas escritoras predilectas.
Levantou-se da cama, arrumou o livro marcado na página onde ira dar a continuação, sob uma das mesinhas de cabeceira, e correu para o armário escolhendo um novo conjunto de roupa que a iria acompanhar no passeio que já havia engendrado somente para si naquela manhã. Amarrou os longos cabelos num coque no cimo da nuca e atou um lenço vermelho estampado que lhe segurou a franja, dando-lhe um pequeno nó numa lateral da cabeça. Arrumou a sua máquina fotográfica na bolsa adequada e depois guardou-a na mochilinha negra que iria levar às costas durante todo o percurso. Perfumou-se, encaixou os óculos de sol escuros na cana do nariz e saiu para um mundo que a aguardava majestosamente do lado de fora.



Embora um manto negro e denso atulhasse todo o azul dos céus, um ar extremamente quente e pesado viandava por toda a cidade, e era naquela zona, a mais acercada das praias, que esse clima funesto mais se fazia sentir.
Caminhou durante largos minutos entre os quarteirões das redondezas, preferindo fazer todo o percurso a pé, pois se não fosse dessa forma, nem desfrutaria da mesma maneira… Aproveitou então para se dedicar a uma das suas grandes paixões, que apesar do ser, nem sempre tinha disponibilidade para dedicar muito do seu tempo, tanto quanto o que gostaria: a fotografia. De mochila enlaçada aos ombros e de câmara sempre pronta a disparar entre as mãos, fotografou de tudo um pouco, para mais tarde ver e recordar. Desde moradores locais e turistas, a monumentos emblemáticos, exposições de arte em plena rua e paisagens lindíssimas, potenciais inspiradoras a qualquer enamorado. E no fim restou-lhe o último lugar de destino, a sua e já mais olvidada, adoração, que ficava a cerca de uma hora do hotel e a vinte minutos do local onde se encontrava, e que já se conseguia adivinhar qual seria.



***



Ao fim de uma manhã condicionada às ordens de um treino rigoroso com a equipa, Ruben teve a ensejo de aproveitar o pouco mais de duas horas de almoço, para se dedicar inteiramente a um passeio pela cidade, que estava deliberado pela passagem num único lugar que ao fim de três anos lhe trazia tantas e tão boas recordações, bem como as saudades que o tempo não levou… Aquele que havia elegido por si como a sua praia e de não só.
Parou no bar para se refrescar com uma bebida energética e lançou-se ao mar, onde dera alguns mergulhos e umas quantas braçadas que o deixaram sem dúvida mais relaxado, mas a dor do pensamento balizada pelas saudades do coração, essa ainda continuava lá, e só dando sinais de uma saída definitiva, quando tivesse de volta a sua pequena mulher nos braços.
Voltou ao areal quando já vencido pelo cansaço a que ele próprio se colmatara, embrulhou-se na sua toalha para resistir ao ar glacial que as correntes traziam e lhe provocavam calafrios. O seu olhar seguiu o enfiamento do horizonte e arrastou-se pela linha da praia… A sua boca entreabriu-se de pasmo e uma só imagem formara-se lá ao fundo, ainda longe do seu alcance. “Não pode ser…!”.

- Is yours? – perguntou a doce Joana a um miudinho com pouco mais de quatro anos, que numa brincadeira compartilhada com outras duas crianças mais ou menos da sua idade, deixara que a sua bola de praia se arrastasse até aos pés dela, que caminhavam descalços levemente sob o areal branco

Numa timidez amorável, o pequenito apenas acenou brevemente com a cabeça num claro sinal afirmativo, que escondia um sorriso atadinho de pura brincadeira e inocência, muito natural da sua tenra idade.

- Take it, then! – agachou o seu corpo até ficar próxima da altura dele, e mostrou-lhe numa só mão a bola listrada com a cor vermelha e translúcido

- Thank you! – agradeceu numa vozinha decadente, mas ainda assim muito doce, momento em que tomou o objecto proporcionador de momentos de divertimento e brincadeira, de volta para si

- Go… Go play with your friends, honey! – encorajou-o num sorriso embelecido, muito característico seu, quando se sentia enfeitiçada pela pureza e genuinidade das crianças, que foram desde sempre os serezinhos mais venerados pelo ela, despenteando-lhe levemente o cabelo escuro entre os seus dedos e vendo-o depois correr desalmadamente na direcção contrária, onde se junto à família que já o aguardava

Voltou a erguer-se e aí, de corpo hirto e voltado para o oceano, o seu olhar remontou-se avultadamente sobre o mar imenso, que se despendia até ao fundo horizonte. De olhos fechados inspirou a brisa que a maresia arrastava até si e uma embriaguez de memórias voltou a roubar-lhe a aptidão de seguir em frente com a sua vida, de uma vez, e sem cair no erro crucial de olhar para trás, chorar e lamentar o tempo perdido. 
Foi numa reflexão espontânea, que deixou cair sobre o areal a pequena mochila, roupa e ténis, caminhando e mergulhando por fim, no meio das águas claras e imensas. Nadou calmamente e deixou por vezes que as pequenas ondas balanceassem o seu corpo… Usufruiu daquele momento a seu belo prazer, o quanto pôde, para após sensíveis minutos, regressar à zona onde deixara os seus pertences.

- Bolas, não trouxe toalha! – praguejou num jeito de represália a si mesma, pelo facto eminente de esquecimento, pelo que só tão tarde dera conta

Fora da água estava bem mais frio, e a corrente de ar, agora arrefecida que a marejada arrastava, conferiam os complementos necessários para que arrepios contínuos e pequenos tremores percorressem todo o seu corpo, resguardado apenas por um mendinho bikini. Foi então que abraçada ao próprio corpo, o seu olhar percorreu toda a zona, povoada ainda assim por algumas pessoas ali e acolá, desfrutando também de um dia, que apesar de não ter nascido com porte figurino do sol, não fora motivo suficiente para não as levar ali.
Ele não foi capaz de parar de observá-la e foi indeclinável não sorrir embevecidamente… Sorrir sim, porque depois de tudo, depois de tudo a que foram obrigados a passar longe um do outro, depois de todas as discussões, de todas as lágrimas, depois de toda a dor da ausência um do outro, agora ambos estavam ali, exactamente no mesmo lugar onde já haviam sido tão felizes. Tal como lhe dissera Rui na noite anterior, foi mesmo o destino que acabara de levar até si a oportunidade perfeita de voltar atrás, apagar o ponto final que fora imposto por uma calamidade e reescrever aquela história que poderia ter agora a sua continuação, sem comos nem porquês, apenas descrita pelos com sorrisos, pelos beijos e principalmente pelos muitos momentos de amor que ainda estariam para vir.

 - Que bela surpresa… - sussurrou-lhe enternecidamente ao ouvido, assim que pé ante pé surgira nas costas dela, sem claro, deixar que o visse primeiro

Mais do que alguma vez, Joana sentira cada grãozinho de areia escapulir-se por baixo dos seus pés. O seu corpo tremeu intempestivamente e aquela voz que durante tanto tempo lhe soara como uma melodia, fizera-a fraquejar e contrair-se sobre si mesma como uma pequena criança amedrontada. E amedrontada também com o que pudesse vir a descobrir… rodou sobre os seus pés, muito pausadamente, vendo depois, o corpo mais belo que alguma vez tivera o prazer de tocar. Ruben mantinha-se invicto bem na sua frontaria, e de sorriso bem demarcado no seu rosto mais jovial e rejuvenescido de que nunca, levando a que o olhar dela percorre-se todo o seu corpo, com uma veracidade que há muito fora corroída pelo desgaste do tempo.
Sem ainda nada dizer, o olhar de Joana deslindou todas as gotas de água salgada que declinavam, pela força da gravidade, todo o seu tronco vincadamente torneado pelas horas de treino intensivo e passagens individuais pelo ginásio… Vira também pela primeira vez, a enorme tatuagem que lhe marcava a pele desde o ombro até à dobra do antebraço. Vira e revira todos os traços que a sua memória traiçoeira já não a deixava recordar e pela primeira vez, ao olhar o rosto dele, que até então se mostrava impávido e sereno enquanto a contemplava da mesma forma, que também um sorriso lindo e assoberbado da felicidade que se adivinhava, lhe preencheu o rosto pueril na sua totalidade.

