-
Acho que não vou voltar a sair desta cama durante os próximos tempos. – a voz
calma de Ruben escapuliu-se abafada contra a almofada e o ombro da mulher que
considerava ser o amor da sua vida, que acolhia bem junto a si
Foi
na alvorada do dia seguinte quando a manhã chegava ainda precoce e sem
conseguir lutar mais contra as suas vontades, que ele trocou a frieza e solidão
dos seus lençóis pelos de Joana, quando irrompeu secretamente pelo quarto de
hóspedes pertencente ao grupo de meninas naquela semana, e subiu à cama onde a
sua mais-que-tudo repousava em sonhos venturos.
Como
se nunca tivessem parado de o fazer, assim que o sentiu chegar junto a si, o
seu corpo gravitou de imediato contra o dele, encontrando rapidamente o ângulo
perfeito para se aninharem.
Àquela
altura Joana nunca pensara em vir a agir tão descuidadamente mas era difícil,
quase mesmo impossível, medir a lógica; distinguir o certo do errado, quando o
calor que Ruben irradiava a fazia sentir tão aconchegada e o corpo dele parecia
corresponder tão bem às necessidades do seu.
Ela
riu levemente daquele comentário, ainda de olhos cerrados, ainda a tentar
acalmar a agitação do seu estômago que a despertava nos – para si já tão habituais
– enjoos matutinos.
-
Que horas são? – perguntou sussurrante, como se elevar a voz pudesse vir a
deixá-la mais enjoada
-
Ainda é cedo. Podemos ficar a dormir mais um pouco.
Mas
Joana não conseguia voltar a adormecer. Um nó havia-se formado no cume da
garganta, o estômago parecia ter conhecido o seu avesso e até o simples ato de
respirar contribuía para a deixar mais nauseada pela mescla de perfumes que
planavam o quarto, praticamente impercetíveis a um nariz humano comum, porém
não ao nariz sensível de uma grávida.
Deitada
no centro da cama com os braços de um Ruben quase adormecido em seu redor,
esforçou-se por não fazer nenhum movimento que o alertasse e esperar que a
vontade que tinha em correr para a casa de banho passasse, mas não passou, e
quando a pressão no abdómen deixou de lhe dar tréguas, nenhuma outra solução
lhe restou que não fosse desapegar-se do enlace dele, afastar as cobertas e
correr para se debruçar sob a sanita.
-
Joana? – ele ergueu o tronco com o mesmo rompante que sentiu o outro lado do
colchão ser desocupado, e saltou imediatamente da cama para seguir atrás dela –
O que é que se passa?
Quando
entrou na casa de banho e a viu vergada na bacia, acendeu a luz que até então
permanecia apagada, e ajoelhou-se atrás dela para lhe segurar o cabelo que caía
despreocupadamente em torno do rosto. Com a mão direita que tinha livre
afagou-lhe as costas em movimentos circulares e calmantes, esperando que de
alguma forma a fizesse sentir melhor.
-
Sentes-te melhor? – perguntou ao fim de um minuto ou dois, quando a sentiu
começar a levantar e a viu pressionar depois a alavanca do autoclismo
Joana
assentiu apenas e arrastou-se morosamente até ao lavabo para escovar os dentes.
-
Esta é a fase da gravidez que eu estou desejosa que acabe o mais rápido
possível. – confessou, a falar meio a sério e meio a brincar, enquanto colocava
uma pequena porção da pasta dentífrica na sua escova elétrica
Ruben
não pôde deixar de rir daquele desabafo quando a sorveu para dentro dos seus
braços e lhe beijou carinhosamente o topo da cabeça.
-
Vai passar… Desculpa. – ele pediu em compaixão, porque apesar de saber que
aqueles sintomas eram nada mais que naturais no estado de esperanças, odiava
não puder fazer muito que a ajudasse a aliviar aquele desconforto
Durante
todo o tempo que Joana usou para escovar os dentes, Ruben não saiu do seu lado.
Reclinou o corpo à parede mais próxima de si, e com as mãos resguardadas nos
bolsos das suas calças do pijama, ficou a olhá-la através do espelho
perfeitamente enquadrado no centro da parede.
Era
um sentimento tão libertador poder finalmente ficar a admirá-la sem ter que
recorrer a desculpas incoerentes e apressadas, olhá-la simplesmente porque
podia; porque Joana era a mãe do seu filho; a mulher com que um dia, tinha a
certeza, iria casar, e esse pensamento fez crescer em si a sensação de que
naquele momento se tinha tornado o homem mais feliz à face da terra.
-
Acho-te a mulher mais bonita do mundo, sabias? – perguntou-lhe com toda a
adoração que podia suportar, quando os pensamentos se tornaram demasiados para
serem só seus e tinham de ser partilhados com ela
Joana
jogou fora a água com que tinha bochechado a boca, e esticou o braço para
alcançar a toalha e secar os lábios.
-
E tu és um tolo, sabias? – ripostou com um sorriso divertido enquanto o olhava
através do espelho para depois se voltar para ele – És capaz de dizer isso
depois de me teres visto, literalmente, a deitar o jantar fora?
-
Digo e vou continuar a dizê-lo até ao dia em que decidas acreditar em mim.
-
Não sei porque é que ainda me dou ao trabalho de discutir estas coisas contigo.
-
Sinceramente eu também não sei. – concordou também, entrando no mesmo espírito
de chacota com ela, logo que se voltou a aproximar – Comigo não tens hipótese.
-
Ai não? – Joana desafiou
-
Não. Se sentir que te deva dizer o quão deslumbrante te acho; o quão linda tu
és, independentemente da ocasião, digo e pronto. – asseverou, beliscando-lhe
suavemente a pontinha do nariz entre o seu indicador e polegar, deixando-a a
rir
-
E tu também sabes que não é aconselhável contrariar uma mulher grávida, não
sabes? – as suas sobrancelhas arquearam perfeitamente
-
Esse é um conhecimento que vou aplicar com a experiência. – Ruben piscou-lhe o
olho num jeito cúmplice e comprometido – Ainda tenho tanta coisa para aprender…
-
Ainda tens tempo, não te preocupes. – sossegou-o imediatamente, afinal de
contas esta era a primeira experiência de uma gravidez na vida dos dois, e
ainda havia muito para aprenderem um com o outro
Joana
acabou por lhe contornar o tronco com os braços e por alguns instantes
deixaram-se ficar em silêncio.
-
Estás a pensar em quê? – também ela partilhava da mesma sensação de poderem
voltar a ser aos poucos, até restaurarem por completo toda a confiança que um
dia tiveram, um livro aberto um para com o outro
-
Estou a pensar nas saudades que tinha tuas… De conversar contigo até sobre as
coisas mais palermas. – declarou com um sorriso – Desde o momento que chegaste
a esta casa e até há umas horas atrás que não tínhamos trocado mais de duas ou
três palavras, e quando o fizemos foi para discutir. E eu odeio quando
discutimos. Não quero mais fazer isso.
-
Acabaram-se as discussões entre nós. Não há nem vai haver mais motivos para
isso.
-
Ainda bem. – ele suspirou aliviado e trouxe as mãos de Joana até aos seus
lábios para beijar delicadamente – Queres que te prepare um chá? Alguma coisa
para comer?
-
Não, não é preciso. Só quero dormir mais umas horinhas.
Ruben
concordou e levou-os de volta para o quarto, onde debaixo dos cobertores
encontraram de novo, e instantaneamente, o seu lugar.
Já
aquando confortáveis nos braços um do outro, ele não conseguiu evitar de
perambular por um instante por baixo dos lençóis até se encontrar ao nível da
barriguinha de Joana para falar ao seu bebé.
-
Vais deixar a mamã descansar, não vais, Pêssego?
– sussurrou, mesmo antes de lhe beijar a pele que ele mesmo tinha descoberto
-
Pêssego? – Joana riu com adoração – É
assim que lhe vamos chamar?
Regressando
debaixo das cobertas para olhá-la, deixou o seu corpo pairar sobre o dela no
processo.
-
A ideia foi da Sofia, e até descobrirmos se é menino ou menina…
-
Eu gosto da ideia. – acabou por aprovar, torneando-lhe a face delicadamente com
a mão, gostando da fricção que a barba fazia na polpa dos seus dedos
Ruben
beijou-lhe o queixo, depois o peito e voltou a descer.
-
Mal posso esperar para te conhecer. – confessou com um brilho no olhar que
porém Joana não pôde ver, logo que regressou junto do ventre e o acariciou,
como só ele sabia
Era
difícil para Joana não se emocionar com qualquer situação que mexesse com os
seus sentidos, e presenciar todo o entusiasmo que Ruben mostrava ter cada
momento um pouco mais, em vir a ser pai, deixava-a num completo holocausto de
emoções. Esperava intimamente que conversar com o bebé se torna-se num hábito
que gostava de o ver levar até ao final da gestação.
Não
foi muito tempo depois, e devido ao cansaço que os corrompia, que voltaram a adormecer
só para despertarem nas duas horas seguintes, quando os primeiros raios de sol
começavam a espreitar os jardins da vivenda.
-
Ru, tenho fome. – Ruben acordou com o queixo e os braços de Joana pregoados em
seu peito, e o olhar dela projetado diretamente na sua direção
-
Bom dia. – gracejou, com um sorriso preguiçoso a cobrir-lhe uma cara sonolenta
-
Bom dia. – desejou também, passando logo e mais uma vez à parte mais importante
– Tenho fome.
Ruben
espreguiçou-se debaixo do corpo dela para desentorpecer os membros e com isso
livrar-se de toda a dormência.
-
Que horas são?
-
Sete. – Joana respondeu, acabando por se sentar em cima dos seus calcanhares e
ao lado do corpo dele
-
Tens fome, é? – ele afastou as cobertas e puxou o corpo para cima e para trás,
para vê-la sorridente a consentir vigorosamente com a cabeça – Então vamos
desder, que eu preparo o pequeno-almoço para nós.
Por
causa dos enjoos, normalmente e apesar de não ser aconselhável, Joana tinha-se
acostumado a saltar a primeira refeição, mas a partir daquele dia essa rotina
iria conhecer uma nova transformação. Parecia que até o bebé se começava a
adaptar ao novo ponto de viragem na vida dos pais, e por isso procurava por
novas fontes de energia.
Passaram
a cara por água morna e saíram do quarto pé-ante-pé, de maneira a não incomodarem
ninguém que pernoitava no mesmo corredor, e desceram ao andar debaixo para
enveredar por uma cozinha que aos poucos amanhecia.
-
Apetece-te comer alguma coisa em especial? – ele perguntou-lhe com carinho,
começando a olhar o interior do frigorífico
-
Qualquer coisa para mim está bem.
-
Queres panquecas recheadas com compota de morango e nutella? – aquela era uma das suas especialidades secretas que em
tempos tinha feito delicias ao paladar e coração de Joana
No
entanto ela torceu o nariz rapidamente. Embora durante toda a sua vida tenha
tido um dente doce, o chocolate e algumas outras doçuras tinham vindo a
deixá-la nauseada nos últimos dias.
-
Vou tomar isso como um não. – confirmou, quando a olhou acima do ombro e voltou
a procurar – Então que tal croissants
caseiros que a Glorinha nos deixou, e torradas acompanhadas de um bom café?
-
Não posso beber café…
Ruben
esbofeteou-se imediatamente em pensamento.
-
Desculpa, esqueci-me. – começava a sentir-se um amador e depressa tentou
encontrar outra solução, desta vez ao espreitar os armários – Cereais?
Joana
agitou a cabeça em conceção negativa. A simples recordação do sabor a leite
quase a fez enjoar de novo.
-
Vais ter que me ajudar aqui, Sra. “Qualquer coisa para mim está bem”… Estou a
ficar sem ideias.
Ela
acabou por rir de embaraço em colocá-lo naquela posição e foi para junto dele
quando contornou a bancada.
-
Waffles com iogurte natural; pedaços
de fruta e chantilly. – ela ditou, como se tivesse agora mesmo memorizado uma
ementa que nem sequer havia sido prescrita por si – E sumo de laranja.
-
Uau! Sabes exatamente o que queres. – Ruben espicaçou em brincadeira, porém
olhando-a com uma seriedade quase incrédula – Tinha-me ajudado se tivéssemos
logo começado por aí.
-
Desculpa. – a sua mão compadecida tocou-lhe o peito áspero e torneado – Nem
para mim é fácil decidir o que comer… Às vezes o que comi há apenas umas horas,
agora pode deixar-me completamente agoniada.
-
Não tens que pedir desculpa. – ele disse exibindo o seu lado compreensivo,
quando não resistiu em tocá-la também, a ela nas faces frescas e perfeitamente
esculpidas, desnudadas de qualquer maquilhagem – Até porque é aqui este pequeno
general que dá as ordens. – do rosto dela as suas mãos voaram então para lhe
acariciar a barriga, não querendo perder uma oportunidade que tinha para
fazê-lo – Só temos de respeitar o que ele pede.
Conseguindo
convencê-la a sentar-se na bancada e simplesmente esperar, Ruben
responsabilizou-se inteiramente pela confeção do pequeno-almoço. E naquele
momento ele tinha tomado uma decisão: Todas as coisas as quais estavam
restringidas da alimentação de Joana, estavam restringidas também da sua.
Aquela gravidez era dos dois, então todos os esforços por esta implementados,
Ruben pensou, tinham de ser feitos igualmente pelos dois. E naquela manhã iria
começar já pelo café. O café escaldante, forte, que gostava de tomar simples;
uma perdição que ambos partilhavam e agora um esforço que ambos iriam adotar
até à chegada do bebé.
-
O que foi?