- Ruben… - nada mais saíra do que o nome, pois encontrava-se de uma maneira confusa tal, que não conseguiu compelir uma melhor saudação, uma que ele merece-se

- Estás a tremer… Tens frio? – num único vislumbre, intencionado sem quaisquer segundas intenções, Ruben desvendou-lhe todos os tremores por completo, naquele corpinho, nunca antes tão desprotegido como agora

- Sim, mas isto já passa… - assegurou por entre um sorriso lisonjeiro, no entanto inseguro, que lhe demarcou os lábios tenuemente arroxeados – Esqueci-me da toalha, mas quando enxugar já me volto a vestir e fico bem!

- Podes utilizar a minha… - ofereceu amavelmente, sentindo em si a forte necessidade de a proteger, apesar de todos os factores inconclusos que ainda formavam barreira a separá-los

- Não, deixa estar, eu já fico bem… Obrigada! – recusou de forma educada, sendo traída logo de seguida por uma aragem incrivelmente fria, que a levou a estremecer num só abalo fundado pelas forças da natureza, levando-a a tremelear freneticamente

- Não, não vais ficar bem… Vais é ficar doente, se não deixares de ser uma teimosona orgulhosa! – a sua persistência perante uma situação tão banal, revelou-lhe toda a preocupação que escondia dentro de si, pela segurança e bem estar de Joana – Eu insisto!

- Mas assim vais ficar tu com frio…! – ripostou numa moafa engraçadamente carinhosa, não declarando cedência às vontades dele, que ainda assim acabaram por se mostrar bem mais determinadas do que espera

- A minha toalha é enorme… suficiente para nós os dois! Vem cá… – sem lhe deixar outra saída para continuar naquela recusa, ele alcançou-lhe a mão, mas Joana continuava decidida a não vergar a uma proximidade tão comprometedora como seria aquela, mantendo fincado o pé no chão

- Ruben, não acho que devêssemos…

- Shiu, eu é que sei! – calou-a ao puxá-la para si, procurando o olhar dela com o seu, de maneira a provar-lhe que não havia nada que pudesse temer, nada que estivesse tão certo como aquele toque que estava prestes a acontecer – É só um pouco até te aqueceres… Não te preocupes, está bem?

Um abraço forte e carregado por todo carinho que nutriam um pelo outro, seguiusse. Ruben puxou-a uma vez mais, não permitindo que um afastamento, por mais ínfimo que fosse, a mantivesse longe de si, e cobriu-a com a toalha de que também fazia uso. Um pequeno e curto embate corpo contra corpo, pele contra pele, deu a derrocada a uma avalanche de sensações indescritíveis, que certamente, Joana tão cedo não iria esquecer. E em sinal de inegável entrega, os seus braços não resistiram àquele toque e contornaram-lhe o tronco, quase na sua totalidade, quando Ruben manteve também essa tão agradável proximidade com os seus membros superiores a tornearem os ombros dela e penderam sob as costas. Joana encostou mansamente a face ao peito esguio e ainda humedecido dele, e por momentos ouviu, tanto quanto sentiu, um bater desmesurado do coração. Uma amálgama de cheiros unificou-se então, oriundo de ambos os perfumes, que envoltos em todos os aromas que a maresia oferecia, conferiam uma nova essência, e que puderam em silêncio, deliciar-se com novo eflúvio que abundava ambos os corpos e de que agora partilhavam.

- Porque é que ontem fugiste de mim? Porque é que me olhaste daquela maneira e depois me viraste a cara, como se eu fosse um qualquer? – sem levantar qualquer exaltação de qualquer parte, Ruben falou a olhar o mar que se estendia à sua frente, portando um tom calmo mas aura ressentida

- Desculpa, mas naquele momento, foi o que achei mais certo fazer! Se continuássemos com aquilo, não iríamos ficar por ali, e nós não… Nós não podíamos…

- Porque não? – aquela era só a primeira de uma enchente de perguntas, que estavam ainda por ser feitas no decorrer da conversa que se seguiu, uma conversa intimista, que só eles poderiam compreender 

- Porque se nos voltássemos a aproximar, iria começar tudo de novo… Tudo!

- E já viste bem até onde a tua tentativa de afastamento nos trouxe? Já olhaste bem para nós, aqui e agora? – a sua força nata, fê-lo esborrachar ainda mais o corpinho dela contra o seu, compelindo mais àquele abraço, o poder indestrutível que o mantinha, alimentado pelo calor daqueles dois corações carentes e irremediavelmente apaixonados

- Ainda assim isto não está certo…

- Não está certo porquê, Joana? – insistiu, não conformado com o desfecho forçado a um amor que tinha tudo para ser vivido na máxima plenitude e felicidade

- Porque nós já tivemos o nosso momento, a nossa oportunidade para sermos felizes! – esclareceu com quanta calma e serenidade que ainda guardava dentro de si, sabendo ela estar a ferir o seu próprio coração, com as mesmas palavras que dolorosamente lhe saíam pela boca

- Nunca ouviste falar em segundas oportunidades?

- As segundas oportunidades são só para histórias que ainda não acabaram… E a nossa já teve o seu fim… já acabou! – disse num sussurro trépido, antecedente ao fluxo de lágrimas, portadoras dos dissabores de tudo aquilo que ficou por ser vivido

- E não restou nada? Tudo o que nós tínhamos, tudo o que partilhámos, os projectos… Acabou tudo? Não ficou nada?

- Ficaram as feridas, as mágoas…

- Shu, shu, shu… - silenciou-a meigamente, embalando-a nos braços, de forma a que aquela afirmação se dissipasse a cada movimento de ambos os corpos – Não digas isso, já passou… Isso já passou! – olhou-a pela primeira vez durante aquele contacto, e fez com que os seus lábios roubassem um beijo na pontinha do nariz dela, disfarçando nos lábios, um sorriso tão gracioso quanto feliz, por apenas com um simples gesto, Ruben a ter conseguido feito relaxar, em ordem de um assunto por eles novamente debatido, mas que ainda se mostrava doloroso de proferir 

- Pronto, acho já que me podes largar agora… - ditou, mais reconfortada e na esperança, conquanto deturpada, de que Ruben a soltasse do seu domínio, de maneira a colocar um termo também àquele toque, bem como a toda a partilha de sensações que este facultava a cada um

- Hum… Acho que ainda não é seguro! – contradisse, numa expressão falsamente sisuda pela pequena brincadeira que escondia, advertindo de uma maneira muito natural o pedido dela, apenas para continuar com aquela sensação de conforto e paz que Joana tão bem lhe conseguia transmitir

- Tu por acaso, estás a contrariar o meu pedido? – inquiriu, dando continuação à brincadeira, por ele formada, desencostando a cabeça do pousio perfeito entre o lado esquerdo do peito e a dobra do pescoço, que tinha estremado, para olhar os seus olhos

- E tu por acaso, estás com algum problema de estares abraçada a mim, hum? Tu imaginas a quantidade de mulheres que sonhavam poder estar no teu lugar? Olha que se eu fosse a ti aproveitava…

- Convencido! - acusou disfarçadamente, por entre curtas e forçadas tossidelas, pregoadas de punho cerrado frente da boca

- Ah, só falta dizeres que não gostas de estar assim… Agarradinha a mim…!

- E gosto! Quer dizer… Quer dizer, a tua mãe não te abraça, não? É que parece-me a mim, que nestes últimos dias tens andado muito carenciado!