Já
com a mesa posta e recheada de todos os mimos que os vinham satisfazer, Ruben
foi sentar-se impreterivelmente ao lado dela na bancada onde tranquilamente
deram início a uma refeição simples, partilhada a dois.
-
Nada. – ele respondeu com inocência impressa no olhar e um sorriso que se
esforçava por esconder, enquanto a via deleitar-se com uma jorrada de chantilly que apinhava em um waffle
-
A tua mãe nunca te ensinou que não é simpático olhares diretamente para as
pessoas quando elas estão a comer?
-
Mas eu nem acredito que sejas a mesma pessoa. A Joana que eu conheço é um pisco
a comer, mas tu…
-
Se te estás a preparar para me insultar-
-
Não, nada disso. Só estava a fazer uma observação.
-
Hum, hum. – o olhar reprovador que Joana lhe lançou foi o suficiente para
fazê-lo repensar na escolha das suas palavras, e mais importante – na escolha das
suas observações
-
Aliás, agora que me lembro… Não eras tu que odiavas chantilly de morte?
-
Era, mas já experimentaste comê-lo com estes waffles? É a melhor combinação de sabores do mundo! – o ar de
aprazimento que lhe destingiu enquanto saboreava o que parecia ser a receita da
felicidade, Ruben iria pessoalmente certificar-se, que nunca abandonaria o seu
pequeno e precioso rosto
A
faceta séria que portava para mantê-lo longe de problemas acabou por cair, e
ele então riu por vê-la assim e roubou-lhe uma dentada de waffle que Joana segurava entre os dedos.
-
Ei! Restringe-te ao teu lado do prato.
-
Tens razão, é mesmo delicioso. – garantiu, segundos antes de se perderem entre
suaves gargalhadas – É verdade, e onde é que está o meu super, mega beijinho de
bom dia?
-
Não sei do que estás a falar… - ela falou despreocupadamente, voltando a pousar
o copo de sumo de laranja natural, sob a superfície da bancada, depois de o ter
feito voar até aos lábios
-
Joana… - Ruben advertiu, tentando ao máximo parecer intransigente – O meu beijo?
-
Pode aparecer alguém, Ru… - tentou justificar o mais plausível que conseguiu,
mas mais justificações daquelas simplesmente não eram aceitáveis
-
E se aparecer? Eu não estou mais preocupado com isso e tu também não devias
estar. Esta situação toda termina hoje… Chega de nos escondermos.
Verdade
era que enchia-a de confiança, certeza e fé, vê-lo tão determinado em querer
pôr um ponto final àquele noivado e isso fazia com que não fosse capaz de
resistir aos carinhos pelos quais Ruben tanto lutava. Não por muito tempo.
-
Tu não desistes pois não? – inquiriu com um sorriso apaixonado, e já sabendo a
resposta de antemão
-
De ti? Nunca. – e mais uma vez lá estava aquela confiança, aquele poder de
controlo que quase a deixava fora de si
Joana
não esteve em posição de lhe continuar a negar o que quer que fosse e então
inclinou-se na direção dele, repenicando-lhe um simples mas delicioso toque de
lábios, para ser inquestionavelmente prolongado pelas vontades e bem-querer que
Ruben tinha, quando ela se voltou a afastar e que se arrastaram para o canto da
boca, a linha do maxilar e terminaram no pescoço, deixando-a deleitada e sem
mais pensamentos coerentes.
***
- Prontinho. – asseverou Ruben quando arrumou
a mala de Joana no interior da bagageira do jipe e baixou a porta – Tens a
certeza que que não queres ficar mais um pouco? – caminhou para junto dela que
permanecia encostada à porta do condutor, sem vontade de a ver partir
-
Tenho. Eu não quero cá estar quando as meninas chegarem… Quando a Inês chegar…
Não estou pronta para vê-la depois de tudo…
-
Ei, ei… - a sua voz transmitiu-lhe calma e tranquilidade quando teve
necessidade de a interromper, e lhe albergou ao mesmo tempo o rosto entre as
mãos – Eu não quero que te sintas culpada por nada disto que está a acontecer.
Nada disto é culpa tua. Percebes o que te estou a dizer, não percebes?
Joana
percebia, no entanto não deixava de ser uma situação desconfortável… para
todos.
-
É melhor começar a fazer-me à estrada, não tarda elas estão aí.
-
Vais voltar já para casa?
-
Não. Acho que vou passar em casa dos meus avós primeiro… - ela disse, pensando
agora mesmo sobre o assunto – Quero explicar-lhes o que está acontecer connosco
antes de partirmos para Nova Iorque.
Ruben
consentiu.
-
Eles sabem do bebé?
-
A minha avó sabe, e sinceramente a esta altura o meu avô também já deve saber…
Eles são unha com carne e não conseguem esconder nada um do outro, não por
muito tempo, pelo menos.
-
E sabem que sou eu o pai? – certamente que ainda não sabiam, pois nunca
aceitariam comparecer ao seu casamento se fizessem a mais pequena ideia que o
filho que a neta carregava no ventre era do noivo de outra mulher, e mesmo
Joana acabou confirmá-lo com um aceno cético da cabeça – Então eu quero lá
estar quando lhes contares, vamos contar-lhes juntos… Os teus avós são a
família mais próxima que tens e eu sei o quanto eles significam para ti.
Joana
não teve que concordar ou deixar de concordar com ele. Era indubitável e mais
do que natural que era exatamente isso que iriam fazer, tal como todas as
decisões futuras tomadas em prol da relação – iriam ser feitas juntos, lado a
lado, inseparavelmente.
-
Isto está mesmo a acontecer, não está?
-
Isto está mesmo a acontecer. – garantiu prontamente, o timbre a não deixar-se
quebrar, a atitude mais determinada que nunca – E não há volta atrás, pois não?
– não evitou em procurar saber, dúvidas que ainda pudessem assombrá-la
-
Não há volta atrás. – mas Joana não só parecia como estava cem por cento segura
daquilo que dizia
Ruben
puxou-a para um abraço apertado e beijou-a terna e demoradamente na testa, que
curiosamente se ajustava ao nível perfeito da sua boca. Como se por ironia do
destino, a estatura de Joana tivesse sido gerada para se intercalar na sua. E então
ajoelhou-se diante dela, segurando-a no lugar com as mãos vincadas um pouco
abaixo das ancas.
-
Até já, filhote. – ele acabou por lhe mimar a barriga com mais uma enxurrada de
afagos e ela deixou-o, porque sabia que Ruben precisava, e quando terminou de o
fazer elevou o queixo para olhá-la mesmo do sítio onde estava – Vemo-nos dentro
de algumas horas.
O
fardo de uma despedida, ainda tal como ele disse – seria apenas por umas horas
–, deixava um sabor agridoce na boca de Joana. Dizer-lhe adeus sob os joelhos
da promessa de se voltarem a ver num futuro propínquo, prescrito de planos para
uma vida a dois, nunca atraíra um bom presságio e daí as separações
dissaborosas e ingratas que advieram no passado. Esse pensamento percorreu a
mente de ambos, apesar de nenhum querer tocar no assunto. Joana não iria
aguentar se mais algum percalço se intrometesse nas suas vidas, e honestamente
Ruben também não.