A maneira como tentara disfarçar o embaraço pelas próprias palavras que a denunciaram, assim como de jeito automático e numa reacção repentina se voltara a agarrar a ele, agora impondo ela toda a força naquele aperto, deixou Ruben completamente deliciado, da maneira, talvez, de como ela negava todos os factores que ainda os unia, e como logo de seguida quebrava todas as imposições que os obrigava ao distanciamento… Do jeito mais doce que ele lhe conhecia.

- É claro que me abraça! Ainda sou o bebé dela… o seu benjamim!

- Ah, pois… Imagino! Andas feito num mimadão!

- Ai é isso que pensas, é? Então agora é que não te largo mesmo! – afirmou decidido, numa clara feição de amuo encenado, que ela deslindou num só olhar

- Sabes que é verdade!

- Sabes que a culpa também é tua! Habituaste-me mal desde cedo… 

- Pois, talvez a culpa tenha sido mesmo minha… Parvo!

- Parva! – a brincadeira que mais se poderia comparar à de dois autênticos miúdos, foi dada como terminada, ao som levitante das suas gargalhadas, surtidas directamente de ambas as almas

- Vamos dar uma volta por aí… conversar um pouco… Estou a precisar! – pediu-lhe encarecidamente, agora fora de qualquer jogo de palavras que poderia ser conduzido a qualquer brincadeira, encarando-o de frente

- Claro… Deixa-me só ir buscar as minhas coisas, está bem? – perquiriu num sorriso terno, recebendo depois uma aprovação com um delicado oscilar da cabeça, enquanto lhe fixava o rosto meigamente

Ruben deixou a toalha com ela e afastou-se, para dar seguidamente uma leve corridinha sobre a areia, de maneira a alcançar assim a sua t-shirt e outros dos seus pertences pessoais que deixara para trás. Enquanto isso, Joana aproveitou para se enxugar melhor e vestir a sua roupa, espalhada descuidadamente sobre o areeiro. Meditara secretamente com os seus botões, se o que estava a fazer era o mais correcto, tendo em consideração todos os prós e contras dos seus actos, mas já chegava de dar ouvidos à razão, quando o que a fazia verdadeiramente feliz eram as vontades do seu pequenino e apaixonado coração, que lhe sussurrava “vai em frente, sem medo”.

- Onde queres ir? – vestindo ainda a camisola, Ruben voltou a aproximar-se, enquanto ela ainda se acabava de arranjar

- Podemos ir até ao pontão? Já tenho saudades… - revelou com uma levante de nostalgia, de certa forma repartida também com ele, pelos tempos passados naquele ponto de mais referência da praia, que nenhum dos dois era capaz de esquecer, nem que passassem mais três anos

- Claro que sim… Vamos! – depois de Joana colocar a sua mochilinha às costas e de segurar na sua mão direita, os ténis, Ruben voltou a tomar conta da proximidade de ambos os corpos, que pretendida manter sempre bem juntos, o tanto quanto pudesse, e passou-lhe delicadamente o braço musculado sob os ombros, apercebendo-se ela da sua preocupação em não exercer demasiada força, para logo de seguida, e num gesto quase comandado contra a lógica, lhe beijar um cantinho da testa num indício codificado de “eu cuido de ti”

Aquela proximidade sensivelmente arrebatada que tomavam em prol um do outro a cada instante que passavam juntos, aqueles comportamentos que qualquer um ao ver, poderia julgar esconder algo mais do que uma amizade, mas era só e simplesmente isso mesmo… Aquelas atitudes, aqueles gestos de puro carinho, eram apenas de dois amigos… Dois amigos perdidamente apaixonados um pelo outro, é certo, mas que no entanto haviam aprendido a sê-lo, passiva e ocultamente, pois não estavam dispostos a perderem-se novamente um ao outro, nas malhas de um futuro atroz, que poderia estar ainda reservado.

- Sei que recebes-te o meu bilhete, esta manhã… Gostas-te? – curioso, perguntou num jeito traquina, muito próprio seu e o qual nunca ira conseguir perder por muitos mais anos que passassem, guindo-a numa caminhada calma até ao pontão, tal como haviam decido e que não se encontrava longe dali

- Hum, hum… Gostei, pois! E gostei principalmente daquela última parte que diz… Como é mesmo? Ah… “não te atrases com a escolha do vestido” Sem dúvida um excerto muito original! – asseverou numa entoação irónica, mas sobretudo divertida, que ele soube bem como acompanhar

- Eu sabia que ias gostar… Mas ainda estou à espera de uma resposta tua!

- Logo te dou uma…

- Logo, quando? – temeu no seu âmago mais profundo, que uma resposta pudesse não chegar e o momento pelo qual tanto tempo aguardara, pudesse não vir a acontecer

- Quando chegar a altura certa! – atestou com a maior honestidade, num cruzamento coincidente de ambos os olhares, tentando ganhar depois algum fôlego, que lhe desse as forças necessárias para estirar um novo tema… um tema que a magoava de cada vez que era tocado – E, Ruben…

- Diz… - se procurava alento, naquele instante, naquela breve palavra e pequeno incentivo, Joana recebeu o bastante para que pudesse continuar

- Como estão as coisas entre ti e a Inês? 

Não queria, de todo que não queria mesmo ter sido ela a fazer suscitar aquele assunto entre eles, mas sentiu essa necessidade independentemente de tudo… não queria ficar apenas com o parecer de revistas e redes sociais, queria sim, ouvir uma resposta bem formulada da parte dele, mesmo que não fosse a que estava à espera, mesmo que a magoasse e lhe destruísse todos os sonhos de um possível entendimento. Já Ruben, sentiu-se um quanto desconfortável com a impertinência daquela conversa que ainda mal começara, não que lhe custasse falar sobre o assunto, mas ter de fazê-lo com Joana, pareci-lhe estranho… austero, depois de tudo o que conseguiram ultrapassar para estarem ali.

- Entre mim e a Inês não há nada… Não mais! – ainda assim, respeitou-lhe o pedido, preparado para lhe esclarecer todas as dúvidas que ela pudesse ainda colocar-lhe sobre a mesa – Não seria justo para ela continuarmos a manter aquela relação e aquele casamento!

- Não seria justo porquê?

- Porque a Inês estaria sempre em desvantagem na relação… Por muito carinho que eu tivesse e tenho ainda por ela, por mais estima que lhe tome, nunca lhe poderei dar o que ela precisa: o amor verdadeiro.

- Porque não? – ainda que o seu coração estivesse entregue ao homem que a abraçava, aquando da caminhada, Joana não poderia ser egoísta ao ponto de não o querer ver feliz, mesmo que o fosse ao lado de outra mulher, mesmo que isso lhe causasse um custoso sofrimento que teria de ser passado em silêncio… só queria vê-lo bem e feliz, já que não o poderia ser consigo – Vocês pareciam tão apaixonados, tão felizes um com o outro…

- Ouve uma coisa, Joana… - obrigando-a a cessar o passo na frente da entrada do pontão, e colocando-se na vanguarda dela, Ruben dispôs-se a abrir-lhe o coração, como nunca antes o fizera para outro alguém – É verdade que eu e a Inês vivemos bons momentos juntos, que me apaixonei por ela, tal como tu também te deves ter apaixonado por outra pessoa nos tempos que tiveste fora… Mas há coisas na vida que não mudam, não se esquecem e não se ultrapassam, e uma dessas coisas é o primeiro grande amor… Seja ele descoberto numa primeira, segunda ou terceira relação!

- Ruben, não tens que…

- Tenho sim, e por favor, deixa-me continuar antes que eu perca a coragem e não consiga levar isto até ao fim! – pediu-lhe, olhando numa outra direcção que não fosse o rosto dela, já raso de lágrimas pelo que adivinhara vir a escutar – Tu sabes, e eu nunca te escondi, que foste tu o meu primeiro grande amor, o único que eu vivi até hoje… Eras tu a razão pela qual eu me levantava todos os dias da cama, eras tu a razão da minha alegria constante, por vezes, até exagerada, foi a ti a quem eu disse um “amo-te” sincero, pela primeira vez em toda a minha vida, Joana! Tu sabes o quanto isso significa?