-
Vem cá. – ela chamou-o para si fazendo-o levantar de novo, o olhar turvo pelas
lágrimas que se esforçava para não deixar cair na frente dele
Colocando-se
na pontinha dos pés para lhe contornar completamente o pescoço com os braços,
as pálpebras de Joana cerraram-se no momento em que as testas se encontraram a
meio caminho, num tombo delicado e necessário.
-
Volta para mim. – pediu num murmúrio inabalado, tão profundo que Ruben pôde
senti-lo ecoar nas paredes da sua alma
-
Eu volto. – respondeu com a mesma emoção –
Assim que resolva esta situação toda e fique finalmente livre, vou a
correr para ti. Eu sou teu, Joana. Sempre fui.
Ruben
olhava-a com tanto amor, tanta adoração que foi impossível para Joana não se
perder na cor dos olhos dele, as lágrimas a suspenderem-se nas pestanas.
Quando
se beijaram avivaram em si aquela sensação de quem perde o folgo, e respirar
deixa de ser uma necessidade; aquele apetite que não é saciável; quando os
astros finalmente se alinham e o corações voltam a bater no ritmo certo. Uma
mistura de sensações a aconteceram todas ao mesmo tempo. E até àquele momento
nunca os lábios um do outro lhes pareceram tão suaves e apetecíveis.
Joana
acabou por entrar no carro deixando ser Ruben a fechar-lhe a porta. Pressionou
o botão para deslizar o vidro e deixá-lo apoiar os antebraços na ombreira.
-
Por favor, conduz com cuidado. – alertou sinceramente, no seu instinto nato de
proteção que sempre fizera recair sobre ela – Liga-me assim que chegares a
Lisboa.
-
Eu ligo, não te preocupes. – sossegou-o no mesmo segundo, enquanto cruzava o
cinto de segurança na frente do peito – Espero que corra tudo bem aqui, e vai
com calma… Sabes que não vai ser fácil.
-
Eu sei. – ele suspirou e acabou por lhe sorrir suavemente, acariciando-lhe o
rosto como se tentasse memorizar através do toque, cada linha, cada contorno do
semblante mais perfeito que alguma vez vira – Faz boa viagem.
-
Obrigada. Até logo.
Rodou
a chave na ignição e engatou a primeira, cruzou somente a calceta traseira do
jardim, pois mesmo antes de trespassar a saída da vivenda através dos portões
elétricos que Ruben tinha previamente aberto, foi obrigada a parar quando o viu
correr na sua direção, através do espelho retrovisor.
-
Passa-se alguma coisa? – ela perguntou, subitamente preocupada logo que voltou
a descer o vidro da janela
-
Eu amo-te. – Ruben disse numa só respiração, quando inclinou a cabeça para o
interior do carro, para olhá-la no fundo dos olhos aquando proferidas as
palavras – Não podia deixar-te ir embora sem te dizer primeiro que te amo.
Sabes disso, não sabes?
Joana
encarou-o em silêncio por um largo minuto, como se tivesse desaprendido a
falar. Por vezes Ruben tinha a capacidade de a deixar sem palavras, de a
consumir ao ponto de a fazer perder a reação. E esta era uma dessas vezes, ele
conheci-a tão bem.
Os
seus olhos voltaram a lacrimejar, e desta feita sabia que não podia culpar as
hormonas. Era ele. O responsável era ele. Achava que nunca iria ser capaz de se
acostumar aos elogios espontâneos, aos mimos inesperados, aos desabafos do
coração que Ruben não prescindia em partilhar consigo nos momentos mais
imprevisíveis e casuais, e no fundo Joana adorava ver-se ser surpreendida por
ele de todas essas maneiras.
-
Eu também te amo. – acabou por confessar, a voz a deixar-se quebrar pela
infinidade de comoções – Muito. – Ruben não precisou de ouvir mais nada, vergou
o corpo o mais que pôde para dentro do carro para conseguir beijá-la
completamente, e oh Deus, se beijou
As
mãos de Joana soltaram o volante e foram pousar nas extremidades do rosto dele,
puxando-o para si o mais possível até sentir o aroma da colónia da qual Ruben
se mantinha fiel há anos, entranhar-se nos poros da sua pele.
Ele
esticou o braço e soltou-lhe o cinto de segurança, tinha de a sentir o mais
perto de si possível. Que se danassem as barreiras. Que se danasse tudo.
Separando
as bocas apenas por um par de segundos, deixou-a sair do carro e assim que a
trouxe de volta para o lado de fora viatura, o corpo dela era inteiramente seu.
Empurrou-a suave e firmemente contra a porta que então já tinha fechado, as
mãos pesadas sob a cintura, os dedos longos a vincarem-lhe a pele por cima das
roupas. As línguas voltaram a invadir a boca um do outro sem um pedido de
consentimento que já não era necessário entre eles, num beijo mais urgente e
delirante que o anterior, a deixarem-se levar pelo que os seus âmagos ditavam,
pelo que o sentimento queria.
-
É melhor ires embora agora antes que eu não te consiga deixar ir. – a
respiração dele era pesada contra as suas faces frias, o ar gélido da manhã a
criar aquela pequena nuvem de neblina e orvalho aquando expelida pelos lábios
Joana
soltou meia gargalhada intercalada por meio soluço de um choro muito leve,
estrangulado pelas lágrimas de felicidade que agora lhe definam as sinuosidades
das maçãs do rosto.
Voltou
a beijá-lo uma última vez, e quando finalmente conseguiram separar-se, Ruben
seguiu o carro até à estrada, já do lado de fora dos portões e ficou a vê-la
desaparecer na linha do horizonte – um horizonte que esperou ele –, viesse
carregado de promessas.
***
Mais
tarde naquela manhã, pouco depois de as meninas terem regressado da despedida
de solteira numa noite tipicamente lisboeta, que num dos aposentos do andar
superior Ruben procurou por Inês, acabando por encontrá-la sem dificuldades e
ao fim de pouco tempo, no interior do seu antigo quarto, rodeada por duas
modistas e uma das suas melhores amigas que tinha trazido consigo da capital,
para a última prova do vestido de noiva antes de subir ao altar.
-
Ruben, não podes entrar aqui, estamos a aprovar o vestido. – exalou a amiga de
Inês, que correu para a porta assim que o viu cruzar a ombreira
-
Agradeço a tua preocupação relativamente a superstições, mas eu preciso de
falar com a Inês.
-
Falas depois de lhe colocares a aliança no dedo, agora estamos a
prepararmo-nos.