Aquela segurança em cada palavra, aquela profundidade do olhar, estavam a corromper a veracidade de um autocontrolo agora tão débil, como era o dela, a matá-la… lentamente. Nunca antes lhe custara ouvir um discurso sem igual, com toda aquela franqueza que Ruben impunha entre cada frase. E leve e silenciosamente, uma fina linha de lágrimas começou a declinar o seu rosto de candor, anteocupando-se em continuar a mantê-lo longe do alcance dele.

- E agora tu perguntas-me porque é que não consigo ser feliz ao lado de outra mulher? – as suas mãos vincaram-se nas ancas e cabeça pendeu totalmente para trás, obrigando a que também as sua lágrimas não cedessem e o forçassem a travar o discurso

- Mas a Inês gosta tanto de ti, Ruben… Ela deve estar a sofrer tanto com tudo isto!

- E achas que eu não sei? Só lamento ter deixado isto ir tão longe… Eu juro que a última coisa que queria era magoá-la! – declarou, notavelmente transtornado pelo desassossego intempestivo que havia criado com a pessoa com quem partilhara quase dois anos de vida, e pela qual mantinha um carinho muito especial, somente – Só no momento em que eu esquecer, em que eu ultrapassar e me libertar de uma vez desse amor, aí sim, vou conseguir seguir em frente, mas agora não… agora ainda não estou preparado para isso!

- Oh Ruben, desculpa… Não sabes o quanto lamento tudo isto… Desculpa! – num acto imprudente, Joana lançou o seu corpo nos braços dele, apertando-o amedrontadamente contra si, e sentido o peso da culpa que julgava unicamente lhe pertencer, por não o deixar viver uma vida plenamente feliz

- A vida é assim, Joana… Sabes que também há coisas contra as quais não conseguimos lutar, e esta é uma delas… - o seus braços acabaram por receber o corpo módico e indefeso dela, despoletando-lhe um suave beijo no topo da cabeça – Não tenho forças suficientes para lutar contra aquilo que ainda sinto aqui dentro! – o brilho imenso dos seus olhos falou por si, as palavras que tinha tanto medo de enunciar

- E não imaginas como eu bem sei, o que estás a sentir…

- Sabes mesmo? 

- Sei… Sei mesmo! – não foi preciso formular devidamente uma resposta, com todos os pontos cruciais que esta exigia, encobrindo entre ela e entre os corações palpitantes, o que ambos queriam declarar, mas que nenhum tinha coragem de proferir

- Então vamos… o nosso passeio ainda não terminou! – as suas mãos pesadas e desconcertantemente cálidas, abarcaram o rosto húmido pelas lágrimas, que já na altura tinham cessado, de Joana, enxugando-o com os polegares grosseiros e preocupados, que se apressaram a fazer dissipar aquela dor

Juntos, pisaram então as fasquias de madeira que se multiplicavam até ao fundo do pontão, fazendo-os caminhar alguns metros acima das águas, agora agitadas, do mar imenso que se desdobrava num manto azul abaixo dos pés. Mas todo o percurso, dos corpos vagantes por eles ditado, até chegaram à outra ponta, foi coberto por um véu de tenebroso silêncio e que não dava indúcias de ser quebrado por nenhum dos dois, por muito que tivessem uma vontade louca de por fim a todo aquele padecimento e se deixassem embrenhar na paixão avassaladora que os comandava, em cada dia.

- Sentamos?

- Hum, hum! – afirmou ela simplesmente,  sentando-se depois e deixando pender para lá da berma, as duas pernas que rapidamente começaram a balançar, pontapeando suavemente a atmosfera

- É uma paisagem linda, vista aqui de cima! – assibilou, deixando que um toque de deslumbre se apoderasse da sua voz, enquanto deixava que seu olhar percorresse cada recanto do que se estendia atrás de si, para além do mar, deambulando uns metros mais abaixo e tomando o lugar vago junto dela, copiando-lhe o gesto

- Sim, é… - concordou, aquando de mãos fincadas no tabuado, colocadas às laterais do corpo, lhe lançou um breve olhar – Já tinha tantas saudades disto… saudades de vir aqui!   

- Também eu, e foram essas saudades que me fizeram voltar cá… Não importa quanto tempo passe, esta vai ser sempre a nossa praia!

- Sinto o mesmo… - um suspiro boémio, foi solto pelos seus lábios entreabertos, deixando que fosse arrastado pela brisa que preenchia o ar, e alcançando depois a sua mochila para retirar do bolso frontal, uma pequena escova portátil que tencionava fazer deslizar pelos seus cabelos de modo a alinhá-los

- É desconfortável para ti ou achas que posso…? – com um simples relance, Joana pode desvendar-lhe a intenção pela qual lhe pedira um consentimento, distendeu cuidadosamente o braço numa só direcção e passou-lhe a escova para que ele não hesitasse em tomá-la

- Não, não me é desconfortável de todo… - apesar de não lhe querer dar aquela descortesia, era evidente que Joana não se sentia totalmente confortável para partilhar com ele um gesto, que em tempos tanto se mostrara presente na sua intimidade enquanto casal

- Chega-te então, um pouco mais para aqui… - Ruben pegou a escova e com um leve impulso que fez para trás com o seu corpo, abriu um espaço entre as suas pernas, suficientemente confortável para Joana

Ela mostrou-se vacilante, num curto espaço de tempo apenas, mas acabou por lhe fazer a vontade e mansamente, fez o encaixe perfeito de ambos os corpos. Sentou-se à sua frente, deixando que somente uma perna de Ruben pendesse para a berma do pontão e as suas se encolhessem para dentro, junto do corpo. No momento em que sentiu o toque delicado dele, a lançar os seus longos cabelos para trás das costas, fê-la ter um momento de dejá vu, aquele gesto já aconteceu… já se repetira inúmeras vezes na privacidade de um casal que agora já não formavam, das noites em que se sentavam na cama e Ruben lhe penteava os cabelos, com uma habilidade que aprendera a formar e se transformara num ritual. A escova começou então a deslizar nos fios de cabelo ainda humedecido e um tremor incontrolável tomou-a numa pequena convulsão, a que ele não ficou indiferente. 

- Estás outra vez com frio? – perguntou num tom preocupado, como já era habitual na presença dela

- Não, foi só um arrepio… Já passou! – Joana observou-o de realce a cima ombro, com um sorriso que fazia trespassar perseverança

- Então e vieste aqui porque… - forçou a uma nova conversa, de maneira a saltarem ao vácuo do silêncio que podia transformar-se novamente num momento de embaraço, e dando prosseguimento ao escovar suave do cabelo da sua oculta amada

- Fui dar um passeio pela cidade, tirar umas fotografias, espairecer um pouco e vim parar aqui! – enumerou, mantendo a sua postura tão serena quanto possível, e fitando o mar enquanto o céu permanecia ainda mais encoberto do que no início da manhã, antecedendo à precipitação que se podia adivinhar

- Lembras-te das nossas férias cá? Meu Deus, foram incríveis… - Ruben continuava a abrir portas que em tempos foram trancadas, portas que não poderiam ser novamente abertas e ele sabia muito bem, que essas recordações iriam afectar Joana, mas não findou com o assunto – Lembro-me de cada lugar que visitámos, cada momento que vivemos no quarto de hotel, cada jura de amor que trocámos… 

- Sim… Foram umas férias fantásticas! – declarou num sorriso triste, sentindo recair em si, o amargo sabor da saudade, que lhe trouxe à memória os maiores momentos de felicidade que vivera até então

Rodeou escassamente no meio das pernas dele e no cabelo voltou a colocar o lenço que enleou na cabeça, rematando com um lacinho no topo, enquanto com um sorriso que já não dava de maneira nenhuma para continuar a disfarçar, Ruben a olhava observando-lhe a beleza de cada gesto e o movimento de cada olhar, que se continha por não cruzar com o dele. E Joana ali estava, tão perto e ao mesmo tempo tem distante, mas nem assim se preocupou com o facto de ela o poder apanhar a olha-a de flagrante… Já nada lhe importava naquele momento, que não fosse tê-la ali e no pensamento uma elucidação imediata completou o testemunho do que os seus olhos viam “ela é perfeita”.