-
Camila, lê os meus lábios: Eu vou falar com a Inês. Agora. – ele declarou pausadamente
num tom sério e absoluto, a conversa definitiva que queria travar com a sua
quase-a-deixar-de-ser, noiva, não iria ser impedida nem que o Papa se
intrometesse, e claramente não evitando um véu de sarcasmo usado nas suas expressões
-
Deixa-o entrar. – Inês acabou por autorizar, olhando-os de soslaio acima do
ombro
-
Mas ele não te pode ver com o vestido antes do casamento, dá azar! – a rapariga
de cabelo loiro-oxigenado afirmou como questão de facto, e com o indicador a
perfurar o ar
-
Deixa-o entrar, Camila! – ela voltou a insistir, descendo do escalão do pequeno
banco que usara para facilitar a prova do vestido – Importam-se de sair? Eu
preciso de falar com o meu noivo. – perguntou, dirigindo-se primeiramente às
duas modistas de meia idade
Em
silêncio e sem fazer quaisquer intervenções, ambas as senhoras pousaram os seus
kits de costura, os quais serviram de
auxílio a uns ajustes de última hora ao vestido, e acabaram por cruzar-se com
Ruben à saída.
-
Tu também, Camila. – ela advertiu, vendo que a amiga tinha ficado para trás –
Por favor.
Olharam-se
por fim quando o quarto esvaziou… Foi tempo de ficarem a sós. Agora não era só
Ruben, mas também Inês sabia que algo tinha mudado na relação de ambos, e
surpreendentemente estava disposta a falar sobre isso.
-
O vestido é deslumbrante. – referiu ele passivo, num enxergo que lhe lançou ao
tomar lentamente posse do quarto caminhando para o seu interior
-
É, não é? – inquiriu retoricamente numa postura incrivelmente calma e modesta,
enquanto dedilhava o cetim da saia do seu vestido, tirando um vislumbre
melancólico da sua imagem refletida no espelho vertical do quarto – Queria
usá-lo uma última vez antes de o arrecadar no fundo do armário, uma vez que não
vai ter qualquer utilidade.
As
sobrancelhas de Ruben crisparam no mesmo segundo que tomou conta do significado
daquelas palavras, criando-lhe duas linhas singulares vincadas no meio da
testa, e uma rotura de confusão foi-lhe refletida nos olhos.
-
Eu não dormi nada a noite passada, Ruben. – Inês voltou a falar, para se
desprender do seu reflexo que contemplava no espelho e procurar pela figura
dele, quando torneou brevemente o corpo na sua direção
-
Eu também não. – a não ser as últimas
duas horas que foram passadas abraçado a Joana, mas isso, claramente, não
lhe iria dizer – não havia necessidade
-
Eu sei o que vieste aqui fazer. O que tens para falar comigo…
-
Sabes?
Ela
sorriu sem a mínima vontade quando o seu olhar procurou albergar-se ao soalho
do chão. Tinha chegado a altura de jogaram todas as cartas sobre a mesa.
-
Eu posso ser muita coisa, Ruben, mas estúpida, graças a Deus que não é uma
delas. – o seu fáceis assombrou-se por uma realidade que então se estava a
abater sobre eles – E posso também ter andado com os olhos fechados durante
muito tempo, mas sou inteligente o suficiente para saber que te perdi.
O
seu pensamento estava a correr a mil à hora. E estupefacto era decerto um adjetivo que fazia pouco jus ao seu
estado de plena perplexidade, trucidado pelas afirmações dela. Pela postura
dela. Definitivamente que este não tinha sido o cenário que idealizara quando
procurou por todas as hipóteses imagináveis aquando se dirigiria a Inês com a
sentença de colocar um ponto final a uma relação que não tinha sido liberada a
ser vivida.
-
Achas que consegues perdoar-me? – foi tudo o que ele conseguiu dizer naquele
momento e só ao fim de algum tempo… não havia como negar, Inês sabia o que
estava a acontecer
-
Talvez um dia, não sei. – ela abraçou o próprio corpo, como se tivesse de
recorrer a uma autodefesa para não sair ainda mais magoada daquela situação –
Mas não me peças que o faça agora.
Ruben
condescendeu em silêncio. Não podia exigir mais dela.
-
Nunca foi minha intenção arrastar-te a ti e aos teus sentimentos para esta
história. Nunca me passou pela cabeça usar-te, e se pensas que foi isso que eu
fiz, volto a pedir-te desculpa pela forma errada como agi.
-
Eu sei que nunca intencionaste usar-me para ultrapassares a tua antiga relação,
sei que tentaste fazer-me feliz e até certo ponto conseguiste… Mas chega aquele
momento que não dá para continuar a fingir. E Ruben… Tu não consegues continuar
a fingir o quão apaixonado continuas a ser pela Joana. Esta semana deu para
comprovar isso mesmo, e toda a gente nesta casa o sabe.
-
Nem toda a gente…
-
Toda a gente, Ruben. – Inês garantiu – Os teus amigos sabem-no também, só não
dizem nada para me pouparem à vergonha.
-
Não digas isso. – o seu timbre complacente, expressou a sua tentativa de
remissão – E eles são teus amigos também.
Inês
voltou a sorrir, porém preferiu não comentar.
-
Tu és uma pessoa muito especial, mas nós não…
-
Nós não escolhemos quem amamos. – Inês concluí-lhe o raciocínio, acabando por
referir-se aos seus sentimentos por ele naquela teoria – Eu sei disso também. Só
pensei que talvez, com o tempo, eu conseguisse fazer-te esquecer dela, mas
estava errada… Não há tempo suficiente possível, que fizesse isso acontecer.
-
Estás a ser tão compreensiva… - confessou enquanto a olhava num misto de
curiosidade e cautela, esperando que a qualquer momento ela reatasse uma
discussão voraz vinda do nada
Inês
riu discreta e quase que milagrosamente por vê-lo tão deslocado assim. Sabia
que Ruben não estava habituado a ver aquele seu lado mais compreensivo e humano
e por isso mostrar-se tão admirado com ela, no meio de todas as circunstâncias.
E chegava mesmo a ser triste e até ridículo, Inês pensou. Como é que estava
disposta a fazer o compromisso mais importante da sua vida ao lado de um homem
ao qual nem se dava a conhecer a cem por cento? De uma forma ou de outra, por
estes ou aqueles motivos, aquele casamento não possuía alicerces suficientemente
fortes capazes de sustentar uma relação que desde o seu começo vinha a mostrar
ter tantas decadências, e por mais que lhe custasse a admitir, no fundo ela
sabia disso.
-
Eu sei que não fui a melhor noiva nem companheira nos últimos tempos, e
desculpa por todas as discussões patéticas que causei entre nós. – admitiu,
tentando ser o mais sincera possível – Eu amo-te, Ruben, mas amo-me mais a mim.
E antes de trocarmos alianças juntamente com votos que sabemos que não iremos
ser capazes de cumprir, vamos poupar as nossas famílias a uma cena, e terminar
este relacionamento quando ainda somos capazes de controlar os ânimos e
comportarmo-nos como pessoas civilizadas.