- E ainda tens as fotografias?

- As que tirámos nas nossas férias? – um rasgo de estranheza formou-se quando a pergunta foi imposta, não percebendo no momento, onde ele queria chegar com tudo aquilo

- Hum, hum!

- Acho que sim! Devo tê-las ali, noutro cartão de memória… Mas porquê?

- Posso vê-las?

A franqueza e a súplica ocultas naquele pedido, de uma maneira estranha, não deram hipóteses a Joana para o questionar. O que estava claro, era que Ruben iria recorrer às lembranças para manter vivo aquele amor, que no fundo, nunca chegou a morrer, e também no fundo, Joana não queria perceber isso, preferia pensar que ele estava a fazer aquilo, apenas para queimar os últimos cartuchos de uma relação que há muito conhecera o seu fim.
Alcançou novamente a mala e dela retirou a máquina fotográfica, recorrendo a uma bolsinha individual da mesma para tirar e trocar os cartões de memória.

- Toma… Podes ver! – após os cartões trocados, ligou-a e estendeu-a com o auxilio do braço, para que ele a pegasse e pudesse dar inicio à enxurrada de recordações

- Não queres vê-las comigo? – já tendo a máquina em seu poder, ele inquiriu-a numa pergunta que poderia ser compreendida com um pedido, logo que no menu seleccionou a visualização da galeria dispersa em dezenas de fotografias, provas de um passado muito feliz

- Não sei se isso será bom para nós… - as duvidas que a perturbaram foram mais fortes, mas não tanto como a insistência e manipulação dele, que se mostraram bem mais fortes, aquando de um olhar pedinchão e uma voz implorante

- Vem… Por favor! – a sua cabeça alteou-se e foi acompanhada pelo olhar que voltou a subir, procurando o dela, que fazia um esforço desumano para não deixar cair as lágrimas que intuitivamente haviam subido às pálpebras

Joana gatinhou subtilmente até ele e tomou pousio ao sentar-se no mesmo lugar que ocupara há instantes apenas. Ruben ofereceu-lhe a máquina, para que fosse ela a mostrar-lhe o que de melhor viveram, e ela aceitou-a, embora o tivesse feito um pouco contra a sua vontade. Ele fez questão de recebe-la com todo o aconchego que lhe podia dar e deixou que o corpo dela ficasse bem protegido entre o seu. De modo a facilitar-lhe a visão, sobrepôs o queixo ao seu ombro, ainda assim sem deixar que se tocassem uma única vez… Não iria ser ele a fazê-lo, pois o receio de se precipitar, o que levasse Joana a afastar-se de novo, ultrapassava-o.
Os largos minutos que se seguiram serviram apenas para que um brilho tremeluzente nos olhares se intensificasse a cada fotografia percorrida, deixando que também o som de deliciosas e gracejantes gargalhadas, se soltasse inesperadamente da boca de ambos, das vezes que se deparavam com poses disparatadas mas divertidas, como se haviam disposto para a objectiva… Levando-os enfim, a partilhar de um clima mais suave, harmonioso e sem dúvida mais íntimo.

- Olha estas… Tirámos na feira! – declarou, dando agora lugar a um enxurro de fotografias unicamente tiradas numa noite de diversões na feira popular da cidade – Lembro-me de me teres chateado todo o santo dia para irmos lá…

- Eu chateei-te para irmos à feira? Tu tens a certeza? É que eu não me lembro de nada disso…

- Ai não? – por cima do ombro olhou-o em jeito de desafio, e Ruben limitou-se a esconder o rosto do alcance dela, como se tivesse sido atingido pela maior timidez – Andavas doidinho por comer farturas recheadas e por andar na roda gigante também… Parecias mais entusiasmado que o meu irmão!

- Eh, que exagero… - contrapôs deixando arrastar a voz, num sorriso que teve mais de travesso e brincalhão do que contrafeito

- Exagero nada… Sabes bem que é verdade!

- Ah, dessa eu lembro-me! – disse, apontando uma fotografia que Joana tivera de retroceder primeiro – Tínhamos ido ao tiro ao alvo, e como já seria de esperar, não é, com uns bons disparos certeiros nas latas, o Ruben ganhou um urso de peluche gigante, e sabes a quem é que o ofereceu?

- Ah… – formulou um ar pensativo por instantes, e com uma naturalidade irracional, deixaram-se levar numa conversa incrivelmente descontraída, formada na terceira pessoa, que no seu jeito cómico Ruben armara e que ao fim de terminada, acabou por gerar uma enchente de risos - … ofereceu-o à Joana?

- Nem mais… Ofereceu-o à Joana! Mas enfim, ele estava completamente apaixonado e como era um romântico incurável… - Joana sentiu o seu coraçãozinho mirrar ao ouvir tais palavras, pois sabia tão bem quanto ele que eram as mais puras e verdadeiras

- Aposto que ela adorou o presente…

- Sim, tanto adorou que depois começou a preferir dormir com o peluche, do que com o namorado!

- Isso é mentira! – refutou com audácia, alterando a voz para um falsete perfeito, que mostrou a sua ofensa, levando Ruben a perder-se em gargalhadas – Eu nunca te troquei pelo peluche!

- Pois não, não trocaste porque eu não deixei!

- Opá… Parvo! – replicou num insulto inofensivo, contraindo as sobrancelhas num só movimento e ostentando nos lábios, um beicinho enternecedor, que amoleceu o coração de Ruben por completo   

Tenuemente o seu corpo foi obedecendo às ordens administradas pela força do coração e pela cumplicidade que aos poucos lhes voltara a pertencer. Então, ainda rodeada pelas longas pernas dele, Joana deixou que as suas costas lhe embatessem contra o peito, procurando um aconchego que sabia ele poder dar-lhe, naquele ninho improvisado de… amor.

- Desculpa, eu não queria… - tomando consciência da sua acção que pensara ser demasiado abusada, ela desculpou-se sinceramente, voltando a tomar conta da distância entre eles

- Não, não… Deixa-te estar! – contrariando-a de boa vontade, não hesitou, e ainda que a medo, puxou-a de volta para si pela cintura, fazendo com que tomasse a mesma posição que ela mesmo tinha adoptado do contacto corporal entre ambos

Ali, com o bem mais preciso deitado nos seus braços, Ruben tinha apenas uma dúvida: voltara a apaixonar-se pela mesma mulher, ou nunca deixara realmente de a amar? Sorriu, vendo-a ser vencida pela forte atracção que não deixava que se mantivessem afastados por muito tempo… como tal, e rendida à fadiga desgastante de continuar a impor barreiras entre eles, Joana fez tombar suavemente, a cabeça sobre o ombro disponível dele. Ruben apreciou da melhor forma aquele gesto e aconchegou-a no calor do seu corpo, apertando-a para si logo que os seus braços recorreram ao instinto de lhe contornar o tronco e de ficarem amarrados junto da barriga. Os músculos de ambos relaxaram então, naquele conforto de amor e paz, encontrando eles o retorno, junto de quem sempre haviam pertencido. 