Ruben
continuava a ver-se ser surpreendido por tamanha maturidade que a via mostrar
ter perante a situação. Sempre imaginou uma cena triste causada no altar quando
não fosse capaz de pronunciar o “Sim, aceito” eterno.
Era
esta a mesma Inês que o convencera a escolher Joana para sua madrinha de
casamento na mera intenção de lhe ferir os sentimentos? A mesma Inês que tinha
causado tantas discussões em ataques de ciúmes por vê-lo trocar um simples
olhar com Joana? Partilhar o mesmo espaço com ela? Respirar o mesmo ar?
-
Uma vez que estamos a ser sinceros um com o outro, eu tenho uma coisa para te
dizer e prefiro que saibas por mim agora, do que venhas a descobrir mais tarde
por outras pessoas. – ele respirou fundo, preparando-se para a confissão mais
difícil que até então enfrentara
Intimamente,
Inês quase que podia jurar saber o que estaria para ouvir da boca dele, no
entanto permaneceu em silêncio enquanto o olhava com expectativa.
-
O bebé que a Joana está à espera… É meu. É o meu bebé. – ele evitou rodeios,
índio direto ao assunto - foi como tirar um penso rápido num rompante súbito
E
foi exatamente para aquela evidência que as suas suspeitas tinham apontado. A
sua premonição estava certa, e apesar de ter criado as suas próprias
pressuposições, ouvi-lo proferir a confirmação das mesmas, despertou a dor
aguda que crescia em seu peito. No entanto o seu orgulho não a deixou vacilar
na presença dele, não se queria mostrar surpreendida – porque de facto não o
estava –, apenas magoada, e secretamente esforçou-se para não deixar cair
nenhuma lágrima e mostrar-se mais forte do que realmente se sentia.
-
Foi o que eu pensei. – consentiu com a voz superficialmente degradada – Vais
assumi-lo? – teve de perguntar, porque apesar de tudo não sabia o ponto da
situação entre a relação dele com Joana
-
Claro que vou. – Ruben respondeu rapidamente – talvez um pouco depressa demais
para com a consideração que tinha com os sentimentos da sua
quase-quase-a-deixar-de-ser noiva – Se pudesse voltar atrás tinha feito as
coisas de maneira diferente, quando eu te digo que nunca foi minha intenção
magoar-te, muito menos com uma traição, estou a ser sincero.
-
É impossível não me sentir magoada, afinal a relação que eu tinha com o meu
namorado e o casamento que andei a planear durante meses, não passaram de uma
mentira.
-
A amizade que tenho por ti sempre foi verdadeira. Sempre te quis ver feliz.
-
Neste caso a amizade só, não foi suficiente. Nunca é. – murmurou culposamente,
acabando por ainda procurar nele algumas explicações – Eu sei que é inútil mas
tenho mesmo de te perguntar.
Inês
fez uma breve pausa procurando alento para continuar, e só falou quando voltou
a ganhar coragem de o olhar novamente nos olhos.
-
O que é que a Joana tem que eu não tenho? O que é que ela te dá que eu nunca
fui capaz de te dar?
Ruben
respirou fundo e rodou alguns graus sobre os seus calcanhares, à procura de
outro ponto de fuga naquele quarto que não fosse o rosto dela. A conversa
estava a ir suave demais, e confrontado com aquela pergunta esperava encontrar
a resposta mais honesta que não alimentasse uma discussão.
-
Eu sei que provavelmente esta é a frase mais batida em todas as separações, mas
esta é a verdade – o problema não és tu, Inês. – garantiu, cruzando na frente
do peito os dois braços nodosos – Não é
a falta de amor da tua parte, não é a falta de atenção ou de companheirismo.
Não é isso que está em causa aqui.
-
É o quê, então? – ela insistiu
-
Há quatro anos eu apaixonei-me perdidamente por uma menina que hoje é mulher, e
simplesmente não consigo tirá-la nem da minha cabeça, nem do meu coração. Eu já
tentei e acredita, não dá. Por muito tempo que passe; por mais que as
circunstâncias nos impossibilitem de ficarmos juntos. – mesmo sem saber, os seu
olhos começaram a brilhar… era assim sempre que falava sobre Joana e do amor que
sentia por ela – Há quatro anos encontrei a pessoa, a única pessoa com quem me
vejo a partilhar a minha vida. É amor. Profundo, raro, inexplicável, que como a
minha mãe já me disse, só se dá uma vez.
Inês
apercebera-se da maneira como Ruben falara da sua – não tão discreta – amada… O
tom de voz que amoleceu, a expressividade do rosto que suavizou, e a energia dos
seus olhos… Ele nunca falara assim de si, ela tinha a certeza disso.
-
E esse amor tu deste-o à Joana. Só pedia que me tivesses amado metade, daquilo
que a amas a ela.
-
Não digas isso, não te contentes com tão pouco. Não existe tal coisa como
ser-se amado às metades, e tu, como qualquer pessoa, mereces ser amada por
inteiro. – ela sentia as palavras de Ruben roçarem nos seus ouvidos, mas era
difícil atribuir-lhes um significado… talvez mais tarde, quando a poeira
assentasse e tudo doesse menos – Se alguém te oferecer menos que isso, não
aceites.
Depois
de tanto tempo a tentar não vacilar, Inês acabou por deixar baixar a guarda e
as lágrimas precipitaram-se-lhe no rosto lentamente. E porque se sentiu o
causador de toda aquela mágoa que agora a lastimava, Ruben tomou a decisão de
se aproximar dela, cordialmente, pronto a confortá-la.
-
Por favor, não. – ela parou-o quando se apercebeu que estava prestes a ser abraçada
por ele – Eu não preciso da tua pena.
Ruben
ficou ali a vê-la lutar contra o choro. Não se sentia destroçado como ela,
porque a decisão de por termo àquela relação na verdade tinha partido de si,
mas porque já tinha vivido tantos momentos da sua vida ao lado dela e no fundo
a amizade que lhe sentia continuava lá, não podia deixar de partilhar com Inês
um pouco da sua dor.
Quando
a sentiu mais calma, foi sentar-se ao lado dela no beiral da cama e foi lá que
passaram a meia hora seguinte… A dizer tudo o que achavam que deveria ser-se
dito, a partilhar o silêncio quando o peso das palavras carregava sobre a
consciência de cada um.
-
Há alguma coisa que possa fazer por ti? Qualquer coisa…
-
O que eu queria de ti, tu não me podes dar. – Inês ditou sussurrante, sentindo
as lágrimas, que então lhe tinham secado sobre a pele, causarem-lhe uma ligeira
sensação de irritação no rosto – Por isso não, não há nada.
-
Espero que um dia no futuro, quando os nossos caminhos se voltarem a cruzar, tu
me possas olhar sem mais mágoa ou ressentimento, Não queria ter de perder uma
pessoa como tu, afinal muito antes de começarmos a namorar, eramos amigos. –
Ruben sabia que estava a pedir o impensável mas teve de arriscar, estava a
sentir-se mal o suficiente, e só procurava agora fazer o mais correto e
minimizar o máximo de dor que conseguisse
-
Talvez o tempo ajude a curar as feridas, mas tanto eu como tu sabemos que nada
será como dantes.
-
Eu sei. – ele compreendeu
O
silêncio voltou a ser imperativo, e àquela altura o que havia mais para dizer?
-
Mas bem… - Inês começou, tentando recompor-se o melhor que podia e que o seu
estado melancólico lhe permitia, erguendo-se enfim da cama – É melhor descermos
e avisarmos todos de que já não vai haver casamento. Está na hora de pormos um
ponto final a isto e cada um seguir com a sua vida. Eu vou tentar seguir com a
minha.
-
Tenho a certeza de que te vais sair lindamente. – Ruben não dizia isto só para
lhe dar palmadinhas nas costas e fazer-se sentir melhor, ele sabia que Inês era
uma mulher que não baixava os braços frente a adversidades e mais tarde ou mais
cedo dava a volta por cima em qualquer caso… e este não seria diferente – Vamos
então.
Esperou
no corredor que ela despisse novamente o vestido e quando voltou surgir
claramente mais recomposta, pela porta do quarto, deixou-a passar na sua frente
e seguiu de perto atrás dela até ao piso inferior, onde se reuniam amigos e
família, e alguns outros convidados começavam a chegar.
O
capítulo da vida deles como casal tinha conhecido então o seu fim. Quanto ao
futuro de Inês, agora só ela o poderia traçar, e relativamente ao de Ruben já
novos presságios e boas-venturanças haviam sido prescritos, aguardando ansiosamente
para serem vividos.
***
-
Avó? Avô? Está alguém em casa? – Joana chamou para dentro da casa dos seus
avós, depois de fechar a porta atrás de si e cursar pelo hall de entrada
-
Menina Joana! – Leonardo cortejou ao vê-la pela primeira vez naquela semana,
quando descia a impetuosa escadaria que ascendia ao andar superior
-
Bom dia, Leonardo! – saudou-o também amistosamente, com um sorriso tranquilo
nos lábios que não passou despercebido ao mordomo da vivenda – Os meus avós
estão cá em casa?
-
Não, menina. Eles tiveram de sair para resolver uma situação no hotel, mas
creio que já não devam demorar.
-
Está bem, então eu vou esperar. – bradou, enquanto desprendia a mala do seu
ombro para pousá-la sobre um dos sofás individuais predispostos na sala de
estar – Quando chegarem por favor diz-lhe que eu estou na biblioteca e preciso
de falar com eles.
-
Com certeza, menina. – o sempre cumpridor Leonardo consentiu, mesmo antes de a
ver desaparecer pela porta da divisão que se agrupava à sala
Quando
ingressou na biblioteca dos seus avós, Joana viu pela primeira vez com atenção
o seu telemóvel desde que chegara de viagem, que acabou por demorar mais tempo
que o previsto uma vez que ainda passou por sua casa para deixar a mala e
verificar o correio.
Demarcadas
no ecrã inicial, discerniu mais de uma dezena de mensagens texto a
desejarem-lhe um feliz aniversário, e sete chamadas perdidas, - quase todas
elas de amigos seus – e mais um número lá no meio que não tinha registado na
sua lista de contatos mas que rapidamente calculou pertencer a uma só pessoa.
Como é que ao fim de todo este tempo ainda não tinham trocado de número? Ela
agitou a cabeça depreciativamente com um sorriso nos lábios, e marcou o número
de volta para fazer a chamada, esperando ser de facto Ruben, a atender do outro
lado da linha.
-
Estava a começar a ficar preocupado. – foi a primeira coisa que o ouviu dizer,
depois de a linha assinalar somente dois toques
Joana
sentiu os seus lábios vestirem um sorriso quase que inconscientemente. O tom
dele era sério, mas sempre tão suave. Como é que podia já sentir a falta dele
quando ainda só há umas horas estivera rodeada pelos seus braços?
-
Desculpa, só cheguei agora a casa dos meus avós… Ainda passei na minha casa
primeiro. – tranquilizou-o, e antes de se conseguir conter, já as palavras seguintes
lhe escapavam por entre os lábios – Como estão as coisas por aí?
-
Estabilizadas. Resolvidas. O casamento já foi oficialmente cancelado. – Joana
não sabia o quão nervosa estava até escutá-lo preferir aquele acerto definitivo,
e pôde finalmente expelir todo o ar que tinha até então retido nos seus pulmões
-
Como é que reagiu a Inês a isso tudo?
-
Melhor do que estava à espera, para dizer a verdade. Vindo dela não esperava
menos que um escândalo, mas correu tudo bem… Conversámos e chegámos a um
consenso. – Ruben falou pacífico, no entanto guardando para si outros
dissabores que tinha travado com a família da sua ex-companheira, sendo que a
última coisa que queria naquele momento era desassossegar as instáveis emoções
de Joana – Está tudo mais calmo agora entre nós… Quer dizer, dentro dos
possíveis, claro.
-
Que bom. Ainda bem. – foi como uma lufada de ar fresco a abater-se sobre si,
finalmente podia voltar a respirar – E quando voltas para Lisboa?
-
Assim que termine de fazer uns telefonemas… Preciso de cancelar o serviço de catering; a banda; enviar os presentes
de casamento para trás... – enumerou ele do topo da sua cabeça, e logo Joana
conseguiu imaginá-lo no outro lado do telefone a passar uma mão no rosto e
roçar a barba, um comportamento muito típico dele em situações de stress – Esta
casa está uma confusão.
-
Desculpa.
- Joana, não te atrevas. – advertiu ele
com seriedade, odiava fazê-la sentir-se culpada
- Ainda é isto que queres? – o seu timbre
portava um mesclado de medo e esperança – …Ficar comigo?
- É o que eu mais quero. Não duvides disso
por um segundo. – Ruben exalou, frustrado em não poder estar ao lado dela
naquele instante e levar-lhe para longe todas as inseguranças – Estou só a
resolver a trapalhada que causei.
Houve uma pausa. Ambos permaneceram a
escutar as respirações um do outro através do auscultador.
- Gostava que estivesses aqui comigo,
estou à espera que os meus avós cheguem para lhes contar…
- Eu também queria estar aí contigo, mas a
verdade é que não sei quando vou conseguir sair daqui.
- Eu sei. Não te preocupes. – ela
compreendeu e Ruben agradeceu-lhe silenciosamente
Surgiu um novo
silêncio. Um tipo de silêncio que não incomoda e que serve apenas para se ser
ouvido, que é ditador de tudo o que não precisa de ser pronunciado… como o bater
daqueles dois corações, oh… tão
apaixonados.