- Esta é uma das minhas preferidas… - expôs ela, referindo-se a uma fotografia onde somente captara Ruben disposto em perfil, onde num flash que lhe passou despercebido, foi capturado ao entardecer ao fim de um dia de praia

- Eu gosto especialmente desta! – indagou, de face direita colada à esquerda de Joana, apontando o retrato de um encaixe de lábios perfeito, que haviam  flagrado num momento de visível felicidade do ex-casal

Perante aquele comentário, Joana encolheu-se ligeiramente naquele aperto de Ruben, que tomava todo o controlo dos seus movimentos… As suas faces roborizaram o encarnado ténue que sentira a aflorar-lhe as maçãs do rosto, por estar a partilhar com ele, momentos tão íntimos que nenhum esquecera, mas que ao fim de tanto tempo e agora expostos para os dois, a deixava de alguma maneira embaraçada e nervosa. Era natural que, por vezes, ao reverem fotografias mais comprometedoras como beijos ou simples amostras de carinho que fizeram questão de deixar gravadas, os levasse a constranger aquando enlameados nos braços um do outro. Felizmente que não foi o suficiente para colocarem termo à compilação de recordações.
Levemente ele desuniu as faces, que até então se encontravam passivamente fincadas uma à outra e ficou simplesmente a observá-la, sem que mesmo ela desse por isso. Joana continuava ali, serena, sentindo-se incrivelmente segura nos seus braços, fazendo-o recordar dos bons velhos tempos e de tudo o que mudara entre a ausência que o destino impôs. Gostava do simples prazer que tinha em olhá-la, e fascinado com o que via, observava-lhe cada gesto, cada pequeno sinal coligido, cada traço demarcado na silhueta do seu corpo, que se alterara e amadurecera nos últimos trinta e seis meses. Por detrás de um corpo perfeitamente esculpido, de pele dourada pelo sol de Verão, das curvilíneas assentes nas ancas e de um peito mais robusto e saliente, dos cabelos cacheados que tinham dado lugar à forma modelarmente lisa, mais escuros do colorado natural, e da maneira discretamente sedutora que descobrira em si, Ruben conseguiu ver mais daquilo que ela escondia… Já não era mais uma menina de dezassete anos, agora era uma mulher a aproximar-se da casa dos vinte, uma mulher que conseguira atingir os seus objectivos em prol de todos os valores que defendia como seus, totalmente independente e dona de si e, apesar de por vezes não saber bem como demonstrar, Joana conhecia os seus sentimentos e sabia muito bem aquilo que queria.

 - Estás a ver? – perguntou-lhe, olhando-o acima dos seus olhos e tentando sossegar as gargalhadas que ainda ameaçavam eclodir na boca

- Hum, hum! – não, na verdade não estava… omitiu-lhe o facto não de continuar a ver as fotos, e sim continuar a olhá-la, tentando ler-lhe o pensamento e perceber assim o que estava a achar de tudo aquilo, voltando depois a concentrar-se única e exclusivamente nela

Começara então a chuviscar, a cair uma chuva miudinha que no entanto, não incomodava em nada, aquele momento de felicidade como há muito eles não sentiam, e isso era notável nos risos, que embora distintos pelas diferentes razões, se podiam escutar. Ela ria-se das fotografias mais desajeitadas que ia seleccionando com o polegar, e ele ria-se daquele jeito de menina, que no fundo, Joana nunca perdera.

- Sabias, que… ah… - quando se sentiu suficientemente preparado, Ruben fez suscitar um assunto, que poderia muito bem levá-los a novos temperamentos, em proveito de mais um antecedente que o passado deixara - … há uns tempos, quando andava a fazer umas pesquisas no computador, encontrei um vídeo nosso, que já nem me lembrava que existia!

- Um vídeo… nosso? – por achar estranha aquela interjeição vinda do nada, Joana interrompeu a visualização das imagens,  ajeitando-se e rodando no resguardo que o corpo dele compunha, de maneira a poder centrá-lo no seu panorama visivo – Que vídeo?

- Aquele que, que gravámos na manhã do teu aniversário…

- Ah, sim… Já sei! – relembrou, num sorriso curto e tristonho – E… e viste-o?

 -Vi… Não consegui evitar a curiosidade e as saudades também não deixaram que eu lhe ficasse indiferente!

- Tinhas com cada ideia tu! – forçando um riso, que deu graças a Deus por ter sido projectado com a maior das naturalidades, de maneira a fugir propositadamente à insinuação dele, enquanto, não cessadas, pequenas gotículas de água iam chapinhando cada vez com mais veemência nos seus rostos, cada vez mais próximos

- E sabes uma coisa estranha que senti, quando o acabei de ver? – num jeito muito natural, como se o fizesse desde sempre, a sua mão voou até aos cabelos dela, fazendo com que uma mecha se fosse enrolando distraidamente nos seus dedos brincalhões

- O quê? – perguntou num sopro fraquejado, vendo-o tomar uma proximidade dos corpos demasiadamente comprometedora, de um momento antecedente há muito não partilhado e há muito apetecido por ambos

- Senti uma enorme vontade de fazer tudo aquilo de novo, tal como te prometi que ia fazer, nos teus aniversários seguintes… - declarou sumidamente, fixando-lhe os lábios com uma intensidade tal, que Joana conseguira desvendar-lhe naquele mesmo instante o desejo que o consumia… no fundo, os consumia

Aquele momento estava destinado a acontecer e tinha tudo para que fosse vivido em pleno. Ruben tocou-lhe levemente nos lábios com as polpas nos dedos e ela sentiu-se derrotada pelo ensejo que se acertava demasiado próspero. Os rostos avançaram lentamente na mesma direcção por vontade própria, no entanto nenhum fechou os olhos, os quais usaram para se observarem um ao outro enquanto se deixavam levar pelos sentimentos e guardar a imagem perfeita que cada um tinha na sua frente… Estavam ambos os corações dispostos a ultrapassar os desacertos de um passado e darem uma nova oportunidade a um sentimento que depois de tudo, agora se encontrava mais vivo e forte do que nunca. Mas assim que rendidos ao prazer de unir os lábios, colmatando o desejo ainda inconcretizável, que caída vertiginosamente das alturas, uma chuva mais enfurecida e altamente copiosa a cada segundo corrido, quebrando de uma maneira irreversível aquele tão esperado beijo, mas que, apesar de tudo, foi somente adiado.

- É melhor sairmos daqui… - disse-lhe ela, deixando que a sua voz se confundisse com o som estrondoso da chuva, a embater contra tudo aquilo que os rodeava e afastando-se dele logo de seguida

Ele assentiu compreensivamente. Joana protegeu a sua máquina fotografia na mochila, que se apressou a colocar às costas, e no instante imediato em que ambos acabaram de calçar os ténis, Ruben pegou-lhe na mão, dando então lugar a uma corrida freneticamente desajeitada, debaixo da chuva.

- Corre, corre, corre! – aconselhou-a, não deixando passar despercebido na voz, o gozo que aquela situação lhe estava a dar

Mais atrás de si, Joana corria também, sendo puxada pela força que ele impunha na sua mão firmemente unida à dele, também ela não conseguindo disfarçar a satisfação que aquela situação, proporcionada por uma eventualidade do momento, lhe dava, rindo-se desalmadamente pela figura tonta, mas necessária, que eles faziam para fugir à forte chuvada. Desceram as escadas e só pararam quando se viram finalmente abrigados pela enorme cobertura que o pontão improvisava abaixo dele.

- Há imenso tempo que não me ria assim! – encostando o seu corpo cansado, à coluna que servia de pilar ao pontão, assustadora pelo volume e altura impetuosa com que fora construída, Joana tentava regularizar a respiração acelerada, pela velocidade que fora obrigada a usar para chegar até ali

Parecendo que não, tinha sido uma corrida longa para eles, e de roupas encharcadas e já coladas ao corpo, pela chuva de que não tinham conseguido escapar, Ruben e Joana encontravam-se então estafados, pelas ligeiras dificuldades climatéricas com que se tinham deparado, mas com um enorme sorriso no rosto, pela satisfação de um momento que tinha sido vivido pelos dois.   