- O que achas que
os teus avós vão achar disto tudo? – perguntou então, sendo que Joana
naturalmente os conhecia melhor
- Sinceramente
não sei que reação esperar deles… Os meus avós são as pessoas mais honestas e
compreensivas que conheço, e tenho a certeza que assim que lhes contar sobre a
nossa situação, eles terão alguma coisa a dizer, mas no fundo não sei. – ela
pausou por um instante, sendo que quando voltou a falar, deu liberdade aos seus
lábios para se adornarem num novo sorriso que passou totalmente despercebido a
Ruben – No entanto é melhor teres cuidado com o meu avô, pelo menos durante os
próximos tempos, porque quando ele souber que és tu o responsável pelo meu
estado de graça… Não sei não…
- “Não sei não”?
O que queres dizer com isso? – ele promulgou de imediato, quase como se
sentindo ameaçado
- Nada… Só te
estou a alertar para teres cuidado, só isso. – Joana mordeu imediatamente o
lábio inferior para evitar uma gargalhada que adivinhava prestes a rebentar do
seu peito
- Mas que tipo de
cuidado?!
- Depois do
futebol, obviamente (!), tu sabes que o Sr. Caetano não só é adepto como também
é um praticante frenético da caça, eu já te tinha dito. – salientou
pausadamente – Portanto ele tem um armário repleto de armas do desporto que
trata como se fosse um santuário…
- Espera, espera!
Tu não estás a querer dizer o que eu penso que… - Ruben interrompeu os seus
próprios pensamentos, tal era o nervoso miudinho que começava a crescer em si
no que respeita àquela conversa, já Joana fazia um esforço quase desumano para
prosseguir com a brincadeira sem se deixar rir primeiro – O teu avô é o tipo de
senhor capaz de intimidar e impor respeito a qualquer um, sempre me intimidou
mais que o teu pai… Achas mesmo que ele era capaz de me fazer alguma coisa?
Aquele foi o
ponto de rutura, Joana não conseguiu continuar mais com a pequena, mas totalmente
infalível brincadeira, que tinha iniciado.
Adorável. Ele é simplesmente adorável, ela pensou.
Podia
adivinhar-lhe quase todas as feições do rosto por detrás do telefone – o arquear
das sobrancelhas; as quase impercetíveis ondas que se formavam na testa que se
enrugava; e a agitação dos olhos inquietados –, tudo a acontecer quase que ao
mesmo tempo.
Adorável, Joana voltou confirmar a si mesma e
começou então a rir, agora para que ele também a pudesse ouvir. Já não se
lembrava da última vez que rira com aquele à-vontade, com aquela despreocupação
porque foi realmente engraçado escutá-lo a ficar sem jeito, a atropelar-se nos
intervalos das próprias palavras.
- Isto foi uma
brincadeira? – Ruben perguntou incrivelmente mais surpreso do que aliviado – Estiveste
a gozar comigo, Joana Margarida?
- Joana
Margarida, hum? Estou a ver que ficaste chateado… – interveio, ainda a
sentir-se burlesca, quando se sentou parcialmente a um dos extremos da
secretária, voltada de costas para a porta
- Tu não podes
ter esse tipo de brincadeiras – de muito mau gosto, vamos já aqui deixar bem
claro –, ou então o meu coração não vai conseguir aguentar muito tempo. – ele
referiu, tentando parecer indignado – E daqui a alguns meses eu vou ter um bebé
para cuidar, e o meu coração tem de estar a funcionar a cem por cento.
- Eu sei disso
perfeitamente, até porque nós partilhamos o mesmo bebé. – ela murmurou-lhe com
suavidade, roubando-lhe completamente o folgo
Estas palavras
não foram de maneira nenhuma indiferentes a Ruben, que sentiu o seu peito
começar a aquecer e ser inundado por uma alegria inexplicável… Aquele era o
facto, o facto de vir a partilhar paternidade com a mulher da sua vida, de que
mais se poderia orgulhar de todas as conquistas que já tinha feito.
- Caso não te
lembres o meu avô sempre gostou bastante de ti. E sempre gostou de te ver jogar
também, aliás, acredito piamente que era ele o teu fã numero 2.
- O teu avô, meu
fã… número 2? A sério? Não sabia disso.
- Não sabias
porque nunca me ocorreu contar-te.
- Mas então
espera… Se ele era o meu fã número 2, quem era o número 1?
Joana voltou a
trincar o lábio, desta vez não para suprimir uma gargalhada, mas sim para
conseguir lidar sozinha com um golpe súbito de timidez.
- Tu sabes
perfeitamente quem.
- Hum… Talvez a
minha mãe? – foi a vez de Ruben brincar com ela
Joana evocou o
silêncio, à espera que fosse resposta suficiente. E no meio daquilo tudo
acabaram por partilhar um sorriso, que apesar de não poder ser visto aos olhos
um do outro, sentiram-no. Essa era mais uma coisa que aos poucos estavam
novamente a recuperar entre si – a sincronia.
- Mas falando
agora a sério. – ela interferiu, guardando o romance para mais tarde mas
mantendo a doçura na voz – Não tens de te preocupar com o meu avô. Ele pode ter
um osso frio para os negócios, mas entre a família ele consegue ser a pessoa
mais querida. E ele só me quer ver feliz, e quando perceber que é a teu lado
que eu o sou, vai ficar tudo bem.
Até àquela altura
Ruben não tinha a menor ideia do impacto quase absurdo e espetacularmente
excecional que aquelas palavras podiam acarretar à sua alma. Gostava do simples
caso de que a cada momento que partilhavam, Joana tonava-se cada vez mais
sincera consigo, expunha-lhe com menos receios o que lhe embargava o coração e
o pensamento.
- Só quero que
isto termine rápido para podermos começar um novo capítulo, a nossa vida juntos
como uma família.
- A nossa
família. – ela enfatizou, deixando que o acorde daquela sentença se afundasse
em si como a mais bela das melodias
- Vou desligar e
fazer uns telefonemas, quanto mais depressa tratar desta situação toda, mais
depressa volto para ao pé de ti.
- Está bem. –
Joana concordou, até porque agora os seus avós poderiam chegar a qualquer
momento – Então até logo.
- Até logo. Beijo.
– a voz dele era tão quente e suave
Ambos desligaram
a chamada em simultâneo e as paredes revestidas pelas enormes estantes de
livros da biblioteca, puderam ouvi-la suspirar tranquilamente, mesmo antes de a
verem sobressaltar num segundo mal fracionado.
- De quem é que
eu era fã número 2?
Uma nova voz,
grave e profunda, surgiu inesperadamente, fazendo Joana ocorrer com a mão ao
peito apanhada no meio de uma surpresa, ao orientar o corpo para a porta. Chegara
então a altura da confrontação que adiara por demasiado tempo. Respirou fundo. Estava preparada.
Boa noite, meninas! :)
Cá está mais um
pedacinho da nossa história.
Espero que gostem e não
se esqueçam de me deixar a vossa opinião em comentário,
gostava de saber o que
estão a achar do rumo que estou a dar à narrativa. :)
Muitos beijinhos,
Joana