- Sim, temos que admitir que teve a sua piada… - Ruben soltou mais umas gargalhadas quando se atracou na frente dela, de mãos unidas, que ainda não se haviam separado uma da outra por um mísero instante que fosse
                                                         
- Acho que estava a precisar de um momento destes na minha vida, para fugir um pouco à rotina…

- E não precisas de mais nada? – aproveitando-se do seu desabafou, Ruben usou-o como arremesso, de forma a manipula-lo a seu favor e usá-lo numa leve insinuação a Joana

- Do que é que estás a falar? – já ela não percebeu onde ele queria chegar, ou preferiu não perceber

- Se não precisas de mais nada na tua vida para, sabes… fugir à rotina(?)! – numa tentativa clara de amenizar o fôlego, que tal como o dela, ainda se mostrava desconcertante pelo esforço de há momentos, Ruben aproximou-se de Joana o bastante, até às roupas de ambos se fundirem uma na outra, mostrando apenas num simples gesto, ao que se queria referir

- Oh Ruben, não acho que devas dizer isso… - por sua vontade, as mãos separaram-se pela primeira vez, levando-a a baixar o rosto e a esconder os seus olhos dos de Ruben, onde numa fracção irracional de segundos o espaço no seu peito que era ocupado por uma alegria repleta, dera lugar ao vazio que ameaçava fazer soltar novas lágrimas no rosto onde a água da chuva ainda divergia verticalmente

- Não digo porquê? Não imaginas o quão feliz estou, por estar contigo aqui e agora!

- Eu também estou muito feliz por estar aqui contigo, mas… - ele interrompeu-a sem ter que pensar duas vezes, enquanto Joana continuava decidida a manter o olhar longe do seu alcance, por uma só razão que adivinhava certeiramente vir a suceder-se, e que apenas fora interrompida por um mero contratempo

- Se estás feliz, não parece, Joana… Nem olhas mais para mim… - foi arrepiante como a voz dele esmorecera tão rapidamente, levando-o a empregar uma tristeza sofrida em todas as suas expressões faciais, que só serviu para ela sentir uma pontada de dor acutilante no peito  - Porquê?

- Porque se o fizer já sei o que vai acontecer a seguir, e tu sabes que nós não podemos, Ruben, não é certo que…

Ele não a deixou completar o raciocínio. Aquela falta de confiança, aquela falta de segurança e aquele sofrimento que sabia ela cuidar em silêncio, levou a que Ruben perdesse a cabeça e toda a razão de ser, que o impedira de ter feito até ao momento, o que durante tantas oportunidades não tivera coragem suficiente para fazer. Com a sua mão direita, arrepanhou suavemente um retalho de mechas dos cabelos da nuca de Joana, ainda humedecidos pela chuva, e logo que ela desprendeu o olhar que mantivera assente nas duas mãos e ergueu a cabeça num só relance, ele colou os lábios aos dela, beijando-a. Ruben beijou-a… Beijou-a simplesmente, como se mais nada existisse, como se mais nada importasse e como se o amanhã não quisesse vir mais. Era impossível continuar a resguardar um sentimento de tamanha grandiosidade e de puro fascínio, assim como o desejo que crescia loucamente a cada segundo que passavam juntos e que não se podiam pertencer um ao outro. Joana fora apanhada completamente desarmada, numa emboscada que ela própria tinha previsto anteriormente, mas que no entanto não esperava ver-se tão depressa ser surpreendida por aquele puro resgate de amor, e os primeiros dois segundos que voltara a provar do toque abrasado dos lábios dele, aos quais permanecera tensa e de pensamentos inconstantes, e que apesar de ainda ter dado um sinal de resistência passiva, não conseguiu contrariar aquele beijo, pois antes disso, com um leve tocamento, Ruben fê-la descontrair e deixar-se levar. E o que começou por ser um mero choque de lábios apenas, foi dado então como um pequeno impulsionador ao momento prazerosamente exaustivo que se seguia. Foi ele a tomar o primeiro incentivo a uma busca ardente pela língua dela, e ao sentir aquele toque tão quente e aveludado, Joana mostrou-se desconcertante em milionésimas de segundo, para depois quase se sentir a levitar. Aquele era um toque diferente, diferente de todos os outros que já tinha partilhado com ele, era um toque mais atrevido, mais indiscreto e sem dúvida mais profundo… estava melhor do que nunca antes, diria até. Ruben fora desde sempre um homem muito meigo e atencioso e isso viera a provar-se uma vez mais, em cada gesto de carinho que tomava agora para com ela. Quase sem se aperceberem da rápida mudança, o beijo tomara então proporcionalidades mais extremas e exaustivas, aquando ambas as línguas se fundiram freneticamente uma na outra, guerreando-se sem darem qualquer prova de desistência, numa batalha onde iriam sair claramente justas vencedoras, e dando assim lugar a um beijo desmedido, um quanto selvagem e muito urgente. Era urgente sim, porque ambos tinham a necessidade de demonstrarem que o sentimento forte que em tempos os ensinara a viver, renascera para os voltar a unir. E antes que selasse aquele momento de entrega e rendição, pois as respirações encontravam-se já totalmente descoordenadas, Joana surpreendeu-o ao apertá-lo contra si, não o deixando terminar aquilo que nenhum dos dois queria que chegasse ao fim, o beijo que recomeçara. Rendendo-se a tudo o que na verdade nunca deixara de sentir por ele, elevou misericordiosamente os braços no ar e pousou-os nos ombros largos, permitindo que os seus dedos lhe desembrenhassem o cabelo, completamente molhado. Perante o seu gesto, sentiu-o sorrir por entre o beijo e esse facto deliciou-a. Num movimento mais ousado e imensamente extasiante, Ruben fez com que o seu corpo comprimisse o dela contra a coluna, tendo sempre em conta a preocupação de nunca a magoar e aconchegou-a mais a si no momento em que as suas mãos assentaram na cintura elegante dela, apertando-a ligeiramente. Aquele ambiente húmido mas quente que os envolvia, e o resguardo daquele cantinho que lhes pertencera desde sempre, abrilhantava ainda mais o momento enquanto o burburinho dos lábios derreantes que se envolviam loucamente, se moldava com o som abafado da chuva que continuava a precipitar-se dos céus com intensidade. Aquela sensação característica do tão famoso ‘efeito borboleta’, voltara a corromper-lhe a barriga, apesar de há já muito tempo Joana não desfrutar dessa experiência, conhecia-a muito bem e ali, entregue aos braços do homem que sempre fora e era ainda o grande amor da sua vida, essa mesma experiência tornou-se única e indescritível, tal como a primeira vez que conheceram o sabor do primeiro beijo. Redescobriram caminhos na boca um do outro e descobriram outros novos, agora de uma maneira muito serena, desfrutando de cada segundo. Aquela urgência que sentiram ao início foi trocada pela calma e espontaneidade, que os levou a guiarem-se pelas emoções harmonizadas… e as línguas, essas, que outrora guerreavam, prestaram as suas tréguas e agora simplesmente se entrelaçavam, numa brincadeira de ingénua sedução. E eles beijaram-se… Beijaram-se muito e durante um tempo demasiadamente longo e deleitante. Foi apenas quando se sentiram reconfortados, que três leves toques de lábios colmataram no remate àquele beijo, que contudo, pareceu não querer conhecer o seu fim. Naquele momento eles tiveram a certeza de que as suas almas se voltaram a tocar e os dois corações voltaram a bater como um só.

- Sempre adorei olhar o teu rosto depois de te surpreender com um beijo! – indagou ele, mantendo as testas coladas  e narizes acostados, enquanto a olhava de uma maneira irremediavelmente apaixonada,  deixando que o seu indicador ganhasse vida e delineasse o rosto dela muito suavemente, contornando cada ornamentado desde o topo, passando pela linha do maxilar e terminar o percurso junto ao lábio inferior

Joana amoleceu perante o conteúdo daquele rememorando mas não disse nada. As respirações ainda se encontravam demasiadamente debilitadas, misturando-se uma na outra pela proximidade a que as duas bocas se encontravam. Sorriram. Os seus lábios acolheram em simultâneo o mais belo sorriso que até então tinham oferecido um ao outro, e embora ainda se achassem em estado de ofegância e com a adrenalina propiciada pelo momento anteriormente vivido, a percorrer-lhes cada veia do corpo, eles estavam felizes… Muito.
De modo a relaxarem um pouco, ela ressoou a pontinha do seu nariz na dele, fazendo-os depois chocalhar, na expectativa de criar uma brincadeira à qual Ruben deu seguimento e lhes oferecera risos deliciosos de se ouvir.

- Tenho que ir embora… - ditou, acariciando-lhe delicadamente o rosto com a sua mão macia, esperando não magoá-lo

- Não, não vás já… - pediu-lhe num jeito mimado, apertando-a contra si, de maneira a fazer com ela ficasse

- Mas tenho mesmo de ir… Esqueci-me que tinha combinado encontrar-me com o meu irmão e ele já deve estar à minha espera!

Embora a mentira nunca fosse a melhor escolha para qualquer situação, naquele momento sentiu que fosse o melhor que poderia fazer… Depois do que aconteceu entre eles, Joana não sabia como iria conseguir lidar com tudo aquilo dali para a frente, coisa que Ruben ira querer esclarecer o quanto antes, mas ela ainda não estava preparada para isso, infelizmente.

- Mas está a chover imenso, aproveitamos para continuar aqui assim, agarradinhos, conversamos e quando a chuva abrandar vamos os dois para o hotel! – tentando encontrar um meio termo que servisse de solução, ele foi suficientemente expressivo para fazê-la perceber que não queria que se fosse embora

- Conversamos depois… Eu agora apanho um táxi! – apesar de ver um brilho tristinho arriar aqueles olhos cor-de-mel que fixavam os seus, ela mostrou-se irredutível na sua decisão

Apesar de querer muito continuar a partilhar daquela felicidade bem ali ao lado dela, Ruben mostrou-se tão compreensivo quanto conseguiu, não voltando a insistir e libertou-a passivamente, para que ela pudesse ir embora. Joana lançou-lhe mais um sorriso, esperançosa que fosse o suficiente para que ele conseguisse olhar e ler-lhe o coração, agora outra vez seu. Afastou-se sem mais olhar para trás, dando início a uma corrida apressada debaixo da chuva.

- Joana! Joana, espera! – sensivelmente pouco após ela ter saído junto de si, Ruben correu atrás dela, conseguindo ainda agarrar-lhe a mão e puxá-la novamente, no intento de obter uma réplica à questão que deixara em aberto

- O que estás a fazer? Vais ficar outra vez todo encharcado… - assertivou prudentemente, mas sendo agora demasiado tarde para isso… estavam ambos desprotegidos e à mercê daquele temporal, novamente de roupas coladas ao corpo e com a água da chuva a escorrer-lhes pelo rosto   

- Ficaste de me dar uma resposta à pergunta que te fiz esta manhã… Jantamos junt…

- Sim, jantamos… Jantamos juntos esta noite! – respondeu prontamente logo que o interrompeu, não sentindo a necessidade de ponderar

- Prometes? – um sorriso perfeito formou-se nos seus lábios, gradualmente, onde ainda padecia o doce sabor do beijo

- Prometo! 

- A sério que prometes? – insistiu, formando uma pequena artimanha que lhe surgiu no momento

- Sim, Ruben, prometo! – voltou a assegurar, não dando quaisquer sinais de dúvida

- Mas prometes mesmo?

- Já disse que prometo, chato! 

- Tudo bem, já percebi… Mas então não te esqueças que prometeste três vezes! – rematou, mostrando no seu corpo de homem, a acuidade de um miúdo, que iria sempre mostrar ser

Joana apercebeu-se que tinha sido desmantelada no meio da perspicácia dele, mas não conseguiu disfarçar o sorriso que lhe aformoseava o rosto pueril. À medida que se ia afastando, as mãos, até à altura unidas, iam escorregando uma na outra até serem obrigadas a uma separação, que Ruben rezou interiormente para que fosse breve. Ela afastou-se, decorando todo aquele cenário de deslumbre para levar consigo durante todo o tempo de regresso, e ele deixou-se ali ficar, vendo-a partir numa nova correria.
E finalmente, Ruben, havia descoberto que o bom da saudade é a alegria do reencontro, o reencontro de um amor que poderia chamar novamente de seu.  



Queridas leitoras, antes demais quero pedir-vos imensas desculpas, pela demora de uma nova publicação, mas infelizmente não a consegui fazer mais cedo!
Contudo, deixo-vos com um novo capítulo grandito,
que espero que gostem
e não se esqueçam de deixar os vossos comentários, que como já sabem, 
são  muito importantes no insentivo à continuação da escrita, assim como também gostava muito de ter as vossas opiniões em relação ao rumo da história! :)
Beijinhos a todas,
Joana  



10 comentários:

  1. Esta perfeito! :D Adorei milhões, asério *.*... como adoro qalqer capitulo qe escrevas!
    Parabéns pela maravilhosa escrita e maravilhosa imaginação :)
    E esse jantar vai mesmo acontecer ou a Joana não vai aparecer? Eu gostava qe ela aparecesse e o Ruben decerteza qe tambem ia gostar :p
    Beijinhoos

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  2. Que lindo!
    Amei!
    Estou fascinada pela qualidade da tua escrita.
    Parabéns!
    Beijinhos

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  3. Nossa, como esperamos por isso. Esses dois são mesmo fofinhos juntos, não tem cabimento nenhum ficarem separados. Quero mais sim? Completamente apaixonada pela forma como escreves.

    Beijos.

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  4. Juro, que se houvesse mais para ler continuava com o maior gosto, e não me cansava. Tá simplesmente fantástico, lindo, maravilhoso, amei. Eles já mereciam este momento, e nós também.
    Só espero que a Joana não falte ao jantar, afinal ela prometeu, três vezes, e que ela tire de vez todos os macaquinhos que andam naquela cabecinha. Eles amam-se e merecem tudo de bom, mas precisam de conversar e esclarecer tudo, principalmente o motivo que levou a Joana a deixá-lo, para poderem ficar em paz um com o outro sem entraves nem segredos.
    Adorei, mas vou ficar toda roidinha à espera do próximo, continua.

    Beijocas

    Fernanda

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  5. Está tão lindo e tão perfeito, meu anjo!
    Cada capítulo no avançar desta história mostra-se sempre mais e mais maravilhoso, mais e mais chamativo para as leitoras.
    Amo a forma como escreves e estou certa de que não existe outro nome para tal sem ser TALENTO!
    Continua sempre a brindar-nos com este teu dom, princesa.
    Beijo grande, love you <3

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  6. Minha linda desculpa só comentar agora mas estive uns dias sem acesso à net e no tlm n dá grande jeito p comentar lool

    O capítulo está lindo, adorei o "momento" deles a recordar o passado só espero que agora não haja nada a separá-los LOL quero-os juntinhos :P

    Beijocas

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  7. Olá!
    Nem sei muito bem o que te dizer, está tão brilhante este capitulo, tão romântico, tão cheio de sentimento e emoção...
    Para mim, este é sem duvida um dos melhores, senão o melhor capitulo que já escreveste!!

    Continua com este magnifico trabalho e nunca deixes de escrever.
    Ah, deixa a Joana ir ao jantar, ela prometeu :)

    Beijinhos

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  8. Também não sei o que dizer, teus capítulos me deixam sempre sem palavras. PERFEITO, sem mais. Mas espero mesmo que ela cumpra o prometido - 3 vezes - e vá ao encontro do seu amado *-*
    Beijos.

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  9. P E R F E I T O ! ! ! ! :P

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  10. Capítulo Fantástico, muitos PARABÉNS! o melhor ,sem qualquer dúvida, até agora.
    Comecei a ler a tua fanfic à uns dias, e a escrita foi tão cativante que me levou a querer ler mais e mais. Acho que caracterizas muito bem a personagem do Ruben, que eu admiro imenso, e isso faz com que tudo saia muito mais verídico e fantástico. Continua !

